Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

04 abril 2007

Quem é que vai pagar por isso?

Lembro-me bem da primeira vez em que conversamos, há treze anos, num retiro espiritual de um final de semana, num pequeno vilarejo no interior do estado do Espírito Santo. O local do encontro ficava bem no centro de um vale cercado por enormes montanhas de pedra, quase destituídas de vegetação; o prédio, antiguíssimo, com quarto enormes, simples e arejados. Da janela do meu quarto, podia-se ver uma pequena horta e no fundo um límpido regato. Tinha o corpo magérrimo, óculos com profundas lentes verdes e a personalidade baseada na vergonha tóxica. Na época, estava por volta dos seus 45 anos de idade e seu sofrimento versava entre dois pontos: a perda do seu relacionamento e o abuso sofrido na infância, por parte de um padre que lecionava no seminário onde estudava. Para tentar se libertar das profundas cicatrizes emocionais causados pelo abuso havia passado por uma internação de 45 dias numa clinica especializada no tratamento para dependentes químicos, além de vários e vários anos de terapia particular. Durante vários anos mantivemos um contato freqüente por telefone, sendo que, por quatro vezes cheguei a visitá-lo em sua terra natal. Lembro-me que tivemos uma pequena controvérsia por telefone e que, a partir daí, ele decidiu se silenciar, sem a menor explicação. No entanto, decidi respeitar o seu silencio e mantive-me afastado.

Agora, estava novamente entrando em contato, sendo que desta vez, através da internet, alegando que sua situação estava bastante precária e não dispor de verba extra para interurbanos. Mandou-me um e-mail marcando uma reunião on-line num desses programas de bate-papo. No dia e horário marcado, lá estava eu, ansioso pelo contato e noticias suas. Queria saber das mudanças significativas ocorridas em seu modo de ser.

- Olá meu amigo, há quanto tempo! Como está você?

- Caminhando graças ao bondoso Deus e a graça do nosso Senhor, Jesus Cristo! E você? Como vai? Fiquei sabendo que você se casou! E então? Como está sendo a nova vida de casado? Está feliz?

- Sim, estou! Minha esposa, a Déia, é uma grande companheira... Compartilhamos das mesmas buscas e temos muito em comum. Estamos nos dando muito bem! É lógico que por vezes temos nossos arranca rabos, mas confesso que tenho aprendido muito sobre as minhas reações emocionais descabidas através desses momentos destemperados!

- Fico feliz por você! Sei muito bem por experiência própria, o quanto que a vida se torna mais leve quando temos alguém ao nosso lado, que fala a mesma língua e com quem podemos compartilhar... Sabe, a vida em solidão é muito dolorosa e pesada! Ainda sinto muita falta da Alice; depois dela, cheguei a ter dois relacionamentos, mas não consegui me acertar com nenhum deles. Acho que vai ser muito difícil encontrar alguém como ela.

- O nome dela era Alice ou Amélia? Daqui a pouco você vai cantar o refrão dizendo que “Alice é que era mulher de verdade!”

- Fala sério! Você fala isso por que não se encontra na minha pele! Pelo que vejo, você continua o mesmo gozador de sempre!... Sabe, já estou a algum tempo sem me relacionar e tem dias que a carência bate forte. Não é nada legal ter que pagar por breves momentos de contato físico, marcados pelo relógio. O pior nem é ter que pagar por isso, mas sim, o imenso vazio que fica depois desse tipo de relação – se é que podemos chamar isso de relação! Não existe uma troca real, não existe um fluir real. O que existe é um encontro de vazios!

- Apesar de nunca ter vivenciado esse tipo de experiência, creio que realmente seja bastante dolorosa. Mas, diga-me lá! O que é que fez com que você decidisse novamente entrar em contato comigo? Por acaso foram os meus belos olhos castanhos? O que é que fez você quebrar o seu silêncio?

- Aconteceu um lance comigo ontem a noite que me deixou muito mal, e a primeira pessoa que me veio à mente foi você! Confesso que relutei em fazê-lo, mas algo dentro de mim pedia para ligar para você!

- Bem, antes de você começar, deixe-me agradecer pela confiança e pela oportunidade de me brindar com a sua graça. Diga lá irmãozinho... sou só atenção!

- Aconteceu um lance ontem a noite que me deixou muito mal e fez voltar a tona antigos sentimentos de abuso e abandono.

- O que foi?

- A noite estava muito quente; fazia um calor insuportável e era impossível adormecer, apesar do potente circulador de ar. Decidi dar uma volta pela sacada que dá de frente para a porta do meu quarto. Estava debruçado no parapeito, observando o imenso céu estrelado, o silêncio da madrugada e o andar cambaleante de um homem embriagado. Como vinha longe, só consegui reconhecê-lo quando daqui se aproximou. Tratava-se do seu Chico, proprietário de uma pequena horta próxima daqui. Desde a morte de sua esposa que ele passou a abafar a dor da sua solidão através do álcool. Decidi cumprimentar-lhe.

- Boa noite seu Chico! O que faz na rua até esta hora da madrugada?

Com dificuldades de manter o equilíbrio e olhar para cima, rispidamente me perguntou:

- Você tem um pouco de água para me arrumar?

- Claro seu Chico. Espere um momento que já desço até ai!

Já com o copo d’ água na mão, abri-lhe a porta convidando-o para que entrasse e pudéssemos conversar um pouco. Enquanto ele, de forma apressada virava o copo fazendo com que boa parte da água escorresse pelo seu pescoço molhando sua camisa surrada, exclamei:

- Chico, Chico! Você precisa dar um jeito nesse seu alcoolismo! Não sei se você já ouviu dizer, mas, o alcoolismo é uma doença progressiva, de determinação fatal, que pode levar a pessoa à loucura ou a morte prematura. Você precisa dar um jeito nisso! Já pensou em freqüentar às reuniões do A.A.?

Com um pouco de dificuldade de falar por causa do álcool em seu corpo, explosivamente me respondeu:

- O que é que você está insinuando? Está querendo dizer que eu sou doente? Quer saber: vai pra puta que te paril, seu magrelo de merda!

- Que é isso, Chico? Está ficando maluco? Por que falar assim comigo?

- Vai te fuder! Se eu quisesse sermão tinha procurado o padre!

- É melhor você sair daqui! Quer mais água?

- Não seu magrelo aidético!

- Então me devolva o copo e cuide-se bem!

Quando estendi minha mão para pegar o copo, ele deu dois passos para trás, apoiando-se no encosto do sofá e repentinamente atirou o copo em minha direção, que por pouco, não acabou acertando minha cabeça. Para o meu azar, o copo foi direto numa peça de cerâmica que tinha sido do enxoval da minha mãe. Puto da vida, com a vontade de enche-lo de porrada, comecei a empurrá-lo para fora de casa e só consegui fazer com que ele se retirasse quando ameacei de chamar pela policia. Para piorar ainda mais a situação, começou a fazer o maior escândalo em frente ao portão e em menos de dois minutos comecei a perceber o movimento das luzes e cortinas dos vizinhos. Fiquei mais transtornado ainda quando ele começou a gritar que eu era “boiola”. Só imaginava a cena que estava se passando na cabeça dos meus vizinhos!... Quando pensei nisso, voltou com tudo o mesmo sentimento que tive depois do abuso por parte do padre, com relação ao que meu pai poderia pensar a meu respeito. Naquela cidade, o padre era muito influente e é claro que entre a minha palavra e a dele, seria a dele que o orgulho do meu pai iria aceitar. Foi a mesma carga de emoção só que com imagens diferentes... Situações semelhantes... Confiei naquele senhor e ele me expôs a agressão e a vergonha!

- Ele ou o álcool? Será que se ele estivesse “limpo” teria agido dessa forma?... E se você estivesse “limpo” das imagens do seu passado, teria reagido assim?

- Não sei! O que sei é que senti uma profunda raiva, além de todos os sentimentos da infância.

- Desculpe-me por ser duro com você neste momento... Mas, não vejo problema algum no ocorrido. Foi somente a ação de uma pessoa embriagada! Se há um real problema, este se encontra na sua teimosia de carregar na memória as imagens do seu passado. Até quando você vai permitir que as mesmas infectem a realidade do seu presente? Se não fosse a merda dessas imagens, será que você não teria rido de tudo isso? Será que você teria tido esse tipo de reação emocional?

- Creio que não! Talvez, reagiria com compaixão!

- Pois é! Talvez tivesse feito como o seu mestre: “pai, perdoa-lhe, pois ele não sabe o que faz!”

- Sim, é bem provável!

- Mas, diga-me uma coisa – creio que nossa amizade me permite lhe fazer esta pergunta: depois de tantos anos em silêncio você decidiu entrar em contato comigo somente para compartilhar isso?

- Sim!

- Você, na sua idade, ainda não consegue lidar com uma situação dessas sozinho? Ainda precisa procurar por colo? Há quantos anos você vem falando a respeito desses sentimentos do abuso na sua infância?

- Desde que comecei a fazer terapia... Sei lá, acho que por volta de uns quatorze anos!

- Pelo visto, com certeza você já deve ter falado sobre isso com muitas pessoas diferentes, não é mesmo?

- Sim!

- Então? Quando é que vai se tocar que “Bafo de boca não cozinha ovo”? Vai querer ficar mais quantos anos engordando a conta bancária de algum terapeuta “bondoso”? Quando é que você vai ter a coragem de fazer diferente? Quando é que vai escolher sentar a sós com os seus sentimentos? Quando é que vai escolher pela autonomia e a auto-suficiência emocional? Será possível amadurecer emocionalmente sem esse tipo de escolha? Você acha coerente um cinqüentão sair correndo a procura do colinho de papai em cada vez que a vida lhe apresentar uma situação parecida com esta? Não consegue perceber, depois de tantos anos de terapia, que esse insano condicionamento de compartilhar sua autopiedade não te levou há lugar algum?

- Claro que me levou! Se não fosse isso, com certeza teria me suicidado ou enlouquecido!

- Tudo bem! Então podemos dizer que isso lhe impediu de acabar com a sua existência, não é mesmo?

- Sim!

- No entanto, pelo que conversamos até agora, não podemos dizer que isto lhe brindou com vida em abundância, ou será que estou enganado? Você pode dizer que está vivendo sua vida com abundância?

Durante alguns minutos não houve o menor sinal de resposta. Decidi tocar duas vezes o botão de “atenção” que faz a tela do computador tremer e logo a seguir escrevi:

- Então? Esse comportamento lhe brindou ou não com uma vida em abundância? Não é isso que seu mestre disse que você deveria ter: vida em abundância? Seja franco! Trata-se da sua vida!

- Não! Não posso dizer que estou tendo vida em abundância; estaria sendo hipócrita com você se assim o dissesse!

- E aí? Vai escolher continuar fazendo a mesma coisa? Acha que vai ter algo de diferente pela frente?

- O problema é que não sei fazer diferente!

- Não sabe ou não quer tentar?

- Não faço a mínima idéia por onde começar... Pelo visto você já sabe lidar com isso; não gostaria de me ensinar?

- Está vendo só? Lá vem você novamente esperando por doações psicológicas vindas de terceiros... Até quando vai querer ficar representando esse papel de “mendigo emocional”?

- Mas como é que eu faço? Já não sei mais pelo que buscar! Já não sei mais o que ler!

- E por que razão você precisa buscar por algo de fora, se todo material que você precisa já se encontra ai com você? Por que você não decide ir virando as páginas do livro que você é? Quem sabe assim você possa a qualquer momento se deparar com o seu próprio autor. Por que não se senta com os seus sentimentos e com todas as imagens do seu passado? Por que não senta folgadamente, como quem assiste um filme, cujo conteúdo desconhece? Como é que você vai poder perceber a falsidade dessas imagens? Como é que você vai poder ser quem você realmente é enquanto carregar dentro de você a imagem do menininho abusado do passado? Quem você realmente é? Você é você ou é a imagem que você carrega de você? Quem vai poder lhe responder isso: eu? Seu terapeuta? Seu bondoso Deus? E aí? O que você me responde?

- Não sei o que te responder agora!

- Guarde essa resposta para você e para o menininho do seu passado!

- Mas bem que você podia me ensinar como você está lidando com tudo isso! Tornaria as coisas bem mais fáceis para mim! Poderia ensinar o “caminho das pedras”.

- O que você está me pedindo se parece muito com aquela historinha do homem que ficou sensibilizado com o esforço de uma borboleta para se libertar da crisálida... Ele, na tentativa de ajudá-la, acaba rompendo as paredes da crisálida e em conseqüência da sua interferência, a jovem borboleta não desenvolveu os músculos que precisava para alçar vôos mais altos. E o resultado? Acabou morrendo! Compreende o que quero dizer com isso?

- Mais ou menos!

- Você precisa criar a coragem para se libertar sozinho da sua crisálida... Você precisa se entregar de corpo e alma nesses momentos de crise. Precisa exercitar seus músculos emocionais se é que quer ser livre para voar e descobrir as cores de novas paisagens. E então? Será que você vai ser sério o suficiente para se entregar para esse momento desconhecido sem buscar pela ajuda de algum dos seus conhecidos?

- Só vou saber se eu tentar, não é mesmo?

- Sim, é verdade!

- Só que eu tenho muito medo de ficar sozinho. Tenho medo do abandono!

- Qual é o pior abandono? O de terceiros ou o de si mesmo? Você já tomou consciência da maneira como você se abandonou durante todos estes anos? Entregando a responsabilidade do seu autoconhecimento ao seu terapeuta, amigos, livros e instituições? Não acha que está mais do que a tempo de assumir as rédeas de sua vida emocional?

- Tenho medo de me perder!

- Ótimo! Isso é muito bom! Que se perca então! Só os que sabem estar perdidos é que tem alguma chance de se encontrarem! Então? O que você escolhe?

- Ficar comigo!

- Ótima escolha!

- Mas posso continuar contando com a sua ajuda?- Com a minha ajuda, nem pensar! Se você quiser entrar em contato para se lamentar é melhor nem tentar! Agora, se você quiser compartilhar o resultado de se entregar ao desconhecido, com suas descobertas, então, estamos por aqui! Caso contrário, procure um terapeuta “bondoso”. Eles são extremamente pacientes, e por anos, com pacientes abusados... Mas costumam abusar de você nos preços! Portanto, não se assuste!

Gostou? Então compartilhe!

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Postagens populares

Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!