Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

04 abril 2007

O Sonho

Lembro-me que naquele período eu estava vivenciando um dos meus invernos existenciais. Ressentia-me muito com a profissão que eu exercia e quase sempre era acometido por um profundo sentimento de falta de sentido. Sentia uma profunda necessidade de encontrar e poder manter contato com outros insatisfeitos anônimos como eu; pessoas que já não se rendiam mais às trivialidades sedutoras do ritmo cotidiano. Sentia um enorme desejo de soltar minha voz, meus pensamentos e mais do que isso, encontrar por ressonância. Foi exatamente nesse período que tive um sonho que para mim, foi de grande significado.

Em minha infância, sofri muito abuso religioso. Garoto rebelde, não aceitava de nenhum modo essa absurda idéia de que “só Jesus salva”. Inicialmente, por causa das ordens dos meus pais, ia à missa obrigado, passando a ir com espontaneidade quando comecei a ter as minhas primeiras experiências sexuais com as garotas do grupo de jovens, atrás da casa do padre. Sempre achei profundamente chato o ritual das missas católicas com aquele interminável “senta e levanta” e as mecânicas e irrefletidas repetições litúrgicas. Para mim, era um verdadeiro parto ter que esperar pela frase final “vamos em paz e que o Senhor nos acompanhe”.

Na época daquele sonho eu havia acabado de ler um livro do escritor e teólogo Leonardo Boff, intitulado “A águia e a galinha”, livro que me tocou profundamente. No sonho, eu estava sentado num pequeno barranco cercado por várias daquelas coloridas flores chamadas “Maria-sem-vergonha”. Eu estava profundamente entediado e solitário. Foi nesse momento que ele surgiu em meu sonho com sua bem tratada barba e cabelo branco, com um olhar sofrido e compassivo...

- O que está fazendo aí tão quieto e cabisbaixo, meu jovem?

- Estou aqui pensando em minha vida, senhor Boff! Estou pensando em como conseguir sair dessa profunda mesmice sem o menor sentido...

- E por que você está só? Onde estão os seus amigos?

- Todos foram ao estádio do Morumbi assistir o que eles acham ser a grande decisão...

- E por que motivo você não foi juntamente com eles?

- tenho coisas muito mais importantes e significativas para decidir... Sabe seu Boff, não quero ficar como eles, na arquibancada da vida, vendo os outros a jogar... Quero deixar de ser um mero expectador de alguém que tem algo para falar... Sinto que o jogo dá vida está quase terminando e que eu nem sequer dei o pontapé inicial.

- E o que te impede de fazer isso, meu jovenzinho?

- Acho que as incessantes lembranças do som dos apitos dos vários juízes que passaram pela minha vida, apontando-me várias faltas, enchendo-me de cartões amarelos, sendo que várias dessas faltas nem mesmo cometi.

- Ora, ora! De nada adianta ficar ai sentado cabisbaixo; venha comigo, pois temos muito o que fazer! Estou precisando de um ajudante e creio que você é um dos anjos que nosso Senhor mandou para me ajudar...

- Ajudar no que?

- Pare de fazer perguntas por um breve momento e venha comigo; tente deixar de lado sua razão, nem que seja por uns breves minutos, solte-se e acompanhe-me.

- Está bem!

Nós estávamos numa trilha arborizada de um parque ecológico da região norte de São Paulo, bem próximo de um bairro bastante carente e violento, famoso por ser um ponto de tráfego bastante freqüentado.

- Para onde o senhor está indo?

- Vamos para dentro da favela!

- Sr. Boff, o senhor deve estar ficando louco, ou então andou bebendo muito vinho! O Sr. Por um acaso não lê jornal não? Não sabe o quanto que aquela favela é violenta?

- Meu jovem, gosto de estar no meio dos oprimidos; a realidade não é bem aquela que você vê nos noticiários da TV. A violência nasce do lado de cá e o que realmente acaba ocorrendo é que ela transborda pela periferia... Lá é que está parte da minha razão de ser, lá é que eu encontro o clamor de Deus.

- Será que não dá para o senhor deixar de lado essa história de deus?

- Meu jovem, deixe de ser rabugento e venha comigo! Se você quer sentir algo de real na vida, não vai ser sentado num barranco olhando para o próprio umbigo, cercado por esse monte de coloridas marias-sem-vegonha... Você precisa, sem nenhum vergonha, ver as cores das Marias e seus barracos. Venha comigo pois já estamos atrasados.

- Atrasados para que?

- Temos uma missa para celebrar... Olhe lá, já estão esperando por nós no campinho de futebol!

- O senhor deve ser duas vezes maluco!... Primeiro, por querer fazer uma missa num campinho de futebol de terra batida, cercado por um córrego infestado de ratos, pneus e latas velhas. Segundo, por acreditar que eu possa querer tomar parte nisso!

- Você realmente é um jovenzinho muito rebelde... Ser rebelde com inteligência é muito bom, mas, ser rebelde por pura birra infantil não tem nada de inteligente. Fique quieto e trate logo de colocar esta túnica branca; a faixa verde é para ficar na frente... Hoje você será o meu coroinha!

- Decididamente você deve estar maluco! De modo algum vou colocar essa fantasia de “bom menino”; além do que, não faço a mínima idéia do que faz um coroinha durante a missa, pois nunca prestei atenção neles. Meu olhar estava sempre hipnotizado pelas bundas das mulheres dos bancos à minha frente durante a missa.

- Essa é uma parte da missa que nós padres não temos como celebrar... Mas saiba que já tive a sua idade e sei muito bem que Deus não nos castiga por nosso excesso de hormônios desse período adolescente. Mas, deixemos essa conversa de lado e vamos ao que interessa. Veja só o tamanho daquela fila!... Todos esperando pelo pão! Tenho consciência de que muitos deles não participam da missa por causa do seu significado, mas sim, para sentirem pelo menos uma vez na semana, algo em suas bocas que seja realmente nutritivo. Procure ficar quieto e bastante atento, pois se você estiver de mente aberta, quem sabe, possa ser tocado pela graça e ter uma das mais belas experiências da sua vida. Procure olhar bem fundo nos olhos dessas pessoas quando estiverem caminhando em nossa direção... Quando eles se aproximarem, carentes, em busca da eucaristia, coloque este saco de papel de pão, bem abaixo de suas bocas.

- Mas...

- Faça agora o que eu digo meu jovem!

Emputecido e sem saber o que eu fazia ali, tratei de obedecer aquele homem. Seu olhar, agora, estava radiante e quase que transfigurado. Ele montou seu altar com duas mesinhas brancas estampadas com o logotipo de uma marca de cerveja, bem de frente ao barraco que servia como boteco do campinho de futebol. Havia ali quatro senhores, a maioria deles desdentados, com seus velhos instrumentos de percussão e um surrado violão.

- Bom dia irmão Boff! O que o senhor quer que toquemos hoje durante a missa?

- Creio que nada melhor para sair da rotineira fossa, do que uma nova bossa. Por que não fazer a teologia de hoje ao som de Vinicius de Morais? O que você acha meu jovem?

- O que? Tocar samba durante a missa? Desse jeito o senhor vai acabar na mesma cadeira de Giordano Bruno!

- Já conheço essa cadeira, meu jovem! Sinto-me profundamente honrado por ter sido agraciado ao sentar-me nela. É uma pena que de igual maneira, meus inquisidores nunca tiveram a oportunidade de se sentarem nestas cadeiras deste singelo boteco... Quem sabe, passariam entender menos de política e muito mais do real espírito da Teologia da Libertação. Com certeza passariam a ser muito mais sensíveis ao clamor das necessidades do povo. Mais olhe lá... É Dona Benta! É dela os biscoitos que usamos para a eucaristia.

- Eu devo estar sonhando... Participar de uma missa sendo o coroinha do Leonardo Boff, num campinho de futebol no meio de uma favela, onde o altar fica num boteco e a hóstia é um biscoito da Dona Benta! Só está faltando o Monteiro Lobato para ler a palavra do dia...

- Vamos lá meu jovem, vamos lá!

Aproximando-se de Dona Benta, abraçou-a de modo fraterno. Ela, sorrindo, entregou a ele uma dessas latas coloridas onde se guarda panetone. Dentro dela, haviam vários biscoitos tipo pão de mel. Depois de agradecer-lhe, olhou para mim e com um sorriso extasiado ajeitou a minha túnica. Depois, virou-se para os músicos e pediu que tocassem com bastante entusiasmo a música “Carinhoso”, para que pudéssemos iniciar a celebração.

- Mas Boff, tocar “Carinhoso” para iniciar uma missa? Tem certeza que o senhor está gozando de perfeito juízo?

- Aqui não há espaço para dogmas, meu jovem... Aqui todos queremos celebrar... Alguma vez você prestou atenção na letra dessa musica?

- Sim! Trata-se de uma famosa música romântica!

- Isso é uma visão muito simplista, meu jovem! Você precisa aprender a fazer a leitura musical para além do mito romântico! Pense nessa musica como um diálogo da alma e seu amor pela Grande Vida! Você precisa se libertar desse seu modo preconceituoso de enxergar a vida. Agora, deixemos de conversa e vamos lá distribuir o corpo de Cristo através destes pães de mel. Lembre-se do que lhe falei antes: não deixe de olhar bem fundo nos olhos dessas pessoas; tente ver o reflexo de seus sonhos, suas dores e alegrias. Não perca esta oportunidade!...

E assim, ao som de “Carinhoso”, ele começou a distribuir os pães de mel. As pessoas na fila, a grande maioria, vinham dançando em nossa direção. Havia ali algo de especial, algo completamente diferente das missas em que eu havia monotonamente participado... Havia alegria, havia espontaneidade e um profundo senso de coletividade... A cada pessoa que chegava à nossa frente, eu esticava meu braço com o saquinho de pão e observava o brilho de seu olhar... Boff, “o frater”, como alguns ali o chamavam, sorrindo dizia a cada um “Corpo de Cristo” e eles respondiam cada um ao seu modo...

- Valeu irmão!

- Corpo de Cristo!

- Valeu brô!

- Corpo de Cristo!

- É isso ai mano!

De repente, aproximou-se de nós um jovenzinho com um visual daqueles membros americanos de gangs... Bombeta na cabeça com a aba para traz, uma grande corrente com medalhão no peito, uma calça jeans bastante folgada deixando aparecer a cueca e um par de tênis importado... Quando estiquei meu braço para colocar o saco de papel de pão sob seu queixo, Boff, delicadamente afastou meu braço, sorriu e entregou-me a lata colorida com os pães de mel. Abriu uma pochete de couro que estava presa em sua cintura e de dentro dela tirou uma caixinha de chiclete, daquelas amarelinhas. Com o canto da boca, rasgou a embalagem do chiclete e deixou cair as duas unidades em sua mão esquerda. Com a mão direita pegou um chiclete, virou-se para o jovem e disse:

- Corpo de Cristo!

- Tamos aí mano, é nós na finta! Valeu! – Respondeu acenando positivamente com uma das mãos e com a outra em forma de paz e amor, batendo em seu próprio coração.

Boff então colocou o outro chiclete em sua própria boca e percebendo minha perplexidade diante de sua atitude, olhou em meus olhos, segurou os meus ombros e amorosamente me disse:

- Você precisa desenvolver sua sensibilidade para perceber qual o tipo de alimento que cada um pode digerir... Isso é uma arte, alimentar sempre, mas sem intoxicar.

Nesse instante acordei com o barulho do despertador do celular. Olhei para o lado e vi que minha esposa ainda dormia. Já não havia mais as pessoas, os biscoitos e a favela, mas o som “carinhoso” daqueles músicos permanecia em minha mente.

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!