Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

26 dezembro 2007

Além dos limites do medo e do ressentimento



Sem a menor sombra de dúvidas, uma das maiores conquistas nestes últimos anos foi a tomada de consciência do pensamento condicionado como a natureza exata de todos os meus conflitos. Foi graças a essa conscientização e a prática constante da observação dos reflexos condicionados da mente que muita das confusões, antes presentes em minha vida, deixaram de existir.
Hoje, abri a loja um pouco mais tarde, uma vez que, baseando-me nas experiências dos outros anos, no dia seguinte ao Natal, fora algumas trocas, o movimento é quase inexistente. Agora são 11h45min.
Enquanto limpo as digitais deixadas nas vitrines pelos clientes, um desses enormes caminhões de transportes de caçambas para acumulo de entulhos, por pouco quase acaba com os frágeis galhos da pequena pitangueira. Estacionado bem em frente à loja, descarregou a caçamba na divisa da calçada da loja com a do centro espírita em reformas. Como um pouco mais atrás - menos de quatro metros -, há uma placa de proibido estacionar, com o intuito de facilitar o estacionamento dos clientes da região, educadamente solicitei ao servente da obra para que, se possível fosse, puxasse a caçamba apenas um metro para trás. Como recentemente – no último feriado chuvoso – tivemos uma séria discussão, por não terem tido o bom-censo e nos acordarem em plena 08h00min da manhã ao som das pancadas da marreta contra o chão da sala vizinha, pressenti que seria inútil pedir por tal colaboração. No entanto, mesmo assim, decidi arriscar...
- Bom dia, irmão! – Disse-lhe meio sem graça.
Ele limitou-se a me olhar com seu rosto carrancudo e os olhos avermelhados da ressaca.
- Será que você poderia fazer o favor de pedir para puxar a caçamba apenas um metro para traz, a fim de deixar um pouco mais de espaço para os clientes da região estacionarem?
- Não, não posso não! – Respondeu-me de forma brusca, ao mesmo tempo em que tratava de encher de ar o peito franzino.
- Por favor.
- Já disse que não vou puxar, vai ficar ai mesmo!
- Por favor, estou lhe pedindo numa boa. Não tenho a intenção de ser chato ou de criar confusão. Será que dá para você colaborar?
- Não, vai ficar aí mesmo. Ela não está atrapalhando a entrada da sua loja. Foi colocada bem na divisa da calçada dos dois prédios. Não vejo por que ter que ser tirada dali.
- Por favor, irmão, isso não custa nada para você. Basta pedir para o motorista do caminhão que ele arrasta um pouco mais a caçamba; isso tornaria mais fácil para as pessoas que tem dificuldades no volante estacionarem neste local. Tem certeza de que não dá para você fazer esse favor?
Enquanto isso, o jovem motorista, silenciosamente aguardava pela decisão final por parte do servente da obra.
- Não, pode deixar ela aí mesmo onde está. Não vamos puxá-la nem mesmo meio metro para trás. – Disse ele, dirigindo-se ao motorista e em seguida, retirando-se para dentro do prédio.
- Cara, você é difícil mesmo! Que custa? – Gritei escorando-me no batente de entrada do portão do centro espírita.
Nesse instante, outro servente, com seu braço bem musculoso, em alto som, com um pedaço de tijolo na mão esquerda, fez questão de riscar o chão, mostrando-me que a caçamba estava bem na divisa dos dois prédios.
- Sei disso, irmão! Só estou pedindo a colaboração de vocês para podermos facilitar o espaço para as pessoas estacionarem neste local, uma vez que já são poucas as opções de estacionamento aqui na região. Você não precisa se dar ao trabalho de riscar o chão; noção de espaço é o que não me falta – disse-lhe segurando levemente seu braço direito.
- Tire a mão de mim! Tire a mão de mim! – Começou a gritar ele, com um olhar bastante alterado numa mescla de medo e raiva. Seus gritos chamaram a atenção dos demais comerciantes locais.
Isso foi o suficiente para despertar, dentro da minha cabeça, o arquétipo de "Jack Estripador", com seus requintes de crueldade, igualmente fazendo com que uma enorme carga de adrenalina fosse derramada em minha corrente sanguínea, deixando minha pele e olhar semelhantes ao de outro arquétipo, presente em minha mente: Gollum – personagem do filme "Senhor dos Anéis". Este último, com sua voz irritante, disputava com Jack Estripador, os espaços de minha mente:
- Corta a cabeça dele... Agora, mete o pé no peito dele... Pegue a barra de ferro de levantar a porta da loja e rache no meio a cabeça quadrada desse cabra... Mate o desgraçado, mate! - Tudo isso e mais outro tanto de idéias absurdas, numa curta fração de segundos.
Como quem procura atordoado pela tomada, ao se levantar durante a madruga, coloquei a mão na testa, como se isso pudesse fazer com que a mesma silenciasse. Dei dois passos para trás com o intuito de conter os meus ânimos. Olhei para o motorista e pude perceber em seu olhar, algo parecido com o olhar de impotência do bolseiro Frodo, que agora era portador do caminhão e não do anel. Em seu olhar, pude perceber um silencioso pedido de "deixa quieto". Mas, dentro de mim, com a mesma fúria característica do olhar de Gollum, ao ser apoderado pelo brilho do anel, minha mente começou a exclamar:
- Que nada! Vai para cima dele!... Arrebente a cabeça dele com um só golpe...Arrebente a cabeça chata desse cabra sem o menor pingo de cultura... Mande-o novamente para a terrinha dele... Vai deixar barato? O que os comerciantes locais vão pensar a seu respeito? Você tem que se impor, não pode ficar por baixo!... Faça alguma coisa já... Você tem que se fazer respeitar... Vai lá e cola o brinco deles!... Arrebente o focinho desse Zé Ninguém... – gritava insistentemente e cada vez mais alto.
Tratei de sair logo de perto e entrar para o recinto da loja, tomar dois copos de água para ver se acalmava o furor mental, que de forma agressiva, insistia por uma reação violenta de minha parte...
- Você tem que dar uma lição nesse cabra... Não pode deixar barato... Espere ele estacionar o carro na rua dos fundos e trate de furar os quatro pneus do mesmo... Ou melhor ainda, pegue uma boa chave de fenda, com a ponta bem larga, e fique dando voltas no carro, arranhando a pintura até ofender a lataria... Mete o seu pé 42 nos dois retrovisores... Jogue ácido na pintura... - E, ainda não satisfeito, gritou: - Bote fogo no prédio!...
Só então comecei a rir... Tudo isso em frações de segundos...
É incrível observar os sagazes movimentos do irado pensamento. Como o mesmo não obteve êxito ao tentar me influenciar num possível confronto físico, logo tratou de entrar pela porta dos fundos através da tentativa de identificação com idéias de superioridade moral e cultural...
- Deixa prá lá!... Não vale a pena perder tempo e energia com essa gentalha sem cultura. Sente-se sob a sombra da pitangueira e divirta-se vendo-os trabalharem feito escravos das minas de carvão, ou então, os carregadores de pedra de Serra Pelada... Divirta-se com o açoite dos raios solares sobre a pele castigada desses pobres escravos do sistema... – Insistia o rancoroso Gollum, arvorando-se em tons de superioridade.
É fascinante a constatação de que os pensamentos não suportam serem observados, uma vez que a observação faz com que não ocorra a identificação que produz sempre as reações emocionais insanas. Pela observação, as sugestões do pensamento, carregadas de preconceitos e julgamentos, acabam morrendo de morte natural.
Estou agora sentado à sombra a pitangueira. O sol castiga forte. Escuto Enya pelo meu aparelho de MP3, enquanto que os pedreiros sobem a estreita rampa de madeira, carregando um carrinho cheio de entulho que faz um forte estrondo quando atirado no interior da caçamba.
Agora, os pedreiros fecham a casa e saem para o horário de almoço, enquanto que dois coletores de lixo, com seus uniformes de tom laranja, correm para agrupar os vários sacos plásticos pretos com as sobras de mais um Natal.
No aparelho de MP3, "In the Deep", tema do filme "Crash – no limite".
Quanta intriga conseguimos criar quando buscamos estar sempre com a razão, ou então, quando insistimos em carregar em nossa mente, as imagens de situações passadas... Se pudéssemos ler nas entrelinhas das histórias das pessoas com quem quase sempre entramos em atrito, com certeza, com facilidade deixaríamos de lado essa insana mania de querer ter razão em tudo... Ousaríamos fazer diferente, indo além dos nossos limites demarcados no asfalto com as cores dos tijolos do medo e do ressentimento.
O caminhão de lixo já vai longe ao encontro dos dois atletas coletores, que talvez, há sombra de alguma árvore, descansem para tão logo darem seqüência a maratona posterior ao dia de Natal.

23 dezembro 2007

Existe súbito ataque cardíaco?


Eu estava aproveitando a folga gerada pela pausa da chuva, observando as incontáveis gotículas de água nas pontas das verdes folhas da pequena pitangueira, quando fui interrompido pelo gesticular esbaforido de dona Elza, do alto de sua varanda, cujo parapeito é coberto de musgos e fungos. Ela tinha o olhar bem mais pesado do que o de costume. Pessoa sofrida, dedicou totalmente sua vida aos filhos e para a continuidade de uma pequena malharia deixada por seu marido, vitimado num assassinato. Aos 76 anos de idade, sempre trazia no olhar uma expressão para lá de carrancuda e, não raro, despejava uma infinidade de lamúrias nos ouvidos dos menos precavidos. Devido suas traumáticas experiências passadas, parecia ter perdido a capacidade de ver as coisas boas da vida, tornando-se assim, uma reclamadora compulsiva. Não raro, com movimentos apressados de fazer inveja a muitos da sua idade, entrava pela porta da loja, praguejando contra o barulho do vizinho, as loucuras do genro, o cliente mal pagador, ou então, pelos abusivos valores das suas contas de água e luz. Lembro-me de somente numa ocasião, ter escutado dela, em meio de sorrisos sapecas, sobre as travessuras de sua infância, quando dava um jeitinho de "distribuir" um pouco das finanças de seus pais, para que alguns de seus funcionários pudessem comprar os caros remédios para bronquite.
Há uns quarenta dias, ao lembrar-me de uma cena do filme "O Poder Além da Vida", disse-lhe sorrindo, quando aceleradamente vinha em minha direção:
- Calma lá! Antes que a senhora comece a desfilar o seu rosário de lamúrias, trate de voltar para sua casa e só retorne aqui, quando tiver algo a dizer, cujo conteúdo seja totalmente diferente daquele que a senhora está acostumada a me trazer.
- Que é isso? Perdeu o juízo? Não tem mais respeito pelos meus cabelos brancos?
- Justamente por respeitá-los e também por respeitar os meus ouvidos é que me recuso a continuar dando suporte para sua neurose de reclamar compulsivamente dos acontecimentos do seu dia-a-dia. Não estou mais a fim de escutar suas lamúrias. Eu tenho certeza que em algum lugar ai dentro da senhora, deve existir assuntos extremamente interessantes e alegres. Portanto, somente volte aqui quando tiver algo para me contar que seja diametralmente oposto ao discurso que lhe mantém com esse seu rosto sofrido de sempre.
- Sabe, você é "desaforento da bexiga"! Mas, no fundo do fundo, gosto muito desse seu jeito. Você sempre tem uma palavra para desafiar o modo de ser da gente. Estou muito feliz por meu filho estar começando a conversar com você. Só de pensar que daqui alguns dias vocês já não estarão mais aqui, chego a sentir um grande aperto no peito...
- Está vendo só? Lá vem a senhora novamente se limitando a ver apenas o lado negativo dos acontecimentos e, com isso, dando forças para esse seu lado resmungão... Volte para casa e só volte aqui quando tiver algo de bom para me contar!
- Mas...
- Nem mais nem menos! Recado transmitido!
Depois de me ouvir, de costas foi se afastando bastante sem graça em direção à porta da loja, onde se deteve por alguns segundos, para depois em meio de um sorriso fazer um movimento com as mãos, afirmando seu desejo de me dar umas boas palmadas. Desde esse dia, sempre que me via, continha seu desejo de resmungar com um leve sorriso no cantinho do olhar. Desta vez, pela maneira com que me olhou, deixou claro no ar, que algo realmente doloroso havia lhe ocorrido. Permaneci silenciosamente olhando para o alto em sua direção. Ela parecia atônita, perdida em algum lugar de suas lembranças...
- Você está vendo aquela senhora de vestido azul marinho que vai logo ali à frente? – Disse-me do alto, apontando em sua direção.
- Sim, dona Elza, o que tem ela?
- Veio aqui me avisar que meu irmão caçula, de 52 anos de idade, não resistiu ao súbito ataque cardíaco, morrendo na mesa de operação.
Disse-me ela sem ao menos se dar conta de que não existe essa absurda idéia de "súbito" ataque cardíaco... Isso nada tem de súbito: é apenas uma resultante de um modo de vida acelerado de anos e anos. 
- Ele era o mais forte de todos e sempre tinha uma palavra de incentivo na ponta da língua, apesar de quase nunca ter tempo para si mesmo. Era um homem muito trabalhador – trabalhava dia e noite, noite e dia – gostava de brincar dizendo sempre que seu nome era trabalho e seu sobrenome hora extra. No fim, tadinho, o "home num guênto!"... 
Disse-me do alto de sua sacada com seu olhar fixo, não em mim, mas nos desenhos desgastados de sua calçada ainda molhada pela chuva da manhã. Ela respirou profundamente, levantou seu olhar em direção ao céu cinzento, como que praguejando contra Deus, mas, devido ao forte som da grande quantidade de ônibus que naquele instante passavam por aqui, não pude compreender o que dizia. Mesmo assim, mantive meu olhar fixamente direcionado para sua face tristonha...
- Dona Elza, desculpe-me, mas, não consegui escutar o que a senhora acabou de dizer, por causa do barulho do transito.
- Ah, deixa prá lá! - Respondeu-me com um aceno raivoso, imediatamente virando-me as costas e, cabisbaixa saindo em direção ao interior de sua casa.
Tão logo sua imagem desapareceu por detrás dos espaços deixados pela arquitetura das antigas lajotas que compõe o muro de sua varanda, comecei a pensar que, talvez, um dos maiores sacrilégios humanos seja o de chegar ao final de uma existência, impossibilitado de fechar os olhos com leveza e ternura, agarrado aos lençóis de um leito de hospital, quem sabe, por ter se permitido viver uma vida sobre os ditames dos ponteiros de um relógio, ou então em atividades e relacionamentos destituídos de um verdadeiro senso de significado e paixão.
Passado uma hora e meia, pude ver dona Elza voltando do mercado próximo, com um enorme óculos escuros, carregando em seus braços, como de costume, várias sacolinhas amarelas que faziam contraste ao impecável e discreto conjunto preto, desses usados pelas senhoras em luto.

22 dezembro 2007

O drama da criança de sensibilidade adulterada

Eu ainda estava levantando o toldo da loja quando avistei Sueli, do outro lado da rua, com uma enorme sacola preta, esperando pelo cessar dos movimentos dos automóveis. Aproveitando-se da passagem oferecida por um senhor de olhar malicioso, dentro de um Picasso prata, atravessou a rua as pressas e bastante ruborizada. Em seu rosto, além do tom ruborizado havia um brilho que não lhe era original, produto de um cristal colado sobre um de seus dentes caninos. Seus cabelos mesclavam entre sua cor original e luzes envelhecidas que agora eram de um tom amendoado. Talvez, por não terem sido lavados pela manhã, trazia-os presos em coque com a ajuda de uma peça que lembrava um pequeno dente de marfim.

- Bom dia, JR! Sua mãe está?

- Bom dia Sueli, tudo bem com você?

- Sim e a Ida? – Perguntou-me esticando seu olhar para o fundo da loja.

- Em casa. Só chega depois das 14h00min. Deve estar com certeza acompanhando o serviço dos pedreiros.

- Pedreiros... Nem me fale essa palavra. Quase que perco meus cabelos de tanto nervoso que passei durante a reforma que fizemos no apartamento que acabamos de comprar. Por falar nisso, espero poder contar com vocês na passagem de Natal.

- Sinto muito, mas não será desta vez. Além do mais, não comemoro Natal. Acho uma data destituída de qualquer sentido. Estarei em casa com alguns dos nossos amigos.

- Mas sua mãe não lhe disse que na passagem toda a sua família estará lá em casa?

- Não fazendo desfeita à vocês, mas, nesta noite, estarei com pessoas que durante o ano todo nos deram o ar de sua graça, pessoas que realmente fizeram parte do nosso cotidiano.

- Não é por causa de eu não lhe trazido um convite em casa, não é mesmo?

- Não, não é nada disso. Já lhe disse que quero estar com aqueles que estiveram comigo... Sabe, para mim, a vida é como uma estrada de mão dupla... Eles nos prestigiaram durante todo o ano, portanto, merecem nossa atenção especial, você não acha?

- Eu convidei sua família para estarem conosco na ceia da véspera de Natal! No dia, farei um almoço para a minha família, uma vez que o apartamento não é muito grande e, portanto, não ficaríamos a vontade.

- Entendo. Fique tranqüila. Agradeço pelo convite.

- Com toda certeza, Jorge irá sentir muito a sua falta, afinal de contas é o primeiro Natal em sua casa própria.

- Ele fez por merecer!... Estou feliz por vocês! Quanto a ele sentir a nossa falta, se for do mesmo modo que sentiu durante o ano que passou, acho que não vai haver nenhum problema.

- Não fale assim. Você está sendo injusto com ele. Você mais do que ninguém sabe o quanto que a vida dele é uma verdadeira loucura, como ele está sempre na correria.

- Lógico que sei! Por que você acha que deixei de trabalhar com ele? Não tenho a estrutura física que ele tem e, além do mais, não tenho a intenção de passar os meus dias atrás de um computador na expectativa de bons negócios. Para mim, a vida é muito preciosa, não vale a pena ser trocada pela virtualidade. Ela passa rapidinho, num piscar de olhos. Não quero ser mais um daqueles que no leito de morte, olhando arrependidamente para os olhos de um amigo, se questione: "O que é que eu fiz com a minha vida?" Quanto a conhecer seu apartamento, fique tranqüila, oportunidades não vão faltar. Além do mais, dou preferência aos momentos de intimidade, tão impossíveis nessas datas de encontros familiares.

- Vê se vai lá qualquer noite dessas com a Deca, para dividirmos umas pizzas.

- Pode deixar... E as meninas, como estão? Já sairam de férias?

- Nem me fale!... Você não está sabendo? A Ida não lhe contou?

- O que foi desta vez?

- Com a Ruth, tudo bem! Apesar de ser a mais nova, essa quase nunca me traz problemas... O problema é sempre a Raquel!

- O que tem ela?

- Não sei mais o que faço com essa menina. Agora deu para mentir e, o pior de tudo, está correndo o risco de repetir de ano. Ficou para recuperação em três matérias. Cada dia ela me aparece com um novo problema.

- E vocês?...

- E vocês o que?

- Sim, já se fizeram a pergunta sobre quais os problemas que devem estar levando para ela todos os dias? Já se perguntaram em quais matérias, como pais, vocês precisem ficar em recuperação? Já se questionaram se a educação, a presença e a atenção que disponibilizaram para ela no decorrer deste ano, não seja merecedora de uma reprovação? Já se questionaram do por que dela se ver com a necessidade de ter que fazer uso de mentiras para as pessoas em quem ela deveria confiar? Será mesmo que o problema esteja somente no comportamento da menina? Ou estará ela, como é mais comum, sendo uma espécie de "mata borrão emocional" de uma possível disfunção familiar?...

- Para com isso! – Exclamou ela visivelmente ruborizada por ter sido exposta a uma contrariedade – Por que seríamos nós os responsáveis pela sua nova mania de mentir?

- Vocês chegaram a conversar com a orientadora da escola onde ela estuda?

- Claro!

- E o que ela comentou?

- Que isso é um problema da idade e que é normal... Que ela está querendo se afirmar... Que está querendo ser auto-suficiente antes do tempo...

- Sei!... Parece que as coisas não mudam mesmo, que a história do mundo se repete, tendo quase sempre um final muito parecido com o que tivemos com os nossos pais... E o Jorge, como reagiu a isso?

- Ficou extremamente nervoso. Pensei que ia ter um piripaque. A sorte dela é que estávamos atrapalhados com as reformas do apartamento, caso contrário, com certeza ele teria lhe dado uma boa surra. Onde já se viu, nessa idade, mentindo desse jeito?

- Quer dizer que em outra idade, mentir não é um grande problema?... Sim, acredito mesmo que ele se limitaria a repetir o que duramente aprendeu na própria pele, durante o alcoolismo de seu pai: violência como forma de educação... Não sei não, mas, para mim, esse tipo de método educacional já está bastante desgastado. Sabe, quem não tem tempo para ouvir, nunca pode ser um bom amigo... Você entende o que quero dizer com isso? – Ela limitou-se a me olhar com aquele seu olhar perdido – Ou melhor, você sabe o que é ser e ter um amigo?... Na minha visão, amigo é aquele com quem você pode pensar alto, com quem você pode se abrir e ver a história pessoal validada em seu olhar. Amigo é alguém em cujo relacionamento não existem espaços para ponto e vírgula e, muito menos, meias verdades. Creio que estamos diante de um sério problema, se Raquel, com apenas doze anos, não consegue ver em seus pais, pessoas amigas em quem possa confidenciar suas dificuldades.

- É muito fácil falar quando não se tem filhos...

- Por um acaso, o filho de um alcoólatra precisa também se tornar um alcoólatra para ter consciência dos desastrosos resultados de uma vida sobre o cárcere do alcoolismo?... Sabe, você tem toda razão: não sei o que é ser pai. No entanto, posso lhe garantir que sei muito bem o que é ser um filho "não visto". Sei muito bem o que é ser usado como bode expiatório para que seus pais se esquivem de virar os refletores para a escuridão de suas próprias vidas e relacionamento. Sei muito bem o que é ter um irmão para ver se com a sua vinda o equilíbrio do lar seja reestruturado. Sei muito bem o que é o sofrimento e a ansiedade sufocados no peito e também o déficit de atenção gerado pela constante exposição em um ambiente regido pelo medo e pela vergonha. Sei muito bem o que é o convívio com dois adolescentes em corpos de adultos, duas pessoas pela metade, ausentes de si mesmas e, conseqüentemente, ausentes para as necessidades emocionais de seus filhos. Sei muito bem o que é ter que fazer uso de mentiras na expectativa de sobreviver nesse ambiente. Sei muito bem o que é ter uma educação pautada em ameaças de reformatório, em constante violência física, verbal e, em certos momentos, aspectos de violência sexual... Sei muito bem o que é se deparar com um livro de biologia e entrar num desespero silencioso ao chegar ao fim de uma página e perceber não ter conseguido assimilar absolutamente nada. E, o pior de tudo, é olhar para os lados e não encontrar ninguém com a sensibilidade apurada para perceber os meus silenciosos gritos implorando por socorro... Sei muito bem o que é ter a auto-estima dilacerada pela constante comparação com o meu irmão mais novo, com os meus primos ou com os filhos da vizinhança. Sei muito bem o que é ter que prostituir minha autenticidade, ainda que adoentada, em nome da aceitação condicionada de meus pais e professores. Sei muito bem o que é sobreviver ao terrível ambiente gerado pelo sistema escolar, com professores que se escondem atrás das garantias de emprego do funcionalismo público ao invés de ali estarem em nome do amor à profissão... E, para finalizar, sei muito bem o que é ter que amargar dias e mais dias em salas de terapias, em livrarias revirando estantes de auto-ajuda e psicanálise, na tentativa de colar os caquinhos da minha psique estraçalhada. Portanto, apesar de não saber o que é ser pai, sinto-me bastante apto para questionar a mãe de uma criança, para mim querida e preciosa, afim de, quem sabe poupá-la de ter que passar por tudo isso que agora lhe confidenciei...

Após ouvir atentamente o teor dos meus doloridos sentimentos de infância, um desconcertante silêncio espalhou-se pelo ar, dando a impressão que o tempo havia congelado. Sua dificuldade de me olhar nos olhos aumentou ainda mais. Percebendo seu desconforto, tratei logo de mudar de assunto, perguntado-lhe sobre os motivos de estar caminhando por aqui, carregando um enorme pacote plástico, uma vez que sempre anda para cima e para baixo com seu carro. Com alivio me respondeu:

- Jorge saiu muito cedo e precisou ficar com o carro. Tivemos que vender o outro para poder completar o valor do apartamento. Se antes nossa vida já estava bastante corrida, agora é que ficou ainda mais. Deixe-me ir, pois as meninas ficaram sozinhas em casa – disse ela, ajeitando alguns fios de cabelos que haviam caído sobre sua testa – Espero que a gente se veja antes do Natal. Dê um beijão na Deca e na Ida!

- Pode deixar. Dê um beijo nas meninas e diga para que me enviem umas letrinhas pelo e-mail. Ah, por favor!...

- Diga!

- Procure meditar um pouco sobre o que conversamos agora. Não se trata da sua vida, mas da vida da sua menina, que um dia, quem sabe, pode ter sido também você. Dê um abraço no Jorge e também um forte chute em suas canelas. Cuide-se bem!

E, meio vacilante, sob os fortes raios solares, com aquele enorme saco preto, pela calçada, seguiu cabisbaixa em seu caminhar.

INFÂNCIAS ROUBADAS








Sobre o curriculum vitae e a dignidade humana

Chegamos à padaria por voltadas 19h00min horas, conforme havíamos combinado. A casa estava bastante cheia e nos bancos mais próximos da chapa, Valquíria, com o olhar longínquo de sempre, envolta na fumaça de seu cigarro, nos aguardava.
Na portaria da casa, um senhor mal humorado, limitou-se a nos entregar o cartão de consumo, sem ao menos nos cumprimentar, hipnotizado que estava pelas imagens televisionadas de uma partida de futebol qualquer. Um dos donos, todo de preto e ostentando uma enorme corrente de ouro através da camisa aberta até o centro do peito e com uma caneta atrás da orelha, bem ao lado da porta de entrada da cozinha, silenciosamente a tudo observava.
- Ainda bem que vocês chegaram logo – exclamou ela, levando suas mãos junto às têmporas – Estou muito mal! Não via a hora de me encontrar com vocês. Estou urgentemente precisando de pessoas que falem a mesma língua e dotadas da capacidade de escutar – Disse ela, enquanto abraçava minha esposa Deca, que se limitou a um sorriso afetuoso.

- Fala mulher!... Ainda não morreu?... Fique esperta: se você não morrer, antes de morrer, você morre quando morrer! – disse-lhe em alto tom enquanto lhe abraçava fraternalmente.
- Pois é, JR! Nesta semana, o que não me faltou foi a vontade de morrer – respondeu-me em meio de uma baforada que espalhava no ar a irritante fumaça de seu cigarro.
- Mas será que você realmente queria morrer ou somente estava tentado um meio de se livrar de sua dor?
- Ah, sei lá! Só sei que me lembrei muito das conversas que tenho com vocês, durante o desequilíbrio dessa semana infernal. Eu não sei se existe esse tal de inferno depois desta vida. Se tiver, é muita sacanagem, pois de inferno, já estou cheia daqui. Lembrei-me de vocês falando sobre a questão da natureza exata de todos os nossos conflitos emocionais estarem na mente. Sabe, a cada dia que passa, vejo mais nitidamente que vocês estão cobertos de razão: está tudo no cabeção!
- Pois é, alguém já disse em algum lugar do passado: "a mente se chama mente por que mente constantemente" – respondeu-lhe Deca em meio de um sorriso malicioso.
- E outro alguém também já dizia: "a mente é um macaco selvagem pulando de galho em galho na selva do condicionamento humano" – disse-lhe tocando-lhe o centro de sua testa.
- É, JR!... É o maldito cabeção, como você sempre dizia em suas partilhas. Sinto uma imensa falta de vocês dois na sala do nosso grupo. Aquilo lá agora virou um verdadeiro encontro de mortos vivos... Tem noites em que aquilo mais se parece com uma missa de sétimo dia, só que de corpo presente... Não existe vida, só um acumulo de mentes embotadas repetindo falas do livro "Isto não é amor", ou então, os velhos chavões repetido pelos mais antigos. Arrisco até um palpite: o pior dos piores brechós de São Paulo, com certeza, é bem mais arejado e possuidor de vida do que a sala do grupo em que juntos freqüentávamos. Se continuar nessa balada, com certeza, muito em breve irá fechar. Bem que você poderiam voltar!
- Sem a menor cogitação. Só por hoje, os anônimos, para mim, é uma página virada!... Chega de rodeios. Deixemos que os mortos enterrem de vez a si mesmos e também aos outros mortos. Vamos ficar com o aqui, o agora e nós mesmos. Nada de falar do comportamento do outro ausente, ok?... Diga logo e sem florear: que bicho te pegou durante a semana?
- Nem te falo!... – respondeu-me novamente levando as mãos à cabeça em sinal de desespero.
- Desembucha mulher!
- Cara, essa semana o cabeção quase acabou comigo. Tentei fazer o que vocês têm me sugerido – ficar na observação sem tentar me comparar -... Mas, quer saber? Isso é foda! Não tem como... É tudo muito bonitinho no livro, mas não tem como: o cabeção se alimenta da comparação. De tanto me comparar, por pouco não fiquei prostrada envolta pela depressão.
- É como a própria palavra já diz: com-para-ação...
- O que tem a palavra, JR?
- Comparou, dançou! Toda comparação tem em si o poder de fazer parar a ação... Se não estiver esperta, acaba de fato, estagnando. A comparação rouba-nos toda a energia necessária para que haja uma explosão criativa.
- É bem isso o que acontece!... Olhando para o meu passado, vejo quantas oportunidades acabei por boicotar por causa dessa merda de comparação.
- Esse me parece ser o legado herdado pelos filhos de famílias disfuncionais. Estamos em nossas atividades, sempre nos comparando de forma negativa.
- É... A galinha do vizinho é que bota o ovo mais amarelinho... Eu me vejo sempre como a patinha feia da situação... Meu cabeção vivi me dizendo que eu não sou digna, de que não estou a altura e que o outro sempre é mais capacitado do que eu. Vocês não fazem idéia da enorme surra que levei do cabeção durante esta semana. Quase liguei para você, Deca... É como se eu tivesse duas vozes dentro da minha cabeça. Uma delas dizia: está vendo a merda de gente que você é?... Não se formou em nada, nem sequer completou o colegial... Nunca conseguiu parar mais que quatro meses numa empresa... Quer saber? Você vai acabar seus dias empurrando carrinho de papelão acompanhada por um pinguço e mais um ou dois vira-latas infestados de carrapatos...
- Conheço essa história! – Disse-lhe Deca em meio de um sorrisinho tímido.
- Nem mesmo um corpo atraente você tem para conseguir atrair um homem endinheirado que possa lhe salvar dessa desgraçada situação. – Disse com as duas mãos apertando a própria cintura –... Olha só para esta barriga!... Eu que sou mais nova do que você, Deca e que não tive dois filhos, tenho a barriga muito mais avantajada e flácida do que você.
- Não exagere! – Exclamou Deca.
- Cara, o cabeção não parava de bombar: "por que você não dá de vez um jeito nessa sua merda de vida?"... Cara, cheguei a pensar seriamente na idéia do suicídio.
- Não é difícil quando se tem uma mente birrenta! Mas, diga-me uma coisa: qual o porquê de tanto conflito?
- Porque até agora, não tive nenhum retornos dos vários currículos que entreguei por aí. E olha que eu só enviei currículos para empresas de pequeno porte. Imagine só se eu tivesse enviado para multinacionais... Seria mais uma folha branca com algumas poucas letrinhas em preto, amassada e atirada num cesto de lixo qualquer.
- Quais são os seus sentimentos?
- Quer mesmo saber?... Ódio! Ódio de mim mesma e desse estúpido sistema que faz esse tipo de exigência descabida de experiências comprovadas numa carteira carimbada com uma foto 3x4 qualquer. Cara eu não sou o que sou, sou o carimbo que está numa maldita carteira. Agora você já não vale mais pelo que é, mas sim, por um amontoado de letrinhas pretas numa folha branca sobre a mesa de um RH insatisfeito de uma empresa qualquer. E você faz o que se não tiver o que colocar no papel? Mente?... Sem falar que, hoje, boa parte das empresas só aceitam menininhas de 18 anos que nunca tiveram um emprego sequer... É mais cômodo: paga-se uma merreca de salário e ainda é mais fácil de manipulá-las. Esse lance da idade é outra coisa que está me pegando prá cacete.
- É a idade que está pegando ou o poder que você está transferindo para o sistema de crenças da sociedade capitalista? Não percebeu que é justamente o sistema de crenças que limita nossa criatividade e originalidade? Somos incentivados sistematicamente a ter que ter um "currículum vitae" que esteja de acordo com as especificações do mercado... E, de tanto nos preocuparmos com o que colocar no bendito currículo, acabamos esquecendo de olhar para nossa própria singularidade. Esse me parece ser o grande lance: encontrar nossa singularidade. Sem ela, realmente não passamos de uma peça altamente descartável neste sistema totalmente desalmado. Estamos sempre comparando nosso currículo, nosso visual, nossas posses, nossa história e por ai vai... Parece que essa maldição da comparação nos acompanha até a disputa das melhores lápides familiares e na quantidade de pessoas presentes em nossos enterros... Nunca somos o suficiente e, por isso, vivemos correndo atrás de pessoas que nos validem e, por mais que essas pessoas façam, nunca conseguem nos convencer... Parece ser um circulo vicioso – é como um cachorro correndo atrás do próprio rabo.
- Quer saber a real?... Não me sinto digna de um bom trabalho...
- Você acredita nessa balela de que é o trabalho que dignifica o homem? Por um acaso, não seria o homem que torna o trabalho algo digno? Creio já somos dignos por natureza!
- Olha só, já estou cansada disso tudo! Por mais que eu me esforce, não consigo ver nada que eu realmente goste de fazer. Não consigo perceber qual é a minha vocação. Às vezes chego até duvidar que isso seja uma realidade. Na real, sinto como se eu não servisse para nada, uma pura perca de tempo e energia da natureza.
- Diga-me uma coisa: o que você tem feito de diferente de ficar em casa, com um cigarro na mão, para tentar descobrir aquilo que realmente gosta de fazer?
- Ah, cara, sei lá!

- Quando você está em casa, livre dos seus afazeres domésticos, o que faz? Liga a TV e trata de se distrair com algum seriado do tipo "Hero"? Senta diante do seu computador e passa hora e horas teclando no MSN com sua sobrinha ou com uma amiga a respeito das qualidades e defeitos de seu atual pretendente? Ou então, perde-se no Orkut em busca dos amigos do seu tempo de escola? O que tem lido? O que tem pesquisado? No que tem dedicado seu tempo e energia?... Ao amuo encolhido num canto do sofá, ou no quarto escuro embaixo de um cobertor?... Será que algumas dessas atitudes serão capazes de lhe proporcionar a conscientização de suas qualidades singulares e talentos adormecidos?... Quer saber? No fundo, no fundo, fico profundamente feliz por saber que isso está fazendo com que sua cabeça fique a mil... Fico feliz por saber que você esteja chegando à um ponto de saturação total... Infelizmente, parece que nós que viemos de famílias disfuncionais, parecemos funcionar como fusca 64: somente através dos trancos... Dá para perceber nitidamente pelo seu olhar, que você não gostou nem um pouquinho do que acabo de lhe dizer.
- Não é isso!... É que você fala desse modo por que as oportunidades estão se abrindo para você. E tem mais, ás vezes, sinto que você é por demais insensível e intolerante com a dor das pessoas.
- Você tem toda razão: sou insensível e totalmente intolerante com essa tendência de algumas pessoas ficarem se comprazendo morbidamente no lamaçal da autopiedade. Não creio que ficar deitado num sofá, assistindo TV ou perdida em pensamentos depressivos em meio da fumaça de um cigarro fedorento, ou então, sair por ai derramando palavras e mais palavras em grupos de auto-ajuda, possa fazer com que você saia do estado atual da qual tanto reclama.
- Parece fácil, mas para mim não é!

- Atitude é a palavra chave. Bafo de boca não cozinha ovo. É preciso ousar pela ação. Se aventurar no aberto... Isso não é mera filosofia. Eu mesmo estou vivenciando isso neste exato momento... Em nada pode lhe ser útil, ficar justificando sua depressiva inércia dizendo que as oportunidades estão se apresentando para mim. Fique sabendo que não tenho ainda nada certo, muito menos garantias. A única certeza que tenho é a de que seu eu me permitir continuar somente resmungando, passarei mais um ano empacado na mesma situação. É preciso ousar; seguir os ditames, por vezes abafados do coração... Sinto que é um verdadeiro exercício de entrega que somente os homens e mulheres de "saco roxo" se dispõem a praticar.
- Ah, cara, mas se pelo menos eu tivesse algo de significativo para colocar no meu maldito currículo...
- Val, qual é a garantia de que uma pessoa com um currículo recheado por letrinhas representativas de uma especialidade qualquer, possa ser mais capacitada para enfrentar os constantes desafios do cotidiano com maestria e precisão? Nestes últimos anos mantive contato com várias pessoas letradas nas mais diversas especialidades e confesso que a grande maioria delas era verdadeiros analfabetos de si mesmos. Portanto, não creio que um currículo possa ser "vital" para a validação da dignidade de um ser humano. Com certeza, um ser humano não é feito do conhecimento acumulado durante quatro ou cinco anos numa escola técnica qualquer. Creio que olhar um ser humano através da tinta num papel é olhá-lo de forma fragmentária. Acredito também que em gerações vindouras, dotada de uma inteligência agora em extinção, esse tipo de atividade será considerado um verdadeiro crime. Conspiro pela vivência de num departamento de Rh, numa entrevista existir espaço para uma única pergunta:
- Você, indiferente do seu conhecimento técnico, por acaso tem a experiência do que seja estar em contato consciente com aquilo que é a essência da suprema felicidade?

- JR, ás vezes acho que você vê a vida de um modo muito dom quixotiana... Existem certas coisas que parece que nunca serão mudadas nesta sociedade.

- Sim, se continuarmos dando poder para esse sistema de crenças que hoje em dia ainda continua vingando, quem sabe. No entanto, eu prefiro conspirar de que o universo reserva um digno lugar para mim, indiferente aos valores de cotação do mercado. Tenho certeza de que existe algo que somente eu possa dizer ou fazer e que as pessoas se sentiram gratas de pagarem de forma amorosa por isso. No entanto, se eu ficar preocupado em ter que encher lingüiça num pedaço bem diagramado de papel, ou então pelos meus 43 anos sem carteira profissional devidamente assinada ou com possíveis restrições no nome... Vai ficar difícil de vivenciar essa realidade.

- Francamente?... Ainda não consigo ver a vida por esse prisma que você vê!
- Não tem problema. A fruta não cai do pé enquanto não estiver madura... Seja digna de ficar com a sua dor... Tenho certeza de que ela é o sinal fértil das contrações de parto de um novo ser humano. Espero que você não aborte esse processo com sofrimentos desnecessários. Agora, o que vocês acham de sentarmos numa dessas mesas e pedirmos por uma boa porção de fritas?
Enquanto isso, na portaria de padaria, o mal humorado senhor continuava automaticamente entregando as fichas de consumo, robotizado pelas imagens do aparelho de televisão.





















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Duelo de Titãs

Às vezes fico me perguntando, como pude ficar tanto tempo de olhos fechados para os acontecimentos ao meu redor e se ainda não continuo de certa forma, vivendo nessa mesma situação. A todo instante, acontecem fatos cheios de significação, basta somente estar atento.

Como estou com muita dor na região lombar, tratei de colocar um edredom sobre o tapete da sala para assistir com Deca, um filme de Walt Disney, "Duelo de Titãs". Antes, após fecharmos a loja, um pouco desapontados com o movimento esperado das vésperas do Natal, fomos juntamente com Ida, saborear uma boa pizza sicilliana, salpicada com pedacinho de alho frito. Para acompanhar, uma boa cerveja gelada. Mal o garçom havia nos servido o primeiro pedaço, fomos interrompidos pelos sorrisos e abraços de minha irmã e seu marido...

- Pizzaiolo, por favor, repita a dose e capriche um pouco mais no recheio!

Logo após o jantar, deitados sobre o edredom, saboreando deliciosos pingos de leite, naturais da cidade de São Lourenço, começamos a nos envolver com a trama do filme, baseado em fatos reais, retratando os absurdos das épocas acirradas de diferença racial numa cidade qualquer dos USA. Deca assistia ao filme com sua cabeça sobre meu peito enquanto eu acariciava a pele quente e macia de seu braço.

- Devia ser extremamente terrível, ter que se sujeitar a esse tipo de situação – afirmou Deca, enxugando os olhos pela sensibilidade à flor da pele.

Brancos e negros... Negros e brancos... Um verdadeiro duelo de titãs... Duelando por terem medo... Medo de fazerem diferente, medo de serem expostos ao ostracismo social...

Terminado o filme, a sede bateu forte. Deca levantou-se e da cozinha, resmungou que havia terminado a água e que não havia nenhuma bebida na geladeira para poder saciar sua sede.

- A Casa da Esfiha ainda deve estar aberta. O que você prefere?

- Não tenho preferência. O que você trouxer está bom para mim.

- Ok, volto já!

Foi só pegar o chaveiro, que o danado do nosso cachorro, Krish, saiu em disparada debaixo do sofá, abanando o rabo e tentando morder as minhas chinelas.

Na rua, uma enorme escuridão. Quatro postes estão com suas lâmpadas queimadas há mais de uma semana. Logo após nossa casa, uma barbearia, depois dela, a auto-escola com sua cobertura de zinco dando proteção aos motoqueiros entregadores da casa de esfihas. Lá dentro, logo na mesa mais próxima da entrada, quatro homens visivelmente embriagados. Do outro lado dois ou três casais. No balcão, pelo menos cinco solitários afogam suas mágoas no intervalo de suas baforadas.

Depois de pagar pelas garrafas de água e coca, um pouco emputecido pelo valor abusivo cobrado pelas mesmas, segui para casa. Cinco passos foram o suficiente para me deparar com uma cena que me fez pensar nas sensíveis palavras de Deca, durante as primeiras cenas do filme... "Devia ser extremamente terrível, ter que se sujeitar a esse tipo de situação"...

Quase que colados nas portas da auto-escola, um casal, deitados sobre alguns panos e protegidos do vento por um carrinho de lata velha... Há menos de um metro deles, uma marmita de alumínio amassada, encostada na roda traseira do carrinho. Como estavam abraçados e devido a escuridão da rua, não tive como ver a expressão de seus rostos... Tive vontade de parar e olhar mais de perto, mas, senti que estaria invadindo a "privacidade" dos mesmos...

Abri o portão e subi as escadas bastante pensativo, enquanto Krish se enrroscava entre minhas pernas... Poderíamos ser nós, ao invés deles... Deca continuava deitada sobre o edredom, com o controle remoto apontado para o aparelho da TV por assinatura.

Talvez, o racismo tenha sido de certa forma amenizado, no entanto, infindáveis parecem ser as diferenças que permanecem. Enquanto escrevo, saboreio um bom copo de coca. Deca, sobre o edredom, agora dorme ao lado de nosso cachorro. A garrafa de água está a menos de um metro deles.

Lá fora, sob o escuro da noite, o barulho das motos e as folhas de zinco da cobertura da auto-escola, dois titãs, talvez apaixonados, descansam para dar seqüência ao duelo do dia de amanhã, num país escancaradamente dividido pela corrupção, desconfiança, medo, rancor e ressentimento.


19 dezembro 2007

Second Life

De que adianta discutir qual era a cor do cavalo branco de Napoleão? Basta o minimo de seriedade e disposição para consigo mesmo e se dedicar ao estudo da própria questão e pode-se ver que a resposta já se encontra na própria pergunta. Para responder questões como essas não existe o menor sentido em participar desses grupos ou comunidades on-line repletas de discussões intelectualóides. Minha experiência é a de que, estes tipos de grupos ou comunidades, para muitos, acaba servindo como um espaço a mais para alimentar a ilusão criada de uma "Second Life". Segundo a Winkipédia, o nome "second life" significa em inglês "segunda vida" que pode ser interpretado como uma "vida paralela", uma segunda vida além da vida "principal", "real". Boa parte dos participantes desses grupos de discussão, escrevem suas idéias – isso quando suas – protegidos pela capa do anonimato: usam de pseudônimos, dados ficticios, e-mails não pessoais e ainda ocultam seus rosto para que não sejam reconhecidos. Desse modo, fica fácil criar uma identidade totalmente distinta da realidade que vivem.

Nesta semana, dois membros participantes da comunidade que mantenho no Orkut - Cuidar do Ser -, expressaram em suas colunas de recados o seguinte diálogo:

- Às vezes não entendo, como o Nelson escreve textos maravilhosos e, num bate papo via Orkut, é uma pessoa que não tolera nada? É um paradoxo! ... Falar é fácil, difícil é fazer, por isso "copiamos" um monte de leituras, principalmente se não temos a tal "autenticidade". Onde fica o novo além do que foi lido? Nosso novo, não uma cópia do "guru"...

- Concordo com você, existe um contracenso você não acha? Por isso que escrevi aquilo!...

Logo após essa troca de mensagens, um dos membros decidiu deixar para tráz sua participação na comunidade, atitude essa que já havia tomado em outros grupos, dos quais eu também participava.

Realmente, o simpático cidadão estava coberto de razão: sou realmente intolerante e acho puro contracenso gastar meu tempo e energia em discussões acaloradas por detrás da impessoalidade de uma tela de computador. Não tenho a menor tolerância para esse tipo de questionamento que na maioria das vezes, não condiz com as reais necessidades psiquicas do questionador. Ficar chovendo no molhado ou então enxugando gelo, isso sim é puro contracenso. Já tenho bastante experiência com esses grupos de "discussão". São muitos os participantes, mas rarissimos os sinceramente sérios. Raros são os membros que fazem uso dessa ferramenta tecnológica para realmente aprenderem sobre si mesmos. Ao contrário, alguns fazem uso dessa ferramenta como forma para darem vazão à sua "Second Life", repletas de discussões vazias, disputas de conhecimentos arcaicos e disfuncionais, vitimados por uma espécie de "intelectualose" que quase sempre acabam terminando em agressões sutis e, por vezes, declarada. Aí, os membros mais depressivos, vitimas da autocomiseração, se retiram "temporariamente" do grupo, com frases enxarcadas de autopiedade. Nesse período, ficam observando o movimento da comunidade em silêncio. Digo temporariamente, porque, como não conseguem ficar com o vazio gerado pela ausência do grupo, em questões de dias ou semanas, retornam ao mesmo, quase sempre com frases adocicadas. Já vi isso acontecer, não só com eles, mas, também comigo, portanto, posso falar com conhecimento de causa.

O que penso ser um verdadeiro "contracenso", é acreditar que manter "discussões acaloradas" com adeptos da "second life" possa nos ajudar no desvelar de nossa autenticidade. Não vejo como chegar ao real de nós mesmos, quando já partimos de uma postura irreal. Cresci desse modo, dentro da comunidade familiar onde nasci. De certo, não será numa comunidade on-line, onde eu escolheria para dar continuidade a um modo de ser que durante anos e anos me manteve afastado de mim e de uma genuína relação com os demais seres humanos, nutrida pela capacidade de me expor retina diante de retina.

Então, reafirmo a clareza de visão do meu simpático amigo on-line: nessas questões – além de outras - sou realmente um ser humano intolerante. Só por hoje, escolho continuar sendo intolerante com esse tipo de disputas intelectuais, repletas de perguntas, que não tendem ao autoconhecimento mas sim a um lado tendencioso de criar embaraços, confusão e intriga. Não estou aqui para alimentar uma "second life", nem minha e nem de ninguém. Ainda sou um declarado entediado, um insatisfeito sem medo de dar o nome e a cara para bater, em busca das minhas próprias respostas que possam me revelar a minha própria autenticidade. Se por agora, ainda sou uma mescla de pensamentos de terceiros, não fugirei disso. Esse sou eu! Portanto, aos que me acharem intolerante, indico como porta de saída, a mesma porta pela qual entraram na comunidade. Com certeza, neste vasto mundo on-line, grupos dispostos a alimentar ainda mais a irrealidade humana é o que não falta.

E quanto ao amigo que alegou haver contrancenso entre o que escrevo e o que vivo, deixo a seguinte resposta, uma pérola deixada por Walt Whitman:

"Contradigo a mim mesmo por que sou vasto".

PS - Aos amigos escritores deixo uma pequena observação: cuidado! Em breve estaremos sendo acusados de plágio por fazermos uso da lingua pátria que depois de ouvirmos, "copiamos" de nossos antecedentes!


TIRE A MÁSCARA QUE ESCONDE O SEU ROSTO

Diga, quem você é me diga
Me fale sobre a sua estrada
Me conte sobre a sua vida

Tira, a máscara que cobre o seu rosto
Se mostre e eu descubro se eu gosto
Do seu verdadeiro jeito de ser

Ninguém merece ser só mais um bonitinho
Nem transparecer consciente inconsequente
Sem se preocupar em ser, adulto ou criança

O importante é ser você, mesmo que seja, estranho
Seja você, mesmo que seja bizarro bizarro bizarro
Mesmo que seja, estranho, seja você, mesmo que seja

Tira, a mascara que cobre o seu rosto
Se mostre e eu descubro se eu gosto
Do seu verdadeiro jeito de ser

Ninguém merece ser só mais um bonitinho
Nem transparecer consciente inconsequente
Sem se preocupar em ser, adulto ou criança

O importante é ser você, mesmo que seja, estranho
Seja você, mesmo que seja bizarro bizarro bizarro
Mesmo que seja, estranho, seja você, mesmo que seja

Meu cabelo não é igual
A sua roupa não é igual
Ao meu tamanho não é igual
Ao seu caráter não é igual
Não é igual, não é igual
Não é igual

I had enough of it but I don't care
I had enough of it but I don't care
I had enough of it but I don't care
I had enough of it but I don't care

Diga, quem você é me diga
Me fale sobre a sua estrada
Me conte sobre a sua vida

E o importante é ser você, mesmo que seja, estranho
Seja você, mesmo que seja bizarro bizarro bizarro
Mesmo que seja, estranho
Seja você, mesmo que seja bizarro bizarro bizarro
Mesmo que seja estranho.

O que é a Arte de Cuidar do Ser?

17 dezembro 2007

ROTINA

O senso comum governa a nossa rotina, acabando por nos conduzir como a marionetes. Nos transformamos em massa de manobra daqueles que controlam as ferramentas formadoras de opinião. Com nossa atenção dispersada por incontáveis besteiras reunidas num produto chamado "aldeia global", perdemos a força que nos alçava aos vôos mais altos.

Autor: Martinho Carlos Rost

Normose tecnológica e industrial

A pergunta que eu faço é a seguinte: a humanidade está mais feliz? O mundo hoje é um lugar melhor graças a ciência e a tecnologia? Fazemos compras e surfamos na web, mas, ao mesmo tempo, nos sentimos mais vazios, mais sós e isolados uns dos outros, do que em qualquer outra época. Tornamo-nos uma sociedade artificial que tem presa em procurar um significado, mas que significado? O trabalho é chato; as férias, estressantes. Nos endividamos nos shoppings, para comprar mais coisas e tentar preencher as lacunas em nossas vidas. Não admira estarmos desorientados.

Frase do personagem Palmer Joss no filme: CONTATO

DESAMADO MUNDO NOVO

A Medicridade da Normose Tecnológica Industrial

16 dezembro 2007

A Normose do Conformismo Religioso

Para Além da Normose

PARA ALÉM DA NORMOSE
"As emoções destrutivas ligadas à cultura, matam em nós mesmos a harmonia e a paz de nossa sabedoria primordial".
Pierre Weil
O poder castrador de nossa sociedade não é de ordem sexual, como afirmava Freud, mas sim, espiritual e seu nome é: normose - a patologia da normalidade. Ela impõe a sociedade, uma cultura do sucesso, sendo que o fracasso e o ostracismo são uns dos maiores medos do normótico, que busca por segurança em estados temporários e ilusórios, nos objetos exteriores, em conquistas e sucessos efêmeros não sabendo que a verdadeira segurança é uma condição subjetiva, resultado de uma experiência transpessoal, que se revelará de forma espontânea e natural no momento do despertar da verdadeira consciência. O desastre é eminente para o normótico que faz depender a sua segurança das parafernálias externas e não da paz da vida interna, a qual não depende das circunstâncias da vida externa. O normótico vive fazendo investimentos e seguros para sua vida, mas não investe na espiritualidade, sendo esperto por alguns momentos, mas um tolo a longo prazo, pois leva muito tempo para ele constatar que o acúmulo de riquezas, prestígio e poder é apenas uma troca, e não o fim, da sua falta de segurança. Em sua busca insana pela segurança financeira, o normótico perde sua saúde para depois pagar de bom gosto tudo o que conquistou para ter novamente sua saúde física, mental e emocional. Na tentativa de conquistar a "pseudo-segurança" para a sua vida, o normótico esquece de vivê-la e como resultado vive num desespero silencioso, precisando às vezes chegar ao topo da escada do sucesso, para amargamente descobrir que a mesma estava encostada na parede errada. É justamente neste desespero silencioso que uma fração de sanidade pode romper as paredes da normose e levá-lo ao questionamento do tipo: Espelho, espelho meu, será que algum dia eu já vivi?

O NORMÓTICO: Um entediado anônimo


O normótico, ou se preferir, o entediado anônimo - é vítima de um estado de conflito interior prolongado. Na tentativa de anestesiar a dor resultante desse conflito interior, das esperanças frustradas e dos sonhos abortados, injeta "novocaína" - o anestésico do novo - em muitos aspectos da sua personalidade. Ele não sente nada de maneira vívida: nem alegria, nem tristeza, nem esperança, nem desespero. As coisas acontecem, mas ele não as registra pois é preciso muita coragem para se permitir sentir. É alguém que vive num eterno confinamento solitário causado por suas crenças disfuncionais; alguém que se trancou numa rotina solitária e engoliu a chave. Alguém que vive uma vida unilateral e morre em estado imperfeito. Não possui a consciência de que a Grande Vida lhe deu uma alma, uma mente e um corpo, os quais deve procurar desenvolver de forma harmônica. Vive dominado pelas influências do sistema de crenças do modismo social permitindo que a sociedade continue lhe impondo suas ilusões por meio de um fortíssimo esquema de marketing que o bombardeia de forma brutal durante as 24 horas do seu dia a dia. Não possuí a coragem de virar a mesa contra o clichê social e assumir a responsabilidade pela sua maneira de pensar e pelo controle de sua vida. Não fica difícil constatar os resultados desse caótico modo de viver: medos, preocupações, paranóias, estresse, insatisfação, descontentamento e toda espécie de somatização oriunda de uma pseudofelicidade. Não consegue perceber que sem satisfação interior, nenhum acúmulo de sucesso exterior consegue trazer felicidade e segurança duradoura. Como Adão e Eva, vive exilado do jardim das delícias da unidade consciente com Deus, pela ação da serpente do conformismo, tornando-se com isso, um ser limitado devido ao crédito dado ao sistema de crenças do clã a que pertence.

O normótico opta por uma forma de pensar pelo simples fato de muitas pessoas optarem por ela ou por constar de algum livro que a sociedade considera como sagrado; não consegue avaliar por si mesmo sobre a questão e ajuizar se ela é razoável ou não. Para ele, se prender as velhas rotinas consagradas pela sociedade, é muito mais seguro do que se aventurar ao Aberto. É aquele cujo desejo mais profundo ainda dorme, mas que teme a ação perigosa de acordar. É como um cavaleiro que perdeu o domínio da carruagem e é arrastado pelos cavalos dos instintos degenerados. Vive atrelado à matéria, com o Ser ainda fechado para o que é eterno, caminhando sobre uma corda bamba, em chamas, pronta para arrebentar. Não possuí a consciência de que não é um ser material com necessidades espirituais ocasionais; mas sim, um ser espiritual com necessidades materiais ocasionais. Prefere a pseuda-paz do conformismo social do que a angústia da busca pelo seu vir-a-ser. Passa a maior parte de sua vida com um sentimento de vazio e falta de propósito tão grande, que é como se faltasse uma parte de si mesmo. Sem que se perceba, muito do que faz o leva cada vez mais para a sensação de vazio interior. Procura preenchê-lo com acúmulo de dinheiro e matéria, com prestígio e reconhecimento profissional, chegando muitas vezes a extremos como o excesso de comida, bebida, sexo ou até mesmo às drogas. Quanto maior é o seu desespero em ocupar esse vazio interior, mais vazio se sente. Em nenhum momento, lhe ocorrer que essa sensação de ausência possa ser de natureza espiritual, muito embora, esse conhecimento lhe chega de varias maneiras. Somente quando a dor chega ao seu extremo que ele começa a olhar para dentro de si e a buscar por algumas práticas espirituais, através das quais, finalmente, pode encontrar o verdadeiro conceito de objetivo e plenitude.

Normose: Uma fábrica de clichês


Boa parte dos normóticos está limitada pela identificação corporal. Não possuem a consciência de que é justamente esse tipo de limitação sem fundamento que os mantém longe de qualquer possibilidade de estados alterados de consciência. O normótico, quando não há nada para fazer, pensa em todas as possibilidades de atividades, menos, tentar se sentar e experiênciar o Ser; é alguém que sofreu a ferroada do não ser, a dor de uma vida não vivida, das estradas não exploradas, dos riscos não sofridos, das pessoas não amadas, dos pensamentos não realizados e dos sentimentos não apreciados. Sua normose é fruto do resultado do pecado da omissão. É alguém que passa muito de seu tempo se iludindo, deliberadamente, criando álibis para encobrir suas fraquezas e que não possui a consciência de que se utilizasse seu tempo de maneira diferente, esse mesmo tempo seria suficiente para curar seus defeitos de caráter e imperfeições, de modo que então não seriam necessários os álibis.

O normótico vive principalmente para si próprio e sua família. Em raríssimos casos existe qualquer visão mais elevada do que essa. Poucos são capazes até mesmo de dar um olhar em direção aos pedintes que vem em sua direção nas paradas do trânsito. Quase toda sua experiência é a de viver para si mesmo e sua família, com apenas um minúsculo fragmento deixado para os outros.

Quanto a mensagens de cunho espiritual, as rejeita por medo de que suas verdades possam lhe convencer e ter, então, de abandonar seu modo de vida disfuncional com suas conseqüentes zonas de conforto. Devido a esse tipo de medo, vive sob a custódia de uma elite dominante da mesma forma como o gado está sob os cuidados dos boiadeiros. Não raro são às vezes em que se obriga a fazer coisas das quais se envergonha, alegando quando descoberto, que está cumprindo com o seu dever; é um ser que sofre devido à alienação e desconexão com o Ser que o faz ser. Em nome da aceitação condicionada por parte das pessoas significativas de sua vida, negligencia a si mesmo, abandonando-se e fechando-se para o mundo devido ao medo de ser exposto à vergonha tóxica e a dor da solidão, tendo como resultado dessa atitude, o desenvolvimento da incapacidade de amar de forma incondicional.


O normótico é aquele que se conforma em ouvir sobre Deus, rezar para Deus e pela espera de um encontro com Deus no próximo mundo: alguém que não consegue sair da crença para ousar pela busca da experiência. Não tem a percepção espiritual, que torna Deus uma realidade demonstrável; está convencido de que Deus é uma necessidade, mas ainda não está convencido de Deus. Prefere se agarrar na concepção oriunda da experiência pessoal de Deus vinda de terceiros. Vive preso a um ciclo compulsivo de hábitos, comportamentos e relacionamentos profissionais e/ou afetivos mesmo que seus prazos de validade estejam vencidos e repetidamente se mostrando disfuncionais. Sua falta de sinceridade para consigo mesmo é uma das maiores e mais potentes barreiras do processo de vir-a-ser. A insinceridade corrói a integridade de sua Alma e destrói o fortalecimento da razão. Vive aprisionado a um modismo social que determina um comportamento padronizado dentro de uma sociedade mecanicamente padronizada e com isso, autoboicota todo seu potencial criativo. Se ao menos soubesse da existência de um estilo de vida imensamente mais rico e profundo do que toda essa existência apressada - dotada de serenidade, paz e poder, sem pressa - se soubesse como a vida interior é realmente poderosa, não hesitaria nem um instante em abandonar todas as coisas que barram seu caminho para ir em direção a ela e assim constatar por si mesmo, que tudo aquilo que a normose tem para lhe oferecer para beber é tão somente um copo d´água salgada, cujo propósito é o de lhe deixar ainda mais sedento.

Normose: um substituto para o sofrimento genuíno.

Segundo Sri-Aurobindo:
"Os homens caçam pequenos sucessos e maestrias triviais dos quais se retiram exaustos e enfraquecidos; enquanto isso, toda a infinita força de Deus no universo espera em vão para colocar-se a seu dispor".

Há muitas pessoas que se tornam neuróticas porque são exclusivamente normóticas, como há aqueles que são neuróticos porque não podem ser normóticos. Já afirmava Jung, que todos nós nascemos originais e morremos cópias.

O normótico vive infeliz, devido ao fato de pensar só em si mesmo, no que deseja, no que gosta, em qual o respeito que os outros lhe devem dar. Com essa maneira de ser, consegue estragar tudo o que toca; fazendo uma miséria com tudo que Deus coloca em seu caminho. Não se faz necessário um grande estudo para se constatar a veracidade dessa afirmação. Basta uma boa olhada na incidência do alcoolismo, do consumo de drogas, do sexualismo compulsivo e do suicídio em nossa sociedade contemporânea para ver a falência relativa da normose. Como nos dizeres de Paramahansa Yogananda, Tarthang Tulku, Paul Brunton e Krishnamurti:

"As pessoas tentam encontrar felicidade em bebida, sexo e dinheiro, mas as páginas da história estão repletas de relatos de suas decepções. O tempo que passei meditando tornou minha vida inconcebivelmente rica. Mil garrafas de vinho não produziriam a alegria que a meditação me deu. Nessa alegria encontra-se a orientação consciente da sabedoria de Deus" - Paramahansa Yogananda.

"Quaisquer que sejam as nossas propensões ou crenças, não podemos escapar de uma consciência cada vez mais aguda da nossa insatisfação. Quando olhamos em volta, vemos poucos sinais de verdadeira felicidade. Mesmo os ricos enfrentam problemas com o tédio, e são incapazes de encontrar satisfação permanente em seus bens ou na busca da realização de seus desejos. Sucesso social ou profissional não traz necessariamente contentamento; uma vida de muita luta e competição geralmente produz problemas complexos e, por fim, grande exaustão". Tarthang Tulku - Conhecimento da Liberdade - Ed. Dharma

"Pode chegar uma hora em que o homem se canse de todos os círculos sociais, da incessante e indigna competição profissional e do mundo dos negócios, e deseje afastar-se de tudo isso - uma hora em que ele comece a ver através das futilidades, superficialidades e estupidez que lhe são próprias. Que outro recurso podem tentar ter, depois de tentar os caminhos comuns - bebida, sexo, drogas ou religião -, além da busca?" - Paul Brunton - A Busca - Ed. Pensamento

"Nossas aquisições são um meio de encobrirmos o nosso próprio vazio; nossas mentes são como tambores ressonantes, batidos pelas mãos de cada um que passa e produzindo muito barulho. Esta é a nossa vida, o conflito gerado pelas fugas que nunca satisfazem, e por nossas crescentes misérias". Krishnamurti - O Verdadeiro Objetivo da Vida - Ed. Cultrix

Do mesmo modo que a moderna produção em massa requer a padronização das mercadorias, a normose também requer a padronização do homem, e o conformismo a essa espécie de padronização é chamada de "normalidade". Na verdade, por medo do abandono e da solidão, o normótico se conforma com essa "normalidade" num grau muito mais alto do que seja forçado a se conformar. Erick Fromm já alertava anteriormente para os motivos geradores desse conformismo. Segundo ele:

"... a união com o grupo é a forma preponderante de superar o estado de separação. É uma união em que o eu individual em larga medida desaparece e em que o objetivo é pertencer ao rebanho. Se sou como todos os outros, se não tenho sentimentos ou pensamentos que me tornam diferente, se me conformo em matéria de usos, roupas e idéias, ao modelo do grupo, então estou salvo - salvo da terrível experiência da solidão...Todo homem, por natureza, possui no mais profundo de si mesmo, o conhecimento da verdade, mas que, no decorrer de seu desenvolvimento pessoal, com relação ao ambiente e a sociedade, é obrigado a "removê-lo", perdendo, desta maneira, sua sensibilidade e sua capacidade de perceber a realidade profunda das coisas".. Erick Fromm

A mediocridade da normose tecnológica e industrial


"Não importa o quanto às pessoas estejam insatisfeitas com as suas vidas, elas continuam a fazer exatamente o que eles sempre fizeram. Elas nunca param para pensar como poderiam por um fim em seus problemas. Ao invés disso, elas apenas reclamam, culpam seus maridos ou esposas, seus patrões, o governo ou a atualidade....A maioria das pessoas vive em sua personalidade exterior comum e ignorante que não se abre facilmente ao Divino; mas há um ser interior dentro delas, do qual elas não sabem, que pode se abrir facilmente à Verdade e à Luz. No entanto há uma parede que as separa dele, uma parede de obscuridade e não-consciência. Quando ela desmorona, então há uma libertação." Sri Aurobindo - La Sintesi dello Yoga - Vol. II

"Hoje, mediocridade virou padrão. Se você for ver quem são as pessoas mais ricas na MPB, todos são músicos medíocres, e por quê? As empresas, as gravadoras que tornaram essas pessoas ricas também ficaram ricas. Então, uma rádio, que não passa de uma rádio comercial, uma televisão comercial, uma gravadora, que não passam de uma fábrica de goiabada ou de sabão em pó, estão aí para faturar. Preservar valores culturais não tem o menor sentido para esse pessoal. O negócio deles é o balancete no final do mês, quanto saiu e quanto entrou. Se está no verde, tudo bem. Se entrou no vermelho, tira todo o mundo e muda tudo. Vender, vender, vender. Eles vão atrás de quem está comprando. Quem está comprando? É o jovem e o povão. Então, é para esse público que eles estão direcionados. Aí eu repito: a maior parte dos Estados do Brasil já se entregou à banalização, à superficialização da arte." - Ivan Lins - Jornal A NOTICIA

Existe no normótico uma resistência de ordem espiritual, que é uma recusa de crescer, de frutificar, de se transformar, uma recusa constante de se entregar a uma Vontade Superior, a qual faz com que se conforme com sua condição humana e se recuse a experiênciar Deus em si mesmo.

Por não vivenciar essa experiência de unicidade interior, não consegue superar a identificação ilusória de separatividade. Vê-se como um ser separado de si mesmo, dos outros seres humanos e do próprio Universo. Esse tipo de posicionamento normótico diante da sua própria existência leva-o a mediocridade...

"A mediocridade processa idéias como um triturador, misturando tudo numa massa uniforme, eliminando nuances, detalhes, sabores, cores, transformando tudo numa coisa só, na maioria das vezes, cinza. E sempre com o respaldo de um líder, de uma tese, de uma idéia". Luciano Pires - Brasileiros Pocotó

Essa mediocridade faz com que o normótico permita a existência de um sistema tecnológico industrial imediatista e inconseqüente, isento de uma genuína responsabilidade social. Podemos encontrar respaldo para esta afirmação neste texto de Sogyal Rinpoche:

"A sociedade moderna é em larga escala um deserto espiritual em que a maioria imagina que esta vida é tudo o que existe. Sem qualquer fé autêntica numa vida futura, a maioria das pessoas vive toda a sua existência destituída de um sentido supremo... crendo basicamente que esta vida é única, as pessoas do mundo moderno não desenvolveram uma visão a longo prazo. Assim, nada as refreia de saquear o planeta em que vivem para atingir suas metas imediatas, e agem com um egoísmo que pode tornar-se fatal no futuro". Sogyal Rinpoche - O livro Tibetano do Viver e do Morrer - Pág. 25

Ainda no mesmo livro, encontramos um texto de José Antonio Lutzenberger, que demonstra que a total insensatez da normose industrial:

..."a sociedade industrial é uma religião fanática. Estamos derrubando, envenenando e destruindo todos os sistemas vivos do planeta. Estamos assumindo dívidas que nossos filhos não poderão pagar... Agimos como se fôssemos a última geração do planeta. Sem uma mudança radical no coração, na mente, na visão, a Terra se extinguirá como Vênus, calcinada e morta".

A nova tecnologia é uma espécie de arte circense de inventar necessidades desnecessárias que se tornam absolutamente imprescindíveis e que leva o normótico de forma inconsciente, a um modo de vida estressado, apressado, rotineiro, excessivamente barulhento e repleto de "novidades". Mal possuí tempo para respirar ou para aprender a usar o "novo" lançamento da tecnologia. Quando ele esta quase se acostumando com seu uso, o mesmo já se tornou obsoleto e "novamente" se permite ser bombardeado pela mídia da "novocaína". Dentro desse ritmo frenético e consumista, não sobra muito tempo para o questionamento da real necessidade dos mesmos. O resultado é sempre igual: a mídia lhe impulsiona com as promessas de satisfação, fazendo com que o normótico entre num processo compulsivo que só termina quando consegue conquistar a sua "nova droga de escolha". Digo droga, pois este modo consumista tem como função primordial lhe anestesiar temporariamente do seu estado de monotonia e falta de sentido existencial. Preso a este ciclo vicioso, o normótico corre o risco de nunca tomar a consciência de que somente por meio de uma experiência transpessoal, que transpasse os seus sentidos, poderá ter removida a grande monotonia que sente e quem sabe assim, perceber a urgente necessidade de buscar por uma prática espiritual, que preencha as verdadeiras necessidades de sua alma. Como nos dizeres de Paul Brunton:

"Neste país, os homens estão mais ansiosos para melhorar suas fábricas do que a si mesmos. Aceitam suas próprias imperfeições com complacência e satisfação, mas as imperfeições de seus automóveis - nunca! Entretanto, qual é a utilidade de correrem de um lugar a outro nesta terra se nem mesmo sabem por que estão aqui... Usamos todos os momentos possíveis para cultivar os campos incertos do comércio ou flores efêmeras do prazer, mas somos incapazes de reservar um momento para cultivar os campos seguros do espírito dentro de nós ou as artemísias duradouras da devoção divina".
Do livro: A BUSCA - Ed. Pensamento

Fica claro para mim, que enquanto o normótico se deixar arrastar pelos apelos da mídia, da tecnologia e da moda e não optar por uma simplicidade voluntária, (ver Simplicidade Voluntária - de Duane Elgin - Ed. Cultrix), nunca saberá por experiência própria, o que vem a ser a verdadeira realização pessoal e muito menos, tomar consciência da natureza e finalidade de sua existência. Ele precisa tomar consciência que, na essência dos apelos da tecnologia e da moda, sempre haverá um componente de incerteza e de insegurança. Somente quando chega a um ponto de saturação em relação aos ditames da sociedade, somente quando percebe que suas conquistas tecnológicas, alegria e suas amizades são todas superficiais, pode estar apto para iniciar seu processo de "desnormotização" através de um aprendizado de uma nova maneira de viver. Encerro este tópico com um texto de Tarthang Tulku:

"Em toda parte do mundo as pessoas passam a vida sonhando em desenvolver-se espiritualmente, sem jamais fazer muita coisa nesse sentido. Neste país, sobretudo, é preciso muita força de vontade para que alguém se desenvolva interiormente. Somos apanhados na competição pelas vastas reservas não exploradas de poder, que a tecnologia moderna colocou a nossa disposição. Nós vivemos sob intensa pressão para nos conformarmos com as regras e as restrições da nossa sociedade urbana "civilizada". A estrutura está enraizada de tal maneira que, se não nos conformarmos ser-nos-á difícil sobreviver. Assim, muitos de nós nos sentimos constrangidos embora sejam poucas as pessoas capazes de tomar a decisão de mudar suas vidas e menos ainda os que têm o poder de fazê-lo."

A normose educacional

"A verdadeira educação é aquela que conduz à liberação". Shrii Shrii Anandamurti

A normose é fruto de um sistema educacional que não ensina ao ser humano a arte de viver, de amar incondicionalmente, a arte de meditar e muito menos a arte de morrer. Nosso sistema de educação não é educacional, muito pelo contrário, é um sistema fragmentário, reducionista e formador de uma normose da especialização competitiva, onde os valores do ser são "normalmente" substituídos pelos valores de códigos obsoletos do ter que tem a função de tornar o ser humano uma outra pessoa, alguém que não pode ser. Para elucidar, gosto de citar uma frase do Psicólogo, Antropólogo e Escritor, Roberto Crema, seguida de outro pensamento de Tarthang Tulku:

"a especialização é um tipo de modelagem para a alienação e nós temos que encarar os fatos. A definição que eu lapidei ao longo de muitos anos mais própria do que seja um especialista: "É uma pessoa um pouco exótica, que sabe quase tudo de quase nada, dotado de uma certa imbecilidade funcional, que aprendeu a fazer um cacoete, que aprendeu a apertar um parafuso,que tem uma viseira, que se orgulha da unilateralidade de visão e de ação e que perdeu desgraçadamente a visão da inteireza".

"A educação formal nos ajuda a fazer melhores escolhas para nossa vida, mas não oferece garantia alguma de que nossas escolhas não nos levarão ao sofrimento. Depois de muitos anos de experiência, talvez consigamos finalmente reconhecer onde se encontram as nossas maiores promessas de satisfação. A vida é a nossa maior mestra, mas suas lições são geralmente aprendidas tarde demais, e à custa de muito sofrimento". Tarthang Tulku - Conhecimento e Liberdade - Ed. Dharma

Justamente pelo fato de aceitar esses códigos obsoletos é que muitos normóticos acabam desenvolvendo a neurose. Desde o primeiro dia de vida, as pessoas estão sendo treinadas para serem condicionadas ao sistema de crenças em que nasceram. Isso é conveniente para a elite dominante. Esse condicionamento normótico reduz o ser humano a um estado de fragmentação e retardamento mental. Desde a mais tenra idade, o ser humano é educado para viver num sistema que não lhe permite o questionamento, a dúvida, e um ser humano que não é capaz de duvidar, de questionar, de dizer "não", de forma alguma poderá ser capaz de potencializar os seus talentos e ser ele mesmo; viverá de aparências e quem vive de aparências, só aparentemente vive. Por não ousar sair da limitação imposta pelo sistema em que vive e se aventurar no Aberto, no desconhecido, o normótico não consegue de forma alguma, potencializar os seus talentos, sua criatividade, se fechando assim, para toda possibilidade de expansão da própria alma. É natural que sua vida, com o passar dos dias, entre numa dolorosa rotina e falta de sentido. Swami Muktananda formulava de tal forma este ponto de vista:

"Durante muitos anos você esteve acumulando as impressões do mundo. Esteve enchendo a sua mente e coração com a noção de que é pequeno, que é fraco, que é pecador. Aprendeu estas coisas de seus professores, de sua sociedade e de todos os livros sagrados de diferentes religiões e passou a acreditar neles. Pensava a seu respeito como uma criatura limitada, aprendeu a ver pecado no Ser puro. Como resultado, você vem nadando num oceano de sentimentos limitados - desejos e anseios, apego e aversão, raiva e ciúme. Agora a sua mente e coração tornaram-se tão nublados e embotados, que você não pode ver a luz do Ser e, mesmo quando alguém lhe diz que você é o Ser, você não consegue aceitar. Por isso você precisa fazer sadhana (prática espiritual) Sadhana é o meio pelo qual você pode tornar seu coração puro e forte o bastante para reter o conhecimento da verdade".

O que acontece é que o normótico não consegue ter a consciência que por detrás dessa busca desenfreada por segurança e status, o que inconscientemente procura é pelo preenchimento de sua sede de plenitude. Esse tema já foi explorado de forma brilhante pela escritora Christina Grof, em seu livro editado pela Editora Rocco, intitulado Sede de Plenitude - Apego, Vício e o Caminho Espiritual. Podemos confirmar este ponto de vista, nos pensamentos de um outro grande escritor e poeta da espiritualidade, Paramahansa Yogananda:

"Em tudo que buscamos - dinheiro e prazeres sensórios - estamos, na verdade, procurando Deus. Somos garimpeiros de diamantes que descobrem, em vez disso, pedacinhos de vidro brilhando ao sol. Atraídos por esses vidrinhos e momentaneamente ofuscados por eles, esquecemo-nos de continuar procurando os diamantes autênticos, muito mais difíceis de achar... O homem é como um fantoche. Os cordéis de seus hábitos, emoções, paixões e sentidos comandam a dança. Amarram sua alma. Quem não quer ou não pode cortar os cordéis para conhecer Deus, não O encontrará... Precisamos ser capazes de renunciar a tudo para conhecê-Lo: "Buscai, primeiro, o reino de Deus, e todas essas coisas vos serão acrescentadas."...Você deve conceber Deus como a necessidade prioritária de sua vida. Quebre as algemas da limitação, dos hábitos obscuros e da rotina diária, mecânica... Queridos, já fui como vocês, andei pela Terra procurando a verdade e a felicidade, mas tudo que prometia alegria me deu sofrimento, e voltei-me então para Deus. Cada um deve descobrir a própria divindade e conquistar para si próprio o reino de Deus".

A normose exerce sobre a massa da sociedade uma espécie de hipnose refletida na busca do status por meio de um materialismo grosseiro, apoderando-se de sua energia vital como uma sanguessuga no corpo. Essa hipnose faz com que o normótico não se dê conta da sabedoria contida nas sábias palavras de Jean Jacques Rosseau: "Obtém-se tudo, tendo dinheiro, menos, bons costumes e bons cidadãos".

Para o normótico a vida espiritual é uma espécie de mito ou um motivo de chacotas; ele apresenta as mais absurdas espécies de desculpas para não iniciar uma prática espiritual ou para não continuá-la se a iniciou, achando-a enfadonha, vazia ou demasiada cansativa e não é raro, vê-lo fazer comentários e piadinhas de mau gosto em relação àqueles que vivem uma busca espiritual. Transcrevo abaixo, textos de alguns autores espiritualista que elucidam bem a ação dessa forma de hipnose materialista:

"Aqueles que se encontram demasiado absorvidos pelos encantos de uma cobiça excessiva, pelos tórridos vapores das paixões desordenadas ou pelo turbilhão das atividades incessantes, talvez desdenhem dessa disciplina, tachando-a de vaga e insípida. Paciência! Mas assim como a vida termina por triunfar (embora secretamente) sobre a morte, assim também a vida espiritual com todo o seu desenvolvimento e riqueza terminará por triunfar ostensivamente sobre o materialismo sem alma dos nossos dias". Paul Brunton - A Busca do Eu Superior - Ed. Pensamento

"Às vezes penso que a maior aquisição da cultura moderna é sua brilhante promoção do samsara e suas estéreis distrações. A sociedade moderna me parece uma celebração de todas as coisas que nos afastam da verdade, fazendo difícil viver para ela e desencorajando as pessoas até mesmo de acreditar que ela existe... Esse samsara moderno alimenta-se de ansiedade e depressão que ele próprio fomenta, e para as quais nos treina e cuidadosamente nutre com um mecanismo de consumo que precisa manter-nos ávidos para continuar funcionando. O samsara é altamente organizado, versátil e sofisticado. Investe sobre nós de todos os lados com sua propaganda, criando à nossa volta uma cultura de dependência quase inexpugnável. Quanto mais tentamos escapar, mais nos sentimos enredar nas armadilhas que ele tão engenhosamente nos prepara..." Sogyal Rinpoche - O livro Tibetano do Viver e do Morrer - Pág. 41

"...Hoje, o homem tornou-se tão materialista que ele teme qualquer experiência, exceto a dos sentidos. Ele acredita que somente aquilo que ele pode experimentar por meio dos sentidos é uma experiência verdadeira, e que aquilo que não é experimentado por meio dos sentidos é alguma coisa desequilibrada, alguma coisa que deve ser temida; isso significa penetrar em águas profundas, algo anormal, pelo menos um caminho inexplorado. Com muita freqüência o homem teme cair num transe, ou ter um sentimento que é incomum, e pensa que aqueles que vivenciaram tais coisas são fanáticos que perderam a razão. Mas não é assim. O pensamento pertence à mente, o sentimento, ao coração. Por que alguém deveria acreditar que o pensamento está certo e o sentimento, errado?" Sufi Hasrat Inayat Khan - O Coração do Sufismo - Ed. Cultrix

"Ao trabalhar com tantas pessoas diferentes ano após ano, ouvi jovens e idosos expressarem os mesmos sentimentos. Muitos são aqueles que, apesar de riqueza, educação e sucesso profissional, estão insatisfeitos com suas vidas, e sentem uma profunda fome interior que não sabem como saciar... Debaixo da superfície próspera das nossas vidas, ainda experimentamos frustração e confusão, ansiedade e desespero. Dentro das nossas sociedades, mesmo os mais afortunados têm pouca esperança de liberação completa da frustração e insatisfação". Tarthang Tulku - Conhecimento da Liberdade - Ed. Dharma

Fica portanto, claro para mim, que a normose, resultado de um viver egocêntrico, é uma das maiores barreiras ao desenvolvimento espiritual, e tem como função primordial, frustrar a abertura dos olhos de nossa alma e o conhecimento de sua natureza imortal.

Normose tem cura para quem procura

"Ninguém precisa se envergonhar de estar mental e emocionalmente doente, pois é a coisa que normalmente acontece com os que fazem parte da grande massa, isto é 95% da população. E fazer parte dos 5% restantes pode até dar uma sensação de isolamento". Livro Bronze da Irmandade de N/A - Neuróticos Anônimos

Quando o normótico começa a tomar consciência da sua verdadeira natureza e do significado da sua existência, observa-se uma aceleração do seu processo evolutivo. E isso ocorre porque o mesmo começa a colaborar com o impulso evolutivo e a se tornar consciente, sentindo cada vez mais forte e irresistível a premência de reencontrar a realidade de si mesmo capaz de lhe proporcionar a Unidade interna necessária para a conquista de um modo de vida equilibrado, efetivo e feliz.

O processo de recuperação da normose, num primeiro momento, inclui um minucioso e destemido questionamento quanto ao atual sistema de crenças, a coragem de recusar a submissão às mesmas que se mostrarem disfuncionais e obsoletas, o destemor dos resultados da opinião social a seu respeito e a coragem suficiente para rejeitar as idéias religiosas bem como os costumes de terceiros e um questionamento destemido e minucioso quanto aos padrões que se encontram subjacentes às insatisfações pessoais, e descobrir o que esta limitando a realização e o prazer de viver. Traz consigo a responsabilidade de buscar por idéias avançadas capazes de suplantar sua insanidade estagnante. Os que se interessam o suficiente para enfrentar este processo indiferente ao desprezo social, assim como explorar o que está além das idéias institucionalizadas, estão aptos para exercerem a divina missão de não mais perpetuar essa condição em si mesmos e no mundo que os rodeia. Para o exercício desta missão, se faz necessário a conscientização de que o grosso da sociedade sofre de uma espécie de alergia diante de conversas que levem ao questionamento quanto à normose e que apenas poucos são capazes de ousar por uma independência e juízo individual. Precisa ter em mente que muitos normóticos, (assim como ele mesmo no decorrer do exercício da própria normose), por medo de perder a estabilidade financeira ou por medo do abandono e da solidão se afastam de práticas e de pessoas que possam colocar em xeque a sua atual maneira de viver, chegando muitas vezes, até mesmo a hostilizá-las, pois sentem que as mesmas, colocam em perigo as coisas e os relacionamentos dos quais dependem para ter segurança e uma boa imagem. Com razão dizia Thomas Merton, em seu livro Na Liberdade da Solidão - Ed. Vozes:

"Não pode o homem dar o seu assentimento a uma mensagem espiritual enquanto tem a mente e o coração escravizados pelo automatismo".

É preciso ter em mente de que o normótico só irá procurar por ajuda para a limitação imposta por sua disfuncional maneira de viver, quando não tiver mais com o que anestesiar a dor do tédio, a insatisfação e a falta de sentido existencial. Transcrevo abaixo, pensamentos de alguns escritores que elucidam bem este ponto de vista. São eles:

"...via de regra só o fazem sob o impacto de uma grande dor, crise emocional ou outra perturbação que temporariamente os faça voltarem-se para dentro de si mesmos e torne toda a atividade centralizada no eu fútil e sem sentido. É estranho que ao atingir aquele ponto em que a vida não parece mais valer a pena ser vivida é que as pessoas começam a interessar-se deveras pelo aspecto espiritual da existência, quando anteriormente só ligavam para o seu lado material. É nesse ponto que recorrem à religião em busca de lenitivo, à filosofia em busca de compreensão, e, quando ambas as coisas não parecem suficientes, a cultos estranhos e heterodoxos em busca de uma luz qualquer. Contudo, qualquer que seja a fonte a que recorrerem a fim de obter orientação interior e esclarecimento, ver-se-ão sempre em última instância face a face com o mistério do eu, o qual exigirá sempre, conquanto de forma silenciosa, investigações mais profundas. Torna-se portanto obrigatório que o homem entenda tal coisa e faça da auto-compreensão uma das razões primordiais da sua vida. Até que assim faça, religião, filosofia, psicologia superior, em suma, todas as trilhas do conhecimento não-sensorial continuarão a confundi-lo e intrigá-lo".
Paul Brunton - A Busca do Eu Superior - Ed. Pensamento

"Como é triste que a maioria de nós apenas comece a apreciar a vida quando estamos a ponto de morrer!... Não há comentário mais desalentador sobre o mundo moderno do que esse: a maioria das pessoas morre despreparada para morrer, como viveu despreparada para viver". Sogyal Rinpoche - O livro Tibetano do Viver e do Morrer - Pág. 28

"Há um lugar no ser interior onde sempre se pode permanecer calmo e de lá olhar com equilíbrio e discernimento as perturbações da consciência de superfície e agir sobre ela para mudá-la. Se você puder aprender a viver nesta calma do ser interior, você terá encontrado sua base estável". - Sri-Aurobindo

"Ao enxergar sob uma luz bem mais abrangente os padrões que condicionam a vida, é possível que não ficássemos tão dispostos a participar de ações que sempre resultaram em sofrimento... Com um entendimento assim, não haveria limites para a nossa visão do ser humano, nem limites para a liberdade humana". Tarthang Tulku - Conhecimento da Liberdade - Ed. Dharma

"...Quem tiver a coragem e a paciência para permitir que sua mente raciocine por essa forma, livre da ideologia convencional, será em última instância gratificado com a descoberta da verdade eterna a cerca do homem. Dar-se por satisfeito com as teorias científicas e filosóficas correntes, que podem e devem ser completamente modificadas nas próximas décadas ou então ser taxadas de errôneas e incompletas pela geração seguinte, é demonstrar inércia e covardia mental. A verdade não é para os preguiçosos ou tímidos". Paul Brunton - A Busca do Eu Superior - Ed. Pensamento

O normótico que quer se recuperar precisa buscar por momentos de solidão onde possa praticar uma qualidade de escuta interior pela qual se possa manifestar a Presença do que está presente, no mais profundo de sua essência, abrindo-se cada vez mais "àquele que É". Ele precisa superar o estado de identificação corporal para uma maior identificação com o transpessoal. Precisa entrar num estado de apatia, ou seja, um estado onde não mais se deixa enganar pelas promessas de satisfação vindas do externo, o qual faz com que o normótico saia da sua horizontalidade em busca do Essencial, acima de todas as coisas - a busca da ação da verticalidade do Ser.

O normótico não consegue perceber a realidade da prisão em que vive, do mesmo modo que o peixe não se percebe prisioneiro num aquário. Por essa razão, o normótico submete sua liberdade à autoridade grupal em detrimento de sua autonomia. Não consegue perceber que são nas escolhas individuais, na mais ampla liberdade do homem que se encontra o potencial de saúde.

"Esta normalidade é uma mediocridade que não admite ou até mesmo condena tudo o que se encontra fora de suas normas e o considera como anormal sem levar em conta que muitos comportamentos ditos como anormais são em realidade começos ou tentativas para ultrapassar a mediocridade" - Roberto Assagioli

Bons momentos!

Parafraseado por Nelson Jonas

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!