Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

03 dezembro 2007

Uma nação em luto

O dia amanheceu com um céu azul de fazer doer às vistas. Há uma leve brisa no ar e poucas são as pessoas pelas calçadas. Na padaria, alguns senhores se aglomeram diante das colunas de aço escovado onde jornais são enfileirados.

- A capa do jornal "O Lance", hoje está toda de preto. – Com olhar de deboche e em alto som, exclamou um rapaz vestido com uma camisa da torcida "mancha verde".

- Eu, graças a Deus já me libertei dessa maldita doença chamada futebol; nunca pagou o meu café da manhã – respondeu-lhe um senhor, do outro lado do balcão de mármore marrom. Ao me dirigir ao caixa para o pagamento do café, Cecília, meio sem graça arriscou uma pergunta:

- E você? Também está triste hoje?

- Por que haveria de estar?

- Você não é corintiano?

- Ciça, Ciça!" Há alguns anos já não faço mais uso dessas drogas socialmente aceitas, para me sentir parte de algo que pareça fazer sentido. Já não compactuo mais dessa idolatria nacional. Tenha um bom dia!

- Para você também! – respondeu-me sorrindo com suas bochechas levemente coradas.

Um dos jornais expostos trazia em sua capa a seguinte frase: "Uma nação de luto", referindo-se a segunda maior torcida de futebol em nosso país, ilustrando a matéria com fotos de torcedores em total desespero, pelo rebaixamento de seu time.

Não, não estou de luto. A cada dia que passa me sinto mais distante dessa hipnotizada massa social orquestrada pela globalizada voz chata do Sr. Galvão. Não estou de luto, nem pelo Corinthians, muito menos pela morte de uma tia de meu pai, ocorrida ontem à tardinha. Apesar de ser corintiana roxa, sua morte não se deu por causa do rebaixamento do seu time do coração para a segunda divisão. Seu coração talvez tenha deixado de bater pelo fato de anos e anos ter vivido uma vida de segunda divisão. Foi através de minha mãe, que por volta das 22:00 horas recebi pelo celular a noticia de sua morte:

- Sua Tia Marieta faleceu logo após o almoço. Seu pai já esta no velório. Eu e sua irmã estaremos indo pra lá daqui uns vinte minutos. Gostaria de uma carona?

- Não se preocupe, pois não vou nem ao velório muito menos ao enterro.

- Acho que você deveria ir, não pela sua tia, mas, pelo seu pai.

- Desculpe-me, mas, se meu pai, aos 68 anos de idade ainda não tiver apreendido a lidar com a questão da morte, então, onde esteve durante todos estes anos? Não vejo sentido algum em ter que comparecer ao velório de alguém que durante meus 43 anos nunca manteve contato comigo, que nunca demonstrou o menor interesse em me conhecer ou fazer-se presente em minha vida, fato que também nunca ocorreu de minha parte para com ela. Quando ouço o nome dela, a única coisa que me vem à mente são as tristes lembranças daqueles conturbados almoços de domingo, acompanhados por muita cachaça e brigas na casa dos meus avós. Sem a menor hesitação, digo-lhe que não irei até lá. Seria muita hipocrisia da minha parte comparecer só pelo fato de ser meu pai.

- Não sei por que perdi meu tempo em lhe avisar, uma vez que eu já sabia que você não iria.

- Fico feliz por saber que você já conhece algumas das minhas facetas.

- Você realmente é um ser anti-social! Nunca vai à casa de nenhum dos seus parentes.

- A senhora tem todo direito de pensar desse modo, mas, lembre-se, esse é apenas o seu ponto de vista e, um ponto de vista, é apenas um ponto de vista. Boa noite!

- Fique bem! Até amanhã.

Tão logo desliguei o celular, na tela de minha mente, direto da caixinha de memórias, cenas dos velórios dos meus avós e tios começaram a se projetar. Pude rever as cenas de alguns minutos de média familiar logo substituídos pelas rodinhas de piadas entre primos e tios. As tias, com as mesmas frases de sempre: "como cresceu esse menino!... Vê se vai lá em casa qualquer dia desses"... Sempre as mesmas frases, as mesmas piadinhas... "Quem será o próximo?"... Sem falar na clássica: "Nossa família só se encontra em casamento desde que tenha festa ou então em algum velório"...

E eu me pergunto: o que isso tem haver com "família"? Onde existe familiaridade nisso?...

Segundo o dicionário, família é o conjunto de pessoas unidas por laços de parentesco, pelo sangue ou por aliança. Nunca existiram laços entre nós, muito menos aliança. Nunca existiu afinidade.

Relação, real interesse sem interesses encobertos, comprometimento, comunhão, afinidade de idéias, partilha do cotidiano, constancia sem dependência... Isso sim, para mim, gera o sentimento de família e não essa medíocre idéia da arvore genealógica, cujos frutos estão bichados há muito tempo.

Sim, de fato, a senhora minha mãe tem toda razão: sou um ser anti-social. Digo isso para ela e para todos os meus parentes, sem a necessidade de parêntesis: não me arrependo um só minuto se quer por ser alérgico ao que é tido como correto pelo social. Além do mais, não creio ser preciso o decadente ambiente de um velório para poder velar um corpo sem vida e esses, estão por todos os lados, numa existência para lá da segunda divisão, uma existência que nunca merecerá destaque nos noticiários ou mesmo no tal do Fantástico Show da Vida.


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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!