Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

22 dezembro 2007

Duelo de Titãs

Às vezes fico me perguntando, como pude ficar tanto tempo de olhos fechados para os acontecimentos ao meu redor e se ainda não continuo de certa forma, vivendo nessa mesma situação. A todo instante, acontecem fatos cheios de significação, basta somente estar atento.

Como estou com muita dor na região lombar, tratei de colocar um edredom sobre o tapete da sala para assistir com Deca, um filme de Walt Disney, "Duelo de Titãs". Antes, após fecharmos a loja, um pouco desapontados com o movimento esperado das vésperas do Natal, fomos juntamente com Ida, saborear uma boa pizza sicilliana, salpicada com pedacinho de alho frito. Para acompanhar, uma boa cerveja gelada. Mal o garçom havia nos servido o primeiro pedaço, fomos interrompidos pelos sorrisos e abraços de minha irmã e seu marido...

- Pizzaiolo, por favor, repita a dose e capriche um pouco mais no recheio!

Logo após o jantar, deitados sobre o edredom, saboreando deliciosos pingos de leite, naturais da cidade de São Lourenço, começamos a nos envolver com a trama do filme, baseado em fatos reais, retratando os absurdos das épocas acirradas de diferença racial numa cidade qualquer dos USA. Deca assistia ao filme com sua cabeça sobre meu peito enquanto eu acariciava a pele quente e macia de seu braço.

- Devia ser extremamente terrível, ter que se sujeitar a esse tipo de situação – afirmou Deca, enxugando os olhos pela sensibilidade à flor da pele.

Brancos e negros... Negros e brancos... Um verdadeiro duelo de titãs... Duelando por terem medo... Medo de fazerem diferente, medo de serem expostos ao ostracismo social...

Terminado o filme, a sede bateu forte. Deca levantou-se e da cozinha, resmungou que havia terminado a água e que não havia nenhuma bebida na geladeira para poder saciar sua sede.

- A Casa da Esfiha ainda deve estar aberta. O que você prefere?

- Não tenho preferência. O que você trouxer está bom para mim.

- Ok, volto já!

Foi só pegar o chaveiro, que o danado do nosso cachorro, Krish, saiu em disparada debaixo do sofá, abanando o rabo e tentando morder as minhas chinelas.

Na rua, uma enorme escuridão. Quatro postes estão com suas lâmpadas queimadas há mais de uma semana. Logo após nossa casa, uma barbearia, depois dela, a auto-escola com sua cobertura de zinco dando proteção aos motoqueiros entregadores da casa de esfihas. Lá dentro, logo na mesa mais próxima da entrada, quatro homens visivelmente embriagados. Do outro lado dois ou três casais. No balcão, pelo menos cinco solitários afogam suas mágoas no intervalo de suas baforadas.

Depois de pagar pelas garrafas de água e coca, um pouco emputecido pelo valor abusivo cobrado pelas mesmas, segui para casa. Cinco passos foram o suficiente para me deparar com uma cena que me fez pensar nas sensíveis palavras de Deca, durante as primeiras cenas do filme... "Devia ser extremamente terrível, ter que se sujeitar a esse tipo de situação"...

Quase que colados nas portas da auto-escola, um casal, deitados sobre alguns panos e protegidos do vento por um carrinho de lata velha... Há menos de um metro deles, uma marmita de alumínio amassada, encostada na roda traseira do carrinho. Como estavam abraçados e devido a escuridão da rua, não tive como ver a expressão de seus rostos... Tive vontade de parar e olhar mais de perto, mas, senti que estaria invadindo a "privacidade" dos mesmos...

Abri o portão e subi as escadas bastante pensativo, enquanto Krish se enrroscava entre minhas pernas... Poderíamos ser nós, ao invés deles... Deca continuava deitada sobre o edredom, com o controle remoto apontado para o aparelho da TV por assinatura.

Talvez, o racismo tenha sido de certa forma amenizado, no entanto, infindáveis parecem ser as diferenças que permanecem. Enquanto escrevo, saboreio um bom copo de coca. Deca, sobre o edredom, agora dorme ao lado de nosso cachorro. A garrafa de água está a menos de um metro deles.

Lá fora, sob o escuro da noite, o barulho das motos e as folhas de zinco da cobertura da auto-escola, dois titãs, talvez apaixonados, descansam para dar seqüência ao duelo do dia de amanhã, num país escancaradamente dividido pela corrupção, desconfiança, medo, rancor e ressentimento.


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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!