Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

26 dezembro 2007

Além dos limites do medo e do ressentimento



Sem a menor sombra de dúvidas, uma das maiores conquistas nestes últimos anos foi a tomada de consciência do pensamento condicionado como a natureza exata de todos os meus conflitos. Foi graças a essa conscientização e a prática constante da observação dos reflexos condicionados da mente que muita das confusões, antes presentes em minha vida, deixaram de existir.
Hoje, abri a loja um pouco mais tarde, uma vez que, baseando-me nas experiências dos outros anos, no dia seguinte ao Natal, fora algumas trocas, o movimento é quase inexistente. Agora são 11h45min.
Enquanto limpo as digitais deixadas nas vitrines pelos clientes, um desses enormes caminhões de transportes de caçambas para acumulo de entulhos, por pouco quase acaba com os frágeis galhos da pequena pitangueira. Estacionado bem em frente à loja, descarregou a caçamba na divisa da calçada da loja com a do centro espírita em reformas. Como um pouco mais atrás - menos de quatro metros -, há uma placa de proibido estacionar, com o intuito de facilitar o estacionamento dos clientes da região, educadamente solicitei ao servente da obra para que, se possível fosse, puxasse a caçamba apenas um metro para trás. Como recentemente – no último feriado chuvoso – tivemos uma séria discussão, por não terem tido o bom-censo e nos acordarem em plena 08h00min da manhã ao som das pancadas da marreta contra o chão da sala vizinha, pressenti que seria inútil pedir por tal colaboração. No entanto, mesmo assim, decidi arriscar...
- Bom dia, irmão! – Disse-lhe meio sem graça.
Ele limitou-se a me olhar com seu rosto carrancudo e os olhos avermelhados da ressaca.
- Será que você poderia fazer o favor de pedir para puxar a caçamba apenas um metro para traz, a fim de deixar um pouco mais de espaço para os clientes da região estacionarem?
- Não, não posso não! – Respondeu-me de forma brusca, ao mesmo tempo em que tratava de encher de ar o peito franzino.
- Por favor.
- Já disse que não vou puxar, vai ficar ai mesmo!
- Por favor, estou lhe pedindo numa boa. Não tenho a intenção de ser chato ou de criar confusão. Será que dá para você colaborar?
- Não, vai ficar aí mesmo. Ela não está atrapalhando a entrada da sua loja. Foi colocada bem na divisa da calçada dos dois prédios. Não vejo por que ter que ser tirada dali.
- Por favor, irmão, isso não custa nada para você. Basta pedir para o motorista do caminhão que ele arrasta um pouco mais a caçamba; isso tornaria mais fácil para as pessoas que tem dificuldades no volante estacionarem neste local. Tem certeza de que não dá para você fazer esse favor?
Enquanto isso, o jovem motorista, silenciosamente aguardava pela decisão final por parte do servente da obra.
- Não, pode deixar ela aí mesmo onde está. Não vamos puxá-la nem mesmo meio metro para trás. – Disse ele, dirigindo-se ao motorista e em seguida, retirando-se para dentro do prédio.
- Cara, você é difícil mesmo! Que custa? – Gritei escorando-me no batente de entrada do portão do centro espírita.
Nesse instante, outro servente, com seu braço bem musculoso, em alto som, com um pedaço de tijolo na mão esquerda, fez questão de riscar o chão, mostrando-me que a caçamba estava bem na divisa dos dois prédios.
- Sei disso, irmão! Só estou pedindo a colaboração de vocês para podermos facilitar o espaço para as pessoas estacionarem neste local, uma vez que já são poucas as opções de estacionamento aqui na região. Você não precisa se dar ao trabalho de riscar o chão; noção de espaço é o que não me falta – disse-lhe segurando levemente seu braço direito.
- Tire a mão de mim! Tire a mão de mim! – Começou a gritar ele, com um olhar bastante alterado numa mescla de medo e raiva. Seus gritos chamaram a atenção dos demais comerciantes locais.
Isso foi o suficiente para despertar, dentro da minha cabeça, o arquétipo de "Jack Estripador", com seus requintes de crueldade, igualmente fazendo com que uma enorme carga de adrenalina fosse derramada em minha corrente sanguínea, deixando minha pele e olhar semelhantes ao de outro arquétipo, presente em minha mente: Gollum – personagem do filme "Senhor dos Anéis". Este último, com sua voz irritante, disputava com Jack Estripador, os espaços de minha mente:
- Corta a cabeça dele... Agora, mete o pé no peito dele... Pegue a barra de ferro de levantar a porta da loja e rache no meio a cabeça quadrada desse cabra... Mate o desgraçado, mate! - Tudo isso e mais outro tanto de idéias absurdas, numa curta fração de segundos.
Como quem procura atordoado pela tomada, ao se levantar durante a madruga, coloquei a mão na testa, como se isso pudesse fazer com que a mesma silenciasse. Dei dois passos para trás com o intuito de conter os meus ânimos. Olhei para o motorista e pude perceber em seu olhar, algo parecido com o olhar de impotência do bolseiro Frodo, que agora era portador do caminhão e não do anel. Em seu olhar, pude perceber um silencioso pedido de "deixa quieto". Mas, dentro de mim, com a mesma fúria característica do olhar de Gollum, ao ser apoderado pelo brilho do anel, minha mente começou a exclamar:
- Que nada! Vai para cima dele!... Arrebente a cabeça dele com um só golpe...Arrebente a cabeça chata desse cabra sem o menor pingo de cultura... Mande-o novamente para a terrinha dele... Vai deixar barato? O que os comerciantes locais vão pensar a seu respeito? Você tem que se impor, não pode ficar por baixo!... Faça alguma coisa já... Você tem que se fazer respeitar... Vai lá e cola o brinco deles!... Arrebente o focinho desse Zé Ninguém... – gritava insistentemente e cada vez mais alto.
Tratei de sair logo de perto e entrar para o recinto da loja, tomar dois copos de água para ver se acalmava o furor mental, que de forma agressiva, insistia por uma reação violenta de minha parte...
- Você tem que dar uma lição nesse cabra... Não pode deixar barato... Espere ele estacionar o carro na rua dos fundos e trate de furar os quatro pneus do mesmo... Ou melhor ainda, pegue uma boa chave de fenda, com a ponta bem larga, e fique dando voltas no carro, arranhando a pintura até ofender a lataria... Mete o seu pé 42 nos dois retrovisores... Jogue ácido na pintura... - E, ainda não satisfeito, gritou: - Bote fogo no prédio!...
Só então comecei a rir... Tudo isso em frações de segundos...
É incrível observar os sagazes movimentos do irado pensamento. Como o mesmo não obteve êxito ao tentar me influenciar num possível confronto físico, logo tratou de entrar pela porta dos fundos através da tentativa de identificação com idéias de superioridade moral e cultural...
- Deixa prá lá!... Não vale a pena perder tempo e energia com essa gentalha sem cultura. Sente-se sob a sombra da pitangueira e divirta-se vendo-os trabalharem feito escravos das minas de carvão, ou então, os carregadores de pedra de Serra Pelada... Divirta-se com o açoite dos raios solares sobre a pele castigada desses pobres escravos do sistema... – Insistia o rancoroso Gollum, arvorando-se em tons de superioridade.
É fascinante a constatação de que os pensamentos não suportam serem observados, uma vez que a observação faz com que não ocorra a identificação que produz sempre as reações emocionais insanas. Pela observação, as sugestões do pensamento, carregadas de preconceitos e julgamentos, acabam morrendo de morte natural.
Estou agora sentado à sombra a pitangueira. O sol castiga forte. Escuto Enya pelo meu aparelho de MP3, enquanto que os pedreiros sobem a estreita rampa de madeira, carregando um carrinho cheio de entulho que faz um forte estrondo quando atirado no interior da caçamba.
Agora, os pedreiros fecham a casa e saem para o horário de almoço, enquanto que dois coletores de lixo, com seus uniformes de tom laranja, correm para agrupar os vários sacos plásticos pretos com as sobras de mais um Natal.
No aparelho de MP3, "In the Deep", tema do filme "Crash – no limite".
Quanta intriga conseguimos criar quando buscamos estar sempre com a razão, ou então, quando insistimos em carregar em nossa mente, as imagens de situações passadas... Se pudéssemos ler nas entrelinhas das histórias das pessoas com quem quase sempre entramos em atrito, com certeza, com facilidade deixaríamos de lado essa insana mania de querer ter razão em tudo... Ousaríamos fazer diferente, indo além dos nossos limites demarcados no asfalto com as cores dos tijolos do medo e do ressentimento.
O caminhão de lixo já vai longe ao encontro dos dois atletas coletores, que talvez, há sombra de alguma árvore, descansem para tão logo darem seqüência a maratona posterior ao dia de Natal.

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!