Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

22 dezembro 2007

Sobre o curriculum vitae e a dignidade humana

Chegamos à padaria por voltadas 19h00min horas, conforme havíamos combinado. A casa estava bastante cheia e nos bancos mais próximos da chapa, Valquíria, com o olhar longínquo de sempre, envolta na fumaça de seu cigarro, nos aguardava.
Na portaria da casa, um senhor mal humorado, limitou-se a nos entregar o cartão de consumo, sem ao menos nos cumprimentar, hipnotizado que estava pelas imagens televisionadas de uma partida de futebol qualquer. Um dos donos, todo de preto e ostentando uma enorme corrente de ouro através da camisa aberta até o centro do peito e com uma caneta atrás da orelha, bem ao lado da porta de entrada da cozinha, silenciosamente a tudo observava.
- Ainda bem que vocês chegaram logo – exclamou ela, levando suas mãos junto às têmporas – Estou muito mal! Não via a hora de me encontrar com vocês. Estou urgentemente precisando de pessoas que falem a mesma língua e dotadas da capacidade de escutar – Disse ela, enquanto abraçava minha esposa Deca, que se limitou a um sorriso afetuoso.

- Fala mulher!... Ainda não morreu?... Fique esperta: se você não morrer, antes de morrer, você morre quando morrer! – disse-lhe em alto tom enquanto lhe abraçava fraternalmente.
- Pois é, JR! Nesta semana, o que não me faltou foi a vontade de morrer – respondeu-me em meio de uma baforada que espalhava no ar a irritante fumaça de seu cigarro.
- Mas será que você realmente queria morrer ou somente estava tentado um meio de se livrar de sua dor?
- Ah, sei lá! Só sei que me lembrei muito das conversas que tenho com vocês, durante o desequilíbrio dessa semana infernal. Eu não sei se existe esse tal de inferno depois desta vida. Se tiver, é muita sacanagem, pois de inferno, já estou cheia daqui. Lembrei-me de vocês falando sobre a questão da natureza exata de todos os nossos conflitos emocionais estarem na mente. Sabe, a cada dia que passa, vejo mais nitidamente que vocês estão cobertos de razão: está tudo no cabeção!
- Pois é, alguém já disse em algum lugar do passado: "a mente se chama mente por que mente constantemente" – respondeu-lhe Deca em meio de um sorriso malicioso.
- E outro alguém também já dizia: "a mente é um macaco selvagem pulando de galho em galho na selva do condicionamento humano" – disse-lhe tocando-lhe o centro de sua testa.
- É, JR!... É o maldito cabeção, como você sempre dizia em suas partilhas. Sinto uma imensa falta de vocês dois na sala do nosso grupo. Aquilo lá agora virou um verdadeiro encontro de mortos vivos... Tem noites em que aquilo mais se parece com uma missa de sétimo dia, só que de corpo presente... Não existe vida, só um acumulo de mentes embotadas repetindo falas do livro "Isto não é amor", ou então, os velhos chavões repetido pelos mais antigos. Arrisco até um palpite: o pior dos piores brechós de São Paulo, com certeza, é bem mais arejado e possuidor de vida do que a sala do grupo em que juntos freqüentávamos. Se continuar nessa balada, com certeza, muito em breve irá fechar. Bem que você poderiam voltar!
- Sem a menor cogitação. Só por hoje, os anônimos, para mim, é uma página virada!... Chega de rodeios. Deixemos que os mortos enterrem de vez a si mesmos e também aos outros mortos. Vamos ficar com o aqui, o agora e nós mesmos. Nada de falar do comportamento do outro ausente, ok?... Diga logo e sem florear: que bicho te pegou durante a semana?
- Nem te falo!... – respondeu-me novamente levando as mãos à cabeça em sinal de desespero.
- Desembucha mulher!
- Cara, essa semana o cabeção quase acabou comigo. Tentei fazer o que vocês têm me sugerido – ficar na observação sem tentar me comparar -... Mas, quer saber? Isso é foda! Não tem como... É tudo muito bonitinho no livro, mas não tem como: o cabeção se alimenta da comparação. De tanto me comparar, por pouco não fiquei prostrada envolta pela depressão.
- É como a própria palavra já diz: com-para-ação...
- O que tem a palavra, JR?
- Comparou, dançou! Toda comparação tem em si o poder de fazer parar a ação... Se não estiver esperta, acaba de fato, estagnando. A comparação rouba-nos toda a energia necessária para que haja uma explosão criativa.
- É bem isso o que acontece!... Olhando para o meu passado, vejo quantas oportunidades acabei por boicotar por causa dessa merda de comparação.
- Esse me parece ser o legado herdado pelos filhos de famílias disfuncionais. Estamos em nossas atividades, sempre nos comparando de forma negativa.
- É... A galinha do vizinho é que bota o ovo mais amarelinho... Eu me vejo sempre como a patinha feia da situação... Meu cabeção vivi me dizendo que eu não sou digna, de que não estou a altura e que o outro sempre é mais capacitado do que eu. Vocês não fazem idéia da enorme surra que levei do cabeção durante esta semana. Quase liguei para você, Deca... É como se eu tivesse duas vozes dentro da minha cabeça. Uma delas dizia: está vendo a merda de gente que você é?... Não se formou em nada, nem sequer completou o colegial... Nunca conseguiu parar mais que quatro meses numa empresa... Quer saber? Você vai acabar seus dias empurrando carrinho de papelão acompanhada por um pinguço e mais um ou dois vira-latas infestados de carrapatos...
- Conheço essa história! – Disse-lhe Deca em meio de um sorrisinho tímido.
- Nem mesmo um corpo atraente você tem para conseguir atrair um homem endinheirado que possa lhe salvar dessa desgraçada situação. – Disse com as duas mãos apertando a própria cintura –... Olha só para esta barriga!... Eu que sou mais nova do que você, Deca e que não tive dois filhos, tenho a barriga muito mais avantajada e flácida do que você.
- Não exagere! – Exclamou Deca.
- Cara, o cabeção não parava de bombar: "por que você não dá de vez um jeito nessa sua merda de vida?"... Cara, cheguei a pensar seriamente na idéia do suicídio.
- Não é difícil quando se tem uma mente birrenta! Mas, diga-me uma coisa: qual o porquê de tanto conflito?
- Porque até agora, não tive nenhum retornos dos vários currículos que entreguei por aí. E olha que eu só enviei currículos para empresas de pequeno porte. Imagine só se eu tivesse enviado para multinacionais... Seria mais uma folha branca com algumas poucas letrinhas em preto, amassada e atirada num cesto de lixo qualquer.
- Quais são os seus sentimentos?
- Quer mesmo saber?... Ódio! Ódio de mim mesma e desse estúpido sistema que faz esse tipo de exigência descabida de experiências comprovadas numa carteira carimbada com uma foto 3x4 qualquer. Cara eu não sou o que sou, sou o carimbo que está numa maldita carteira. Agora você já não vale mais pelo que é, mas sim, por um amontoado de letrinhas pretas numa folha branca sobre a mesa de um RH insatisfeito de uma empresa qualquer. E você faz o que se não tiver o que colocar no papel? Mente?... Sem falar que, hoje, boa parte das empresas só aceitam menininhas de 18 anos que nunca tiveram um emprego sequer... É mais cômodo: paga-se uma merreca de salário e ainda é mais fácil de manipulá-las. Esse lance da idade é outra coisa que está me pegando prá cacete.
- É a idade que está pegando ou o poder que você está transferindo para o sistema de crenças da sociedade capitalista? Não percebeu que é justamente o sistema de crenças que limita nossa criatividade e originalidade? Somos incentivados sistematicamente a ter que ter um "currículum vitae" que esteja de acordo com as especificações do mercado... E, de tanto nos preocuparmos com o que colocar no bendito currículo, acabamos esquecendo de olhar para nossa própria singularidade. Esse me parece ser o grande lance: encontrar nossa singularidade. Sem ela, realmente não passamos de uma peça altamente descartável neste sistema totalmente desalmado. Estamos sempre comparando nosso currículo, nosso visual, nossas posses, nossa história e por ai vai... Parece que essa maldição da comparação nos acompanha até a disputa das melhores lápides familiares e na quantidade de pessoas presentes em nossos enterros... Nunca somos o suficiente e, por isso, vivemos correndo atrás de pessoas que nos validem e, por mais que essas pessoas façam, nunca conseguem nos convencer... Parece ser um circulo vicioso – é como um cachorro correndo atrás do próprio rabo.
- Quer saber a real?... Não me sinto digna de um bom trabalho...
- Você acredita nessa balela de que é o trabalho que dignifica o homem? Por um acaso, não seria o homem que torna o trabalho algo digno? Creio já somos dignos por natureza!
- Olha só, já estou cansada disso tudo! Por mais que eu me esforce, não consigo ver nada que eu realmente goste de fazer. Não consigo perceber qual é a minha vocação. Às vezes chego até duvidar que isso seja uma realidade. Na real, sinto como se eu não servisse para nada, uma pura perca de tempo e energia da natureza.
- Diga-me uma coisa: o que você tem feito de diferente de ficar em casa, com um cigarro na mão, para tentar descobrir aquilo que realmente gosta de fazer?
- Ah, cara, sei lá!

- Quando você está em casa, livre dos seus afazeres domésticos, o que faz? Liga a TV e trata de se distrair com algum seriado do tipo "Hero"? Senta diante do seu computador e passa hora e horas teclando no MSN com sua sobrinha ou com uma amiga a respeito das qualidades e defeitos de seu atual pretendente? Ou então, perde-se no Orkut em busca dos amigos do seu tempo de escola? O que tem lido? O que tem pesquisado? No que tem dedicado seu tempo e energia?... Ao amuo encolhido num canto do sofá, ou no quarto escuro embaixo de um cobertor?... Será que algumas dessas atitudes serão capazes de lhe proporcionar a conscientização de suas qualidades singulares e talentos adormecidos?... Quer saber? No fundo, no fundo, fico profundamente feliz por saber que isso está fazendo com que sua cabeça fique a mil... Fico feliz por saber que você esteja chegando à um ponto de saturação total... Infelizmente, parece que nós que viemos de famílias disfuncionais, parecemos funcionar como fusca 64: somente através dos trancos... Dá para perceber nitidamente pelo seu olhar, que você não gostou nem um pouquinho do que acabo de lhe dizer.
- Não é isso!... É que você fala desse modo por que as oportunidades estão se abrindo para você. E tem mais, ás vezes, sinto que você é por demais insensível e intolerante com a dor das pessoas.
- Você tem toda razão: sou insensível e totalmente intolerante com essa tendência de algumas pessoas ficarem se comprazendo morbidamente no lamaçal da autopiedade. Não creio que ficar deitado num sofá, assistindo TV ou perdida em pensamentos depressivos em meio da fumaça de um cigarro fedorento, ou então, sair por ai derramando palavras e mais palavras em grupos de auto-ajuda, possa fazer com que você saia do estado atual da qual tanto reclama.
- Parece fácil, mas para mim não é!

- Atitude é a palavra chave. Bafo de boca não cozinha ovo. É preciso ousar pela ação. Se aventurar no aberto... Isso não é mera filosofia. Eu mesmo estou vivenciando isso neste exato momento... Em nada pode lhe ser útil, ficar justificando sua depressiva inércia dizendo que as oportunidades estão se apresentando para mim. Fique sabendo que não tenho ainda nada certo, muito menos garantias. A única certeza que tenho é a de que seu eu me permitir continuar somente resmungando, passarei mais um ano empacado na mesma situação. É preciso ousar; seguir os ditames, por vezes abafados do coração... Sinto que é um verdadeiro exercício de entrega que somente os homens e mulheres de "saco roxo" se dispõem a praticar.
- Ah, cara, mas se pelo menos eu tivesse algo de significativo para colocar no meu maldito currículo...
- Val, qual é a garantia de que uma pessoa com um currículo recheado por letrinhas representativas de uma especialidade qualquer, possa ser mais capacitada para enfrentar os constantes desafios do cotidiano com maestria e precisão? Nestes últimos anos mantive contato com várias pessoas letradas nas mais diversas especialidades e confesso que a grande maioria delas era verdadeiros analfabetos de si mesmos. Portanto, não creio que um currículo possa ser "vital" para a validação da dignidade de um ser humano. Com certeza, um ser humano não é feito do conhecimento acumulado durante quatro ou cinco anos numa escola técnica qualquer. Creio que olhar um ser humano através da tinta num papel é olhá-lo de forma fragmentária. Acredito também que em gerações vindouras, dotada de uma inteligência agora em extinção, esse tipo de atividade será considerado um verdadeiro crime. Conspiro pela vivência de num departamento de Rh, numa entrevista existir espaço para uma única pergunta:
- Você, indiferente do seu conhecimento técnico, por acaso tem a experiência do que seja estar em contato consciente com aquilo que é a essência da suprema felicidade?

- JR, ás vezes acho que você vê a vida de um modo muito dom quixotiana... Existem certas coisas que parece que nunca serão mudadas nesta sociedade.

- Sim, se continuarmos dando poder para esse sistema de crenças que hoje em dia ainda continua vingando, quem sabe. No entanto, eu prefiro conspirar de que o universo reserva um digno lugar para mim, indiferente aos valores de cotação do mercado. Tenho certeza de que existe algo que somente eu possa dizer ou fazer e que as pessoas se sentiram gratas de pagarem de forma amorosa por isso. No entanto, se eu ficar preocupado em ter que encher lingüiça num pedaço bem diagramado de papel, ou então pelos meus 43 anos sem carteira profissional devidamente assinada ou com possíveis restrições no nome... Vai ficar difícil de vivenciar essa realidade.

- Francamente?... Ainda não consigo ver a vida por esse prisma que você vê!
- Não tem problema. A fruta não cai do pé enquanto não estiver madura... Seja digna de ficar com a sua dor... Tenho certeza de que ela é o sinal fértil das contrações de parto de um novo ser humano. Espero que você não aborte esse processo com sofrimentos desnecessários. Agora, o que vocês acham de sentarmos numa dessas mesas e pedirmos por uma boa porção de fritas?
Enquanto isso, na portaria de padaria, o mal humorado senhor continuava automaticamente entregando as fichas de consumo, robotizado pelas imagens do aparelho de televisão.





















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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!