Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

22 dezembro 2007

O drama da criança de sensibilidade adulterada

Eu ainda estava levantando o toldo da loja quando avistei Sueli, do outro lado da rua, com uma enorme sacola preta, esperando pelo cessar dos movimentos dos automóveis. Aproveitando-se da passagem oferecida por um senhor de olhar malicioso, dentro de um Picasso prata, atravessou a rua as pressas e bastante ruborizada. Em seu rosto, além do tom ruborizado havia um brilho que não lhe era original, produto de um cristal colado sobre um de seus dentes caninos. Seus cabelos mesclavam entre sua cor original e luzes envelhecidas que agora eram de um tom amendoado. Talvez, por não terem sido lavados pela manhã, trazia-os presos em coque com a ajuda de uma peça que lembrava um pequeno dente de marfim.

- Bom dia, JR! Sua mãe está?

- Bom dia Sueli, tudo bem com você?

- Sim e a Ida? – Perguntou-me esticando seu olhar para o fundo da loja.

- Em casa. Só chega depois das 14h00min. Deve estar com certeza acompanhando o serviço dos pedreiros.

- Pedreiros... Nem me fale essa palavra. Quase que perco meus cabelos de tanto nervoso que passei durante a reforma que fizemos no apartamento que acabamos de comprar. Por falar nisso, espero poder contar com vocês na passagem de Natal.

- Sinto muito, mas não será desta vez. Além do mais, não comemoro Natal. Acho uma data destituída de qualquer sentido. Estarei em casa com alguns dos nossos amigos.

- Mas sua mãe não lhe disse que na passagem toda a sua família estará lá em casa?

- Não fazendo desfeita à vocês, mas, nesta noite, estarei com pessoas que durante o ano todo nos deram o ar de sua graça, pessoas que realmente fizeram parte do nosso cotidiano.

- Não é por causa de eu não lhe trazido um convite em casa, não é mesmo?

- Não, não é nada disso. Já lhe disse que quero estar com aqueles que estiveram comigo... Sabe, para mim, a vida é como uma estrada de mão dupla... Eles nos prestigiaram durante todo o ano, portanto, merecem nossa atenção especial, você não acha?

- Eu convidei sua família para estarem conosco na ceia da véspera de Natal! No dia, farei um almoço para a minha família, uma vez que o apartamento não é muito grande e, portanto, não ficaríamos a vontade.

- Entendo. Fique tranqüila. Agradeço pelo convite.

- Com toda certeza, Jorge irá sentir muito a sua falta, afinal de contas é o primeiro Natal em sua casa própria.

- Ele fez por merecer!... Estou feliz por vocês! Quanto a ele sentir a nossa falta, se for do mesmo modo que sentiu durante o ano que passou, acho que não vai haver nenhum problema.

- Não fale assim. Você está sendo injusto com ele. Você mais do que ninguém sabe o quanto que a vida dele é uma verdadeira loucura, como ele está sempre na correria.

- Lógico que sei! Por que você acha que deixei de trabalhar com ele? Não tenho a estrutura física que ele tem e, além do mais, não tenho a intenção de passar os meus dias atrás de um computador na expectativa de bons negócios. Para mim, a vida é muito preciosa, não vale a pena ser trocada pela virtualidade. Ela passa rapidinho, num piscar de olhos. Não quero ser mais um daqueles que no leito de morte, olhando arrependidamente para os olhos de um amigo, se questione: "O que é que eu fiz com a minha vida?" Quanto a conhecer seu apartamento, fique tranqüila, oportunidades não vão faltar. Além do mais, dou preferência aos momentos de intimidade, tão impossíveis nessas datas de encontros familiares.

- Vê se vai lá qualquer noite dessas com a Deca, para dividirmos umas pizzas.

- Pode deixar... E as meninas, como estão? Já sairam de férias?

- Nem me fale!... Você não está sabendo? A Ida não lhe contou?

- O que foi desta vez?

- Com a Ruth, tudo bem! Apesar de ser a mais nova, essa quase nunca me traz problemas... O problema é sempre a Raquel!

- O que tem ela?

- Não sei mais o que faço com essa menina. Agora deu para mentir e, o pior de tudo, está correndo o risco de repetir de ano. Ficou para recuperação em três matérias. Cada dia ela me aparece com um novo problema.

- E vocês?...

- E vocês o que?

- Sim, já se fizeram a pergunta sobre quais os problemas que devem estar levando para ela todos os dias? Já se perguntaram em quais matérias, como pais, vocês precisem ficar em recuperação? Já se questionaram se a educação, a presença e a atenção que disponibilizaram para ela no decorrer deste ano, não seja merecedora de uma reprovação? Já se questionaram do por que dela se ver com a necessidade de ter que fazer uso de mentiras para as pessoas em quem ela deveria confiar? Será mesmo que o problema esteja somente no comportamento da menina? Ou estará ela, como é mais comum, sendo uma espécie de "mata borrão emocional" de uma possível disfunção familiar?...

- Para com isso! – Exclamou ela visivelmente ruborizada por ter sido exposta a uma contrariedade – Por que seríamos nós os responsáveis pela sua nova mania de mentir?

- Vocês chegaram a conversar com a orientadora da escola onde ela estuda?

- Claro!

- E o que ela comentou?

- Que isso é um problema da idade e que é normal... Que ela está querendo se afirmar... Que está querendo ser auto-suficiente antes do tempo...

- Sei!... Parece que as coisas não mudam mesmo, que a história do mundo se repete, tendo quase sempre um final muito parecido com o que tivemos com os nossos pais... E o Jorge, como reagiu a isso?

- Ficou extremamente nervoso. Pensei que ia ter um piripaque. A sorte dela é que estávamos atrapalhados com as reformas do apartamento, caso contrário, com certeza ele teria lhe dado uma boa surra. Onde já se viu, nessa idade, mentindo desse jeito?

- Quer dizer que em outra idade, mentir não é um grande problema?... Sim, acredito mesmo que ele se limitaria a repetir o que duramente aprendeu na própria pele, durante o alcoolismo de seu pai: violência como forma de educação... Não sei não, mas, para mim, esse tipo de método educacional já está bastante desgastado. Sabe, quem não tem tempo para ouvir, nunca pode ser um bom amigo... Você entende o que quero dizer com isso? – Ela limitou-se a me olhar com aquele seu olhar perdido – Ou melhor, você sabe o que é ser e ter um amigo?... Na minha visão, amigo é aquele com quem você pode pensar alto, com quem você pode se abrir e ver a história pessoal validada em seu olhar. Amigo é alguém em cujo relacionamento não existem espaços para ponto e vírgula e, muito menos, meias verdades. Creio que estamos diante de um sério problema, se Raquel, com apenas doze anos, não consegue ver em seus pais, pessoas amigas em quem possa confidenciar suas dificuldades.

- É muito fácil falar quando não se tem filhos...

- Por um acaso, o filho de um alcoólatra precisa também se tornar um alcoólatra para ter consciência dos desastrosos resultados de uma vida sobre o cárcere do alcoolismo?... Sabe, você tem toda razão: não sei o que é ser pai. No entanto, posso lhe garantir que sei muito bem o que é ser um filho "não visto". Sei muito bem o que é ser usado como bode expiatório para que seus pais se esquivem de virar os refletores para a escuridão de suas próprias vidas e relacionamento. Sei muito bem o que é ter um irmão para ver se com a sua vinda o equilíbrio do lar seja reestruturado. Sei muito bem o que é o sofrimento e a ansiedade sufocados no peito e também o déficit de atenção gerado pela constante exposição em um ambiente regido pelo medo e pela vergonha. Sei muito bem o que é o convívio com dois adolescentes em corpos de adultos, duas pessoas pela metade, ausentes de si mesmas e, conseqüentemente, ausentes para as necessidades emocionais de seus filhos. Sei muito bem o que é ter que fazer uso de mentiras na expectativa de sobreviver nesse ambiente. Sei muito bem o que é ter uma educação pautada em ameaças de reformatório, em constante violência física, verbal e, em certos momentos, aspectos de violência sexual... Sei muito bem o que é se deparar com um livro de biologia e entrar num desespero silencioso ao chegar ao fim de uma página e perceber não ter conseguido assimilar absolutamente nada. E, o pior de tudo, é olhar para os lados e não encontrar ninguém com a sensibilidade apurada para perceber os meus silenciosos gritos implorando por socorro... Sei muito bem o que é ter a auto-estima dilacerada pela constante comparação com o meu irmão mais novo, com os meus primos ou com os filhos da vizinhança. Sei muito bem o que é ter que prostituir minha autenticidade, ainda que adoentada, em nome da aceitação condicionada de meus pais e professores. Sei muito bem o que é sobreviver ao terrível ambiente gerado pelo sistema escolar, com professores que se escondem atrás das garantias de emprego do funcionalismo público ao invés de ali estarem em nome do amor à profissão... E, para finalizar, sei muito bem o que é ter que amargar dias e mais dias em salas de terapias, em livrarias revirando estantes de auto-ajuda e psicanálise, na tentativa de colar os caquinhos da minha psique estraçalhada. Portanto, apesar de não saber o que é ser pai, sinto-me bastante apto para questionar a mãe de uma criança, para mim querida e preciosa, afim de, quem sabe poupá-la de ter que passar por tudo isso que agora lhe confidenciei...

Após ouvir atentamente o teor dos meus doloridos sentimentos de infância, um desconcertante silêncio espalhou-se pelo ar, dando a impressão que o tempo havia congelado. Sua dificuldade de me olhar nos olhos aumentou ainda mais. Percebendo seu desconforto, tratei logo de mudar de assunto, perguntado-lhe sobre os motivos de estar caminhando por aqui, carregando um enorme pacote plástico, uma vez que sempre anda para cima e para baixo com seu carro. Com alivio me respondeu:

- Jorge saiu muito cedo e precisou ficar com o carro. Tivemos que vender o outro para poder completar o valor do apartamento. Se antes nossa vida já estava bastante corrida, agora é que ficou ainda mais. Deixe-me ir, pois as meninas ficaram sozinhas em casa – disse ela, ajeitando alguns fios de cabelos que haviam caído sobre sua testa – Espero que a gente se veja antes do Natal. Dê um beijão na Deca e na Ida!

- Pode deixar. Dê um beijo nas meninas e diga para que me enviem umas letrinhas pelo e-mail. Ah, por favor!...

- Diga!

- Procure meditar um pouco sobre o que conversamos agora. Não se trata da sua vida, mas da vida da sua menina, que um dia, quem sabe, pode ter sido também você. Dê um abraço no Jorge e também um forte chute em suas canelas. Cuide-se bem!

E, meio vacilante, sob os fortes raios solares, com aquele enorme saco preto, pela calçada, seguiu cabisbaixa em seu caminhar.

INFÂNCIAS ROUBADAS








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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!