Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

04 abril 2007

A Ditadura da solidão

Vida de Artista
O dia amanheceu nublado com um clima fresco e revigorante. A natureza se ressentiria com mais um dia de sol infernal como os dois anteriores. Da varanda do prédio, podia-se sentir a brisa fresca e suave. As folhas verdes do sombreiro – árvore típica da região litorânea – dançavam compassadamente ao ritmo da brisa. Os telhados, devido a fraca, mas constante chuva da madrugada, apresentavam uma cor mais intensa. Ao pé da serra podia-se ver uma longa e espessa faixa de neblina. Os prédios, em sua grande maioria, apresentavam-se vazios. Havia no ar um fecundo sentimento de solidão. O silêncio só não era total devido ao canto de vários pássaros e o ruído da construção de um prédio não muito longe dali. O local está tomado de prédios e raramente depara-se com um terreno baldio. As casas antigas parecem sucumbir apressadamente aos valores das ofertas feitas pelas construtoras. É raro se deparar com algumas delas, com aqueles imensos jardins repletos de palmeiras, sombreiros, comigo-ninguém-pode e com o jardim amarelado pelo tom dos esparramados e pequenos coquinhos com os quais me deliciava em minha infância. Agora, o que se vê é um imenso aglomerado de cimento armado – uma imensa selva de pedra que já começa a esconder a verdadeira e tão viva serra do mar. Um bem-te-vi, pousado no parapeito de um prédio vizinho parece reclamar sua presença neste texto.
Pela manhã, vários homens da prefeitura local, devidamente uniformizados, cuidam do calçamento e do paisagismo e ao final do dia, com seus caminhões e tratores, fazem a coleta do lixo deixado pelos banhistas. Apesar dos moradores reclamarem dos valores dos impostos cobrados pela prefeitura local, pode-se ver que os mesmos têm sido muito bem aplicados. Dá gosto de percorrer a orla marítima repleta de coqueiros. São três fileiras paralelas onde entre elas encontra-se uma larga ciclovia. Pela manhã, o número de pessoas em caminhada pela arborizada calçada parece ser bem maior.
Já estávamos na estrada a quase uma hora. A nossa frente a imensa serra do mar com seus picos nos aguardava. Ao nosso lado direito um imenso manguezal, com suas águas rasas, porém bastante escuras, onde se podia ver um grande número de pescadores. O sol havia voltado a aparecer dando a impressão que trazia consigo toda a energia acumulada do período em que esteve ausente durante a manhã. O asfalto, agora, de tão quente, parecia trepidar. Havia pouquíssimos carros na estrada e pelo acostamento podiam-se ver várias placas das construtoras anunciando novos loteamentos. Nesta região, ainda predominam as antigas casas e o comércio é bem pequeno. O alto pico da serra do mar, agora já estava bem mais próximo podendo-se notar os vários tons de verde que a distância até então escondia. Do lado esquerdo da pista, várias torres de alta tensão paralelamente acompanhavam o acostamento. O som do pisca alerta anunciava que havíamos chego ao nosso destino.
A cidade tinha o toque e o movimento característico das grandes cidades do interior. Não raro, deparava-se com um aviso pendurado na porta de vidro do estabelecimento comercial com os seguintes dizeres: “Fechado para o almoço. Abriremos após as 14h00min”. A igreja central dividia o espaço da praça com duas agências bancárias e um antigo, mas bem conservado coreto. Pelas calçadas, a terceira idade era muito mais presente do que as crianças e adolescentes. Os valores dos aluguéis comerciais eram bem mais acessíveis do que os estabelecidos nos grandes centros. A maioria das lojas eram bem decoradas e bem abastecidas, sendo que muitas delas iniciavam suas atividades somente após o horário do almoço.
Entramos num pequeno bulevar formado por umas poucas lojas de confecção, uma sorveteria e um pequeno cinema, decoradas com detalhes em madeiras rústicas. Entre as lojas, havia uma de artigos de moda jovem e duas de artigos indianos. Logo na primeira loja que entramos fomos muito bem atendidos por uma senhora por volta de seus cinqüenta e cinco anos de idade. Enquanto minha esposa experimentava as roupas em promoção devidamente expostas numa pequena arara logo na entrada da loja, iniciei uma ótima conversa com tal senhora. Depois de lhe elogiar pelo excelente bom gosto na decoração, bem como na escolha das peças, perguntei-lhe se ela era natural da região.
– Não, não; sou natural de São Paulo. Morei muitos anos na região do Jabaquara e estou aqui somente há oito anos!
– Me parece ter feito uma ótima escolha, afinal de contas, pelo que vejo nesta cidade as pessoas ainda dispõem de um ótimo período do dia para se dedicarem a si mesmas ou a contemplação das belezas da natureza. Deve ser muito bom poder acordar pela manhã com o som do mar, o canto dos pássaros e com a beleza dos variados tons de verde expostos por toda serra do mar.
– A principio eu também pensava assim!
– Como assim? O que a senhora quer dizer com isso? Falando desse modo chega a dar a impressão de que esteja arrependida por sua escolha!
– Esta cidade só é boa na temporada de férias! Depois aqui não se vende quase nada! Todo mundo some daqui e o que sobra são os aposentados que pouco consomem! A minha sorte é que tenho muitos clientes de fora daqui! Se não fosse isso estaria perdida!
– Então, minha senhora, onde está o problema? A senhora não me parece estar vivendo por aqui uma péssima situação. Sua loja dá sinais visíveis de que está bem abastecida e com produtos bastante atualizados e diferenciados! Parece-me que aqui as pessoas podem desfrutar de uma vida com muito mais qualidade, com muito mais tempo para si mesmas e para o convívio com a natureza. Ainda não estão cercados de asfalto e concreto armado por todos os lados! Pode-se andar a pé e livremente pelas calçadas e as pessoas se cumprimentam ainda que não se conheçam. Por acaso a senhora prefere a vida dos condomínios e apartamentos de São Paulo onde as pessoas não se cumprimentam nem mesmo dentro dos elevadores dos prédios em que residem? Prefere o trânsito infernal de São Paulo com toda sua fumaça e poluição sonora e seus carros blindados?... Nesta semana mesmo estive conversando com um conhecido que achou demais andar num carro avaliado em R$120.000,00 sendo que deste valor, foram gastos cerca de R$50.000,00 só com a blindagem. Qual a inteligência de ter que viver assim, de ter que pagar esses valores astronômicos para se proteger dos próprios medos e inseguranças? Ou por um acaso a senhora sente falta, como boa parte da população, de sair de casa por volta das 5h30 da manhã num ônibus lotado em direção ao também lotado trem ou Metrô, para depois se trancar durante oito horas numa pequena sala com ar condicionado e com pessoas estressadas e mal-humoradas?... Vejo que por aqui, boa parte das pessoas ainda fazem uso da bicicleta para irem para os seus locais de trabalho. Eu não consigo entender no que a senhora poderia estar arrependida uma vez que busco a muitos anos por um modo de vida pautado na simplicidade voluntária. Será que o que mais pega seria realmente o resultado do numerário das vendas?
– Não, é claro que não é só isso!
– O que seria então minha senhora?
– Acho que o que mais pega é a falta de atividade e isso gera uma profunda solidão! Em São Paulo, pelo menos você tem muita coisa para se distrair!
– É, bem que já dizia um grande pensador: “a distração nos trai e ao nos trair nos destrói!”... Senhora, por favor, não quero dizer que este seja o seu caso, mas creio que uma pessoa para poder viver bem numa cidade maravilhosa como esta precisa estar muito bem consigo mesma, ter uma mente quieta e a sensibilidade bastante apurada. Caso contrário, com certeza vai sentir bastante falta do mundo dito “civilizado” com todo seu barulho e sua parafernália criada para amenizar os próprios ruídos interiores, não é mesmo?
– Não sei, pode até ser!
Nesse momento, nossa conversa foi interrompida pela entrada de uma jovem cliente sua. Apesar dos trinta e oito graus ele trajava uma apertadíssima calça jeans, sandálias de salto alto, bastante adornada com pulseiras, braceletes, colares, com seus longos cabelos negros puxados para traz, presos por um enorme óculos branco de lentes escuras, desses que escondem boa parte da beleza do rosto, mas que se encontram “na moda”. Provavelmente devia ter sua casa num dos enormes condomínios de alto luxo, com seus altos, eletrizados e monitorados muros, recentemente construídos naquela cidade. A atenção e ânimo da senhora vendedora voltou-se totalmente para aquela cliente que passou direto pela arara de promoção sem se quer movimentar uma peça da mesma. Ela buscava por “novidades”; buscava pelo elixir da “novocaína”, o anestésico do novo. Através do seu andar, podia-se perceber a característica da falsa segurança obtida através da respeitabilidade condicionada pelo seu poder de consumo. Os olhos da senhora lojista encheram-se do brilho característico da ansiedade e expectativa de boas vendas. Ambas pareciam encontrar naquele tipo de relação um paliativo para a insegurança crônica a qual eram acometidas. Minha esposa acabara de escolher duas belas peças da promoção, enquanto que eu, silenciosamente, meditava naquela situação. Isso me fez pensar que muitas vezes as pessoas não valem pelo que são, mas sim, pelo quanto consomem!
Por que será que as pessoas não percebem que por causa do consumismo mantém um modo de vida que lentamente as consomem?
Por que será que as pessoas não percebem que não existe essa tal coisa ridiculamente chamada de “súbito ataque-cardíaco”? Por que não percebem que o mesmo não surge de repente, mas sim, como resultado da somatória de um modo de viver insano e estressado?
Por que essa necessidade irrefletida pelo consumo exarcebado?
Por que essa neurose de buscar por necessidades desnecessárias?
Por que o viver com simplicidade, sem o frenesi das grandes cidades se mostra tão insuportável para muitas pessoas?
Depois de pagarmos com o cartão de débito pelos vestidos da promoção, despedimo-nos daquela senhora e partimos em direção à serra, onde uma pequenina vila numa belíssima reserva ecológica nos esperava com a promessa de dois dias de muito silêncio e recolhimento interior.
Novocaína = palavra utilizada para significar a forma de se anestesiar os sentimentos através de algo novo.

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!