Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

04 abril 2007

Namastê

Eram por volta das 16h10min quando a chuva começou a cair. Já estávamos há vários dias de imenso calor e nenhuma chuva. Era delicioso sentir o cheiro do asfalto molhado, bem como ver o alegre dançar das árvores com suas folhas espalmadas voltadas para o céu. O jovem vizinho arrastou para fora de seu estabelecimento, junto ao beiral da calçada, dois enormes vasos com a planta “comigo-ninguém-pode”, para que pudessem apreciar a água da chuva. Algumas crianças faziam a festa com a água que corria pela guia enquanto que alguns pedestres caminhavam pela calçada sem demonstrarem o menor incomodo por causa da chuva. Meu desejo era o de poder estar ali com aquelas crianças, me deliciando com a água da chuva, no entanto, o compromisso comercial me impedia de desfrutá-la, tendo que me contentar tão somente com o delicioso aroma vindo da brisa úmida e suave. Basta uma pequena chuva como esta para que o trânsito local comece a apresentar problemas. Na esquina, a série de semáforos deixou de funcionar em sua sincronicidade rotineira e agora, todos apenas apresentam suas luzes amarelas de atenção, fazendo com que o silêncio seja interrompido pelo neurótico buzinar e algumas freadas no asfalto molhado por parte dos menos precavidos. A chuva não durou mais que 00:15min, mas já foi o suficiente para refrescar o ambiente e matar a sede da terra, árvores, plantas e pássaros, que em sinal de alegria e gratidão brindavam o ar com uma preciosa mistura de aromas e harmoniosos cantos.

Já se fazia dois anos desde a última vez em que ela esteve aqui em nossa loja. Mantinha o mesmo físico mirrado, o semblante alegre, as mesmas roupas alaranjadas da instituição e a pequena bolsa branca de tricô com seu feixe em madrepérola. Residente na Argentina, estava de volta ao Brasil para participar de um encontro Sul-Americano, da instituição espiritualista – Ananda Marga – na cidade de Juiz de Fora. Como da outra vez em que aqui esteve, trouxe peças de roupa feitas a mão pelos índios da região próxima da divisa do Brasil e Paraguai. Com a venda dessas peças feitas em tecido cru é que conseguia custear suas despesas de viagem. Da primeira vez que aqui esteve, ficamos com quase todo seu estoque, o qual foi muito bem aceito por parte da nossa clientela. Nascida no Brasil, ainda muito criança mudou-se para a Argentina, onde, no inicio da sua adolescência começou a fazer parte de um grupo chamado “Santo Daime”, o qual, segundo ela, venerava muito uma filosofia de vida cujos princípios estavam alicerçados na figura de Jesus. Durante nossa conversa, várias vezes se perdia entre o português, o castelhano e o portunhol, o que lhe causava certo constrangimento; cobrava-se pelo fato de estar no Brasil e ter que se comunicar em português.

- Sinta-se a vontade, pois não tenho dificuldades com o castelhano; se quer saber, acho até muito bom, assim, posso treinar um pouquinho a minha escuta.

- Sim, sim!... Trouxe algumas peças; você não gostaria de vê-las?

- Por favor, peço-lhe a gentileza de trazê-las no período da tarde para que a Dona Idalina possa apreciá-las, uma vez que ela é a compradora.

- Sim, sim!

- Tome aqui nosso cartão com o telefone de contato; ligue para ela e marque um horário para que possa lhe dar atenção.

- Sim, obrigado! Ligarei mais tarde!

- Então, pelo que vejo você continua firme e forte dentro da Filosofia de Ananda Marga!

- Sim, sim! Foi aqui que encontrei aquilo que desde cedo procurava: meu guru!

- Seu guru interno ou externo?

- Por enquanto meu guru externo, mas, graças a ele, a cada dia que passa me aproximo mais e mais do meu guru interno!

- Segundo a sua filosofia de vida, de quanto tempo se precisa para poder se encontrar o guru interno?

- Sim, isso depende muito de pessoa para pessoa... Está diretamente ligado à pureza do desejo; se a pessoa tem o sincero desejo de se ligar à “Baba” e pratica diariamente com paixão e disciplina, esse contato torna-se muito mais fácil.

- O que você quer dizer com “disciplina”?

- Disciplina significa contrariar os nossos desejos “inferiores”, através das práticas sugeridas por “Baba”... Direcioná-los para um desejo “superior”.

- E você acha mesmo necessário e funcional esse tipo de “disciplina forçada”? Existe realmente essa coisa que você chama de “desejo inferior” e “desejo superior”? Ou tanto um como o outro seria desejo?

- Sim, sim! Sem dúvida alguma! Sem a prática constante de uma disciplina torna-se impossível o alcance de conhecimentos muito mais profundos!...

- Não sei não se esse negócio de “disciplina” seja realmente funcional! Você não acha que a prática da tal “disciplina” gera conflito na pessoa? Como que uma pessoa conflitada pode ter a percepção do “Sagrado”?

- Sim, não existe qualquer tipo de conflito se a pessoa escolhe se unir com “Baba”.

- Bem, cada um é cada um! Para mim, qualquer forma de disciplina auto-imposta não funciona, uma vez que rouba toda a liberdade de ser. Creio que você pode viver uma vida inteira, praticando uma determinada “disciplina”, fazendo sacrifícios, subjugando seus desejos, praticando Yoga ou um determinado tipo de “meditação organizada”, mas através dessas práticas condicionadas nunca poderá encontrar um estado de integração. Creio que todas essas práticas são ilusórias e totalmente sem base.

- Sim, sim, então você deve ser um grande indisciplinado!

- Concordo totalmente! Assino embaixo! Sempre fui muito rebelde desde a minha infância! Nunca aceitei essa história de “Só Jesus salva!” Questionava os mais velhos quanto às demais religiões e eles não tinham respostas esclarecedoras!

- Sim, eu também! Por isso que quando pequena sofri tanto! Uma pessoa “indisciplinada” tende a sofrer mesmo! Por isso que acho tão importante a prática de uma disciplina!

- Esse é um dos motivos pelos quais nunca consegui me filiar a nenhuma entidade dita espiritualista. Nunca aceitei essa idéia de “ter que” me conformar com os princípios estabelecidos ou com o culto a uma determinada figura humana, dita “divina”. Penso que cada um de nós deve ser o seu próprio discípulo e guru! Você não crê que seja possível caminhar só?

- Talvez! No entanto, a vida é curta e pode ser que dessa forma você não consiga chegar lá!

- A vida é curta ou a existência?

- A vida! – respondeu enfaticamente.

- Outra coisa que sempre me incomodou muito, além dessa imposição da disciplina, foi o lance do “grupismo”. Se você não faz parte, se não se filia ao grupo, à entidade, seus filiados se limitam a trocar suas experiências e conhecimentos com você até a “página três”.

- Talvez para o seu próprio bem!

- Como assim?

- Sim, muitos ensinamentos necessitam de um longo preparo, de uma forte disciplina, pois mexem com campos energéticos, chakras...

- Ah, vamos com “Karma”! Muita “karma” nesta hora! Até onde isso faz parte da sua própria realidade? Ou é mera crença?

- Sim, isso não tem nada a ver com crença ou com dogma. Faz parte de um conhecimento milenar!

- Então esse conhecimento não é natural de você mesma?

- Não, não! Recebi do meu guru, ele vem de “Baba”! Sei que eu seguir ao “baba” com todo meu coração, mais cedo ou mais tarde me fundirei com ele!

- Mas você não sente a mínima vontade de descobrir as coisas por si mesma? Prefere ficar repetindo as descobertas de terceiros sem o menor questionamento? Como pode saber se tudo isso que lhe está sendo passado seja verdadeiro? Creio que para saber o que é esse estado de integração, toda forma de conhecimento pré-estabelecido é um verdadeiro empecilho. Não se pode colocar vinho novo em potes velhos...

- Não creio! Eu mesma sou a prova viva de que esses conhecimentos funcionam!... Espere um minuto, deixe-me lhe mostrar uma coisa... Olhe para esta foto do meu RG... Essa sou eu antes de me filiar a Ananda Marga... Essa pessoa, graças a ajuda de “Baba” já não existe mais!

- Bem, se eu lhe mostrar meu RG, assim como qualquer outro ser humano, com certeza não veremos a mesma pessoa, uma vez que todos nós estamos em constante mutação.

- Só eu sei o que eu vivia na época em que tirei essa foto... Se tivesse continuado naquele caminho com certeza não estaria viva.

- Como você pode garantir isso? Como você pode precisar o que a Grande Vida teria colocado em seu caminho? Acho que esse tipo de comparação não faz o mínimo sentido. O que vale é seu momento presente e se ele está bom para você, isso é o que realmente importa.

- Posso lhe garantir que estou muito feliz e me sinto realizada! Hoje o que mais quero é poder servir a humanidade através da Ananda Marga! Não vejo a hora de ser ordenada monja.

- Faço isso aqui dentro desta loja, através do nosso site na Internet e em todas as minhas atividades. Mesmo em situações controversas, creio que de uma forma ou de outra também estamos servindo a humanidade. Não creio que precisemos nos filiar a uma instituição para poder compartilhar do que somos, no entanto, respeito muito seu ponto de vista! Não tenho a menor intenção de influenciá-la, mas, tão somente, compartilhar pontos de vista.

- Sim, sim! Isso é muito importante... Compartilhar!

- Se é importante compartilhar, porque não podemos fazê-lo sem a necessidade de se filiar, de ter que seguir uma determinada “disciplina”? Por que não podemos compartilhar com a liberdade de ir e vir?

- Acho que é uma questão de “familiaridade”. Veja, sinto-me muito mais familiarizada com a minha família “Ananda Marga” do que com a minha própria “família de sangue”...

- Está vendo só? Você prestou atenção no que me disse agora? Não seria isso a essência do “grupismo”? Não percebe como o “grupismo” divide, isola, fragmenta? E, se existe a divisão, a exclusão com o que está mais próximo como pode existir a união com algo distante e imaginário como a idéia de Deus, da Divindade ou do Sagrado?

- Minha família não quer saber desses assuntos por isso torna-se difícil a comunicação!

- E porque eles “tem que” se interessar por essas coisas? Por que não estar também com eles sem qualquer tipo de exigência? Não estaria na base da exigência, do “grupismo” uma espécie camuflada de “arrogância espiritual”?

- Creio que não!

- Veja, não é ótimo poder compartilhar como estamos fazendo agora? Não é nutritivo? Não crescemos juntos com este contato? Por que ter participar de um “grupo especifico” se já fazemos parte de um grande grupo chamado “raça humana”? Creio que isso possa dar boas e boas horas de meditação, você não acha?

- Sim, sim!

- Sabe, foi quando eu ainda pertencia ao “Santo Daime” que conheci Ananda Marga. Lembro-me bem do medo que senti quando me deparei com as escadas que levam para o grande salão de meditação... Sentia como que se estivesse traindo ao “meu povo” e a Jesus... Algo me chamava para subir e outra parte do meu ser mantinha-me imóvel por causa do medo e do sentimento de culpa. De repente, algo maior me fez tirar os sapatos e subir aquelas escadas com todo o meu ser... Creio que esse foi um dos momentos mais sagrados da minha vida, pois foi a partir dali que encontrei “Baba”, meu guru.

- Você não sente que todo momento é sagrado?

- Sim, sim! Mas há momentos que são muito mais sagrados que outros...

- Ah, sim!... Mais, menos, muito, pouco, sagrado, profano, bonito, feio, branco, preto, crente, ateu, meu guru, seu guru, minha família espiritual, minha família carnal, Baba, Jesus... E com este modo dual de ver a vida, que alimenta nossa ilusão de separatividade, ainda temos a pretensão de nos unir ao sagrado...

- Sim, sim!... Ilusão de separatividade... Somos todos um, tudo é Brahma!

- Se somos todos um, porque nos dividimos em grupos? Por que a necessidade de buscar por segurança na filiação? Por que se conformar coma burocracia da organização?

- É preciso um mínimo de organização para que os princípios filosóficos e espirituais não se percam!

- Eu já penso que todo tipo de organização mata a essência do principio!

- O que mata não é a organização, mas sim, as pessoas com seus egos inflados.

- E uma organização é feita de que? Não é de pessoas?... Penso que é justamente a organização o que alimenta a divisão, a disputa de poder que acaba com toda igualdade e o espírito de irmandade... E, contudo, ainda assim achamos que podemos tocar o que é sagrado, o que não pode ser organizado.

- Você é muito rebelde! Muito rebelde!

- Bem-aventurados os rebeldes, pois eles serão livres para ir e vir...

- Sim sim! Mas, falando em ir e vir... Creio que já está na hora de ir-me embora! Foi muito bom revê-lo! Gostei muito da nossa conversa! Até que horas vocês ficam abertos?

- “Disciplinarmente” das 10:00 às 19:00 horas.

Ela soltou uma longa e gostosa gargalhada. Depois de se recompor, virou de frente para mim, juntando seus calcanhares, as mãos em sinal de reverência, curvando seu corpo exclamou em alto e bom som:

- Namastê!

- Prá você também! Espero que tenha bons momentos, saúde e plenitude. Que nesse encontro em que vai participar, possa se encontrar e ao se encontrar, soltar suas muletas e caminhar livremente!
Enquanto ela caminhava pela calçada fiquei me questionando:
Por que damos tanta importância aos “ícones espirituais”?
Por que damos tanta importância a disciplina, ao sacrifício, ao celibato e a outras sandices mais?

Você conhece alguém do seu contato que através dessas práticas alcançou um estado de ser integrado?

Como podemos ter liberdade de movimento quando fazemos uso de muletas?

Por que nos conformamos em ficar presos na grossa corrente da crença?

Sim, sim!...

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!