Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

04 abril 2007

A cegueira do egoísmo

Era uma sexta-feira com pouco sol. A agência bancária com apenas dois atendentes no caixa mantinha uma pequena fila. O ambiente era de bastante impessoalidade e todos, desde os atendentes como as pessoas da pequena fila tinham o semblante bastante carregado. Ouvia-se tão somente o som do registrar dos valores pagos pelas pequenas máquinas. A temperatura ambiente era controlada pelo ar-condicionado localizado logo acima dos caixas. Na escada que dá entrada ao segundo piso da agência, dois seguranças de uma empresa particular, com seus uniformes pretos, de olhar apreensivo, sustentam suas armas com uma das mãos.

O ônibus para o Metrô estava um tanto atrasado e como já era de se esperar, o mesmo estava abarrotado de pessoas. O motorista, uma exceção a parte, cumprimentava as pessoas que adentravam no ônibus. No entanto, já o cobrador, um jovem rapaz moreno, trazia estampado em seu olhar, o mau humor típico das pessoas que acabaram de ser acordadas. Apesar da placa acima do cobrador anunciar os valores dos bilhetes de integração ônibus-metrô, não disponibilizava de tais bilhetes, o que me obrigou a mais uma espera numa longa fila na bilheteria do Metrô. Na fila, pessoas estressadas, apressadas e de olhar tenso. O interior da estação agora mais parecia com um grande atacadista de doces e bijuterias, com suas lojas estreitando ainda mais o fluxo das pessoas pelo corredor. Considerando o dia e o horário, o trem até que estava relativamente vazio. Algumas poucas pessoas liam seus livros, enquanto as demais pareciam se perder em meio de seus próprios pensamentos e preocupações. Um jovem rapaz tinha em seu rosto uma enorme semelhança com aqueles primatas aborígenes australianos, tendo suas orelhas deformadas por um par de enormes espaçadores, além de vários piercings localizados pelo nariz, pálpebras e lábios. Havia também em seu malhado braço esquerdo uma enorme e colorida tatuagem. Sua imagem fazia um grande contraste com a tecnologia do Metrô, o que me levou a reflexão de que tecnologicamente temos progredido de forma fantástica e por vezes assustadora, mas, no entanto, no terreno psicológico parecemos um tanto retrógados.

Desci na estação da Sé e ao olhar para aquele movimento, para o amontoado de pessoas estressadas, apressadas, lembrei-me de uma cena de um filme de Charlie Chaplin, onde ele faz uma comparação dos trabalhadores saindo da estação do trem rumo à uma fábrica, com a fila estressada do gado rumo ao abatedor.

Andar livremente pelas principais ruas do centro antigo, hoje se tornou quase que impossível. Com a diferença de poucos metros, grupos de jovens com uniformes de um colorido berrante disputam os transeuntes com suas ilusórias ofertas de crédito fácil. Quando não são eles, são os camelos com seus produtos “genéricos”, entre eles, perfumes, CDs de música, jogos ou softwear. Por apenas uma única nota de dez reais, pode-se levar um softer que chega a ser cobrado nas lojas “oficiais” por um valor de quase seiscentas vezes o cobrado pelo camelo. Fico me perguntando do por que um softer que é vendido mundialmente, presente na maior parte dos computadores, tem que ser vendido por valores tão altos. A responsabilidade da chamada pirataria estaria nos camelos ou nessas empresas que detém o “direito intelectual” do mesmo?

Noutra esquina, um homem baixo, com roupas e uma forte maquiagem de tom prateada, encenava ser uma estátua de um dos antigos reais magos. Não havia a menor sombra de movimento por parte do mesmo; somente quando alguém lhe jogava uma moeda numa pequena caixa de papelão colorida é que ele muito lentamente, tal qual um robô, fazia um leve movimento de agradecimento ao doador, voltando logo a seguir para a sua posição original.

Mais a frente, em meio a uma grande roda de pessoas, um “faquir sertanejo” distraia a multidão, o que me fez pensar no poder criativo e de adaptação do ser humano para poder garantir o seu sustento. Vários atores anônimos vivendo dos poucos trocados, trocados com outros anônimos atores no palco da grande vida.

Duas quadras à diante, num entroncamento de ruas, tomada por uma imensidão de mesas e cadeiras vermelhas, várias pessoas com a descontração típica do efeito alcoólico, disputavam um lugar para o seu happy hour. Havia ali, um forte clima de flerte e sedução espalhado pelo ar.

De volta, dentro das imediações duma das estações do Metrô, recusei-me a pagar o absurdo preço cobrado por uma pequena garrafa d’água, uma vez que o valor ali cobrado excedia três vezes o valor do mercado. Fiquei questionando-me quanto ao motivo de tanta exploração e do por que algumas pessoas aceitarem com tanta naturalidade esse espírito de exploração. Por que esse conformismo?

Já na plataforma, uma grande massa comprimia ainda mais a já existente massa de pessoas estressadas no interior do vagão. O clima era bastante pesado, sendo que poucas eram as pessoas que conversavam num tom animado e contagiante. O cansaço era aparente. Ao descer na estação, todos caminhavam a passos largos, talvez com a mesma preocupação minha de conseguir um bom lugar na fila, capaz de proporcionar um disputado assento no ônibus para casa. As filas eram enormes, assim como a sujeira nos beirais das plataformas, proveniente do enorme comércio de camelos que circundam a estação.

Ao chegar em casa, bastante cansado, encontrei minha esposa, de banho tomado, num fresco e estampado vestido de algodão, que acentuava ainda mais o belo bronzeado obtido num final de semana no campo. Recebeu-me com um beijo e um sorriso amoroso. Juntamente com uma amiga sua, Fátima, estava de saída para buscar por alguns salgados e algumas latas de cerveja, enquanto eu tomasse um revigorante banho. Após o banho, mais restabelecido do cansaço, encontrei-as sentadas no terraço da nossa casa. Havia uma bem servida porção de salgados, azeitonas pretas para acompanhar a prosa e uma lata de cerveja gelada a minha espera.

Bem mais tarde, em determinado momento da conversa, Fátima, começou a falar, com bastante pesar, sobre uma discussão que havia tido com seu irmão mais velho. Segundo o que ela nos contou, ele havia cometido dois grandes erros que afetam em muito os relacionamentos humanos: trazer para o presente um assunto referente ao passado e opinar em questões alheias, o que certamente gera o clima de tensão que acaba por produzir o típico isolamento característico do ressentimento.

No final de semana anterior, Fátima havia tido mais uma das sérias discussões com sua mãe, sendo esta presenciada por seu irmão. Seu comportamento deixou transparecer sua desaprovação diante do tom agressivo e ditatorial com o qual Fátima se dirigiu à sua mãe. Disse que estranhou bastante a postura de seu irmão, por não tomar partido no momento da discussão, como era sempre de seu costume.

Devido problemas pessoais e financeiros, Fátima teve que abrir mão do apartamento alugado em que morava para voltar para um dos quartos da casa de seus pais, juntamente com uma pequena cadelinha, sendo muito bem recebida e acolhida por eles. Fátima havia reconhecido depois de muita resistência e reflexão que sua postura agressiva e ditatorial fora bastante antagônica com aquela do período da necessidade de seu retorno, marcada pela fragilidade e humildade do real tamanho.

Seus pais, próximos dos setenta anos, vivem num simples, porém, grande sobrado germinado num excelente bairro. Apesar da idade avançada, eles ainda trabalham, levando uma vida por vezes agitada. A briga entre elas deu-se por que sua mãe não aceitava sua imposição de querer cruzar sua cadela, a qual já lhe rendia bastante necessidade de atenção e cuidados e também do seu marido. Fátima dizia-se no direito de fazer o que bem quisesse ali dentro, pois afirmava que a casa também era dela. Seu irmão disse-lhe que não concordava com isso, pois a seu ver, ela teria todo direito de cruzar sua cadela, desde que fosse em sua própria casa e que toda responsabilidade do cuidar da cria recaísse sobre si mesma. Sugeriu que ela esperasse pelo retorno de seu marido, que temporariamente estava residindo no interior de outro estado e que deixasse para cruzar sua cadelinha quando estivesse novamente em seu próprio espaço, afinal de contas, “quem paga a banda tem o direito de escolher a música”. No entanto, ela tornou-se ainda mais decidida e autoritária, dizendo que todos poderiam dizer o que quisessem, mas que ela terminaria realizando sua própria vontade não levando em consideração o ponto de vista dos demais envolvidos.

Creio que o clima deva ter ficado bastante tenso, uma vez que no passado, Fátima havia tido muitos problemas de relacionamento com esse seu irmão. Disse-nos que, numa atitude bastante agressiva, colocou que não concordava com o ponto de vista dele e que se via com todo o direito de fazer o que quisesse, uma vez que a casa também era dela e além do mais estava ajudando nas despesas.

Fátima relatou o modo como ele tentou fazer com que ela percebesse que tal postura egoísta só aumentava ainda mais o conflito e o distanciamento emocional já existente entre as duas, mas que algo no mais profundo de si, a impedia de dar ouvidos às suas palavras. Disse que, como ela insistia em usar como álibi para a realização da sua vontade egocêntrica o fato de ser proprietária daquela casa, seu irmão tentou causar-lhe um choque dizendo-lhe que, do mesmo modo, ele e seus demais irmãos também eram donos daquela casa e que enquanto seus pais fossem vivos, não caberia a ela fazer o que bem entendesse. Fátima encerrou o assunto dizendo que respeitava seu ponto de vista, mas que o mesmo não era compatível com o dela e que iria fazer aquilo que bem entendesse. Devido o pesado clima que pairava no ar, decidiu não dar continuidade a conversa. Ela sabia que algo ali havia sido quebrado e que provavelmente ele se distanciaria dela por um longo período de tempo. Já não havia mais escolhas: o que foi dito, de certo modo, precisava ser dito. Como já era de se esperar, a semana passou e não houve o menor sinal de contato por parte dele, o que de certa forma, causava-lhe certa inquietação.

Enquanto ouvia o que Fátima precisava falar, fui tendo a constatação de que invariavelmente, quando estamos cegos por nossos desejos egocêntricos, acabamos atacando as pessoas que nos são mais próximas, caras e queridas e com isso, sem percebermos, aumentamos nosso próprio isolamento e solidão.

No dia seguinte, por volta das 11:00 horas da manhã, enquanto eu conversava com meu cunhado no interior da nossa loja, fui interrompido pelos gritos do meu visinho da frente, dono de um Pet-Shop. Ele tinha em seu colo um filhote de poodle, com apenas 40 dias, pretinho com as patinhas brancas e olhos negros. Havia acabado de recebê-lo de uma senhorinha e perguntou-me se eu ainda estava à procura de um cãozinho. Sem titubear ao ver aquele par de olhos negros carentes de atenção e carinho, dirigi-me para casa a fim de chamar minha esposa para conhecê-lo. Como precisava ficar na loja, não pude ver o que acontecia no Pet-Shop. Confesso que gostaria muito de ter filmado a cena dela saindo com aquela pequena “bolinha de pelos negros” em seu colo, com seu olhar numa mistura “adolescente maternal”.

Não sei dizer que fim levou a situação que Fátima nos relatou. Imagino que ela deva estar contrariadamente trancafiada em seu quarto com sua pequena cachorrinha, escrevendo para seu marido relatando o corrido, enquanto sua mãe, solitária num canto da sala revê as fotos de sua viagem ao exterior.

Quanto a mim, estou aqui digitando este texto, na companhia de Krishi, que com seus pequeninos dentinhos intercala entre puxar da tomada o fio do computador, ou então, brincar com os cordões dos meus sapatos.

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!