Para melhor entender as experiências que costumam preceder o despertar, devemos examinar algumas das características psicológicas do ser humano “normal”.
Dele, pode-se dizer que “deixa-se viver” em vez de viver. Toma a vida tal como ela vem e não questiona o seu significado, o seu valor ou o seu propósito; dedica-se à satisfação dos desejos pessoais; busca o prazer dos sentidos e das emoções, a segurança material ou a realização das ambições pessoais. Se for mais maduro, subordina as satisfações pessoais ao cumprimento dos vários deveres sociais e familiares que lhes são atribuídos, mas sem procurar entender as bases em que esses deveres se apóiam ou a sua fonte. Possivelmente se considera “religioso” e crente em Deus, mas em geral sua religião é exterior e convencional e, quando se conforma às injunções da sua igreja e participa dos seus ritos, ele acha que faz tudo o que lhe foi exigido. Em resumo, sua crença operacional é a de que a única realidade é a do mundo físico que ele pode ver e tocar, razão por que tem forte apego aos bens materiais. Assim, para todos os propósitos práticos, ele considera esta vida um fim em si mesmo. Sua crença num “céu” futuro, se ele conceber um, é totalmente teórica e acadêmica – como o prova o fato de ele fazer os maiores esforços para adiar o máximo possível a sua ida para as delícias do céu.
Mas pode ocorrer de esse “homem normal” ser surpreendido e perturbado por uma mudança – súbita ou gradual – de sua vida interior. Isso pode acontecer depois de uma série de desilusões; não é incomum que sobrevenha depois de algum choque emocional, como a perda de um ente querido ou de um amigo muito amado. Mas por vezes se manifesta sem causa aparente e no pleno gozo da saúde e da prosperidade. A mudança começa muitas vezes com uma crescente sensação de insatisfação, de carência, de “alguma coisa que falta” - que nada tem de material e definido; trata-se de algo vago e fugidio que a pessoa não consegue descrever.
Acrescenta-se a isso, gradualmente, um sentido de irrealidade e de vazio com relação à vida cotidiana. Assuntos pessoais, que antes absorviam tanto a atenção e o interesse, parecem recuar, em termos psicológicos, para o segundo plano; perdem importância e valor. Surgem novos problemas. A pessoa começa a procurar a origem e o propósito da vida, a perguntar a razão de muitas coisas que antes tinha por certas – a questionar, por exemplo, o sentido do sofrimento pessoal e alheio, e da justificativa possível para tantas desigualdades no destino dos homens.
Quando chegou a esse ponto, a pessoa pode entender e interpretar erroneamente a sua condição. Muitos que não compreendem o significado desses novos estados mentais os consideram fantasias e devaneios anormais. Alarmados com a possibilidade de desequilíbrio mental, esforçam-se por combatê-los de várias formas, fazendo frenéticos esforços para recuperarem a ligação com a “realidade” da vida cotidiana, que parece fugir-lhes. É freqüente que se atirem, com ardor crescente, numa girândola de atividades externas, buscando novas ocupações, novos estímulos e novas sensações. Por esses e outros meios, podem conseguir por algum tempo aliviar a sua perturbação, mas não podem livrar-se dela permanentemente. O problema continua a fermentar nas profundezas do seu ser, solapando as bases de sua existência comum, até poder irromper novamente, talvez depois de um longo tempo, com intensidade redobrada. O estado de incômodo e de agitação vai ficando cada vez mais doloroso e a sensação de vazio interior ainda mais intolerável. O indivíduo sente-se confuso; boa parte do que constituía a sua vida agora lhe parece ter desaparecido como um sonho, sem que nenhuma nova luz tenha aparecido. Na verdade, ele ainda ignora a existência dessa luz ou então não pode acreditar que ela venha a iluminá-lo.
É freqüente que esse estado de agitação interior seja acompanhado por uma crise moral. Sua consciência dos valores se enfraquece ou se torna mais sensível; surge um novo sentido de responsabilidade e o indivíduo pode sentir-se oprimido por um pesado sentimento de culpa. Ele julga a si mesmo com severidade e é presa fácil de um profundo desânimo, chegando a ponto de pensar em suicídio. Para ele, a aniquilação física parece ser a única conclusão lógica do crescente sentimento de impotência e desespero, de colapso e de desintegração.(1)
Os dados acima são, com efeito, uma descrição geral dessas experiências. Na prática, as experiências e reações das pessoas variam amplamente. Há alguns que nunca chegam a esse estágio agudo, enquanto outros o alcançam quase de uma vez. Uns são mais acossados por dúvidas intelectuais e problemas metafísicos; em outros, são mais pronunciadas as depressões emocionais ou as crises morais.
É importante reconhecer que essas várias manifestações de crise muito se assemelham a alguns dos sintomas tidos como característicos de estados neuróticos e de estados psicóticos fronteiriços. Em alguns casos, a tensão e a pressão da crise também produzem sintomas físicos como tensão nervosa, insônia e outros distúrbios psicossomáticos.
Portanto, para lidar corretamente com essa situação, é essencial determinar a fonte básica das dificuldades. De modo geral, isso não é difícil. Observados isoladamente, os sintomas podem ser idênticos; mas um exame cuidadoso de suas causas, uma consideração da personalidade individual em sua inteireza e - o que é mais importante - o reconhecimento de sua situação real, existencial, revelam a natureza e o nível distintos dos conflitos de base. Em casos comuns, os conflitos ocorrem entre os impulsos "normais", entre estes e o "eu" consciente, ou entre a pessoa e o mundo exterior (em particular com as pessoas próximas, como os pais, o parceiro ou os filhos). Nos casos que aqui consideramos, contudo, os conflitos ocorrem entre algum aspecto da personalidade e as tendências e aspirações progressivas e emergentes de caráter moral, religioso, humanitário ou espiritual. E não é difícil determinar a sua presença uma vez que se reconheçam a sua validade e a, sua realidade, em vez de descartá-las como meras fantasias ou sublimações. De maneira geral, a emergência de tendências espirituais pode ser considerada o resultado de pontos decisivos do desenvolvimento, do crescimento da pessoa.
Há possíveis complicações: por vezes, essas novas tendências emergentes revivem ou exacerbam conflitos antigos ou latentes entre elementos da personalidade. Esses conflitos, que seriam por si mesmo regressivos, são na verdade progressivos ao ocorrerem nessa perspectiva mais ampla. E o são porque facilitam alcançar uma nova integração pessoal, mais abrangente, num nível superior - na direção do qual a própria crise abriu o caminho. Assim sendo, essas crises são preparativos positivos, naturais e, com freqüência, necessários para o progresso do indivíduo. Eles trazem à superfície elementos da personalidade que precisam ser considerados e modificados no interesse do crescimento adicional da pessoa.
STANISLAV GROF E CHRISTINA GROF
EMERGÊNCIA ESPIRITUAL CRISE E TRANSFORMAÇÃO ESPIRITUAL