Os dois mundos, divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si, diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. As aventuras do herói se passam fora da terra nossa conhecida, na região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou apenas se perde para nós, aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como uma volta do além. Não obstante, e temos diante de nós uma grande chave da compreensão do mito e do símbolo, os dois reinos são, na realidade, um só e único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que conhecemos. E a exploração dessa dimensão, voluntária ou relutante, resume todo o sentido da façanha do herói. Os valores e distinções que parecem importantes na vida real desaparecem com a terrificante assimilação do eu daquilo que antes não passava de alteridade. Tais como na história das ogresas canibais, o temor dessa perda da individualidade pessoal pode configurar-se, para as almas não qualificadas, como todo o ônus da experiência transcendental. Mas a alma do herói avança com ousadia, e descobre as bruxas convertidas em deusas e os dragões em guardiães dos deuses.
Todavia, sempre deve restar, do ponto de vista da consciência vígil normal, uma certa inconsistência enigmática entre a sabedoria trazida das profundezas e a prudência que costuma ser eficaz no mundo da luz. Daí decorre o divórcio comum entre o oportunismo e a virtude, e a resultante degenerescência da existência humana. O martírio é para os santos, mas as pessoas comuns têm suas instituições, que não podem deixar que cresçam como lírios nos campos; Pedro continua a sacar da espada, tal como no jardim, para defender o criador e mantenedor do mundo. A bênção trazida das profundezas transcendentes torna-se racionalizada, rapidamente, em não-existência, e aumenta em muito a necessidade de outro herói para renovar a palavra.
Como ensinar de novo, contudo, o que havia sido ensinado corretamente e aprendido de modo errôneo um milhão de vezes, ao longo dos milênios da mansa loucura da humanidade? Eis a última e difícil tarefa do herói. Como retraduzir, na leve linguagem do mundo, os pronunciamentos das trevas, que desafiam a fala? Como representar, numa superfície bidimensional, ou numa imagem tridimensional, um sentido multidimensional? Como expressar, em termos de “sim” e “não”, revelações que conduzem à falta de sentido toda tentativa de definir pares de opostos? Como comunicar, a pessoas que insistem na evidência exclusiva dos próprios sentidos, a mensagem do vazio gerador de todas as coisas?
Muitos fracassos comprovam as dificuldades presentes nesse limiar que afirma a vida. O primeiro problema do herói que retorna consiste em aceitar como real, depois de ter passado por uma experiência da visão de completeza que traz satisfação à alma, as alegrias e tristezas passageiras, as banalidades e ruidosas obscenidades da vida. Por que voltar a um mundo desses? Porque tentar tornar plausível, ou mesmo interessante, a homens e mulheres consumidos pela paixão, a experiência da bem-aventurança transcendental? Assim como sonhos que se afiguram importantes durante a noite podem parecer, à luz do dia, meras tolices, assim também o poeta e o profeta podem descobrir-se bancando os idiotas diante de um júri de sóbrios olhos. O mais fácil é entregar a comunidade inteira ao demônio e partir outra vez para a celeste habitação rochosa, fechar a porta e ali se deixar ficar. Mas, se algum obstetra espiritual tiver, neste entretempo, estendido a shimenawa* em torno do refúgio, então o trabalho de representar a eternidade no plano temporal, e de perceber, neste, a eternidade, não pode ser evitado.
do livro “O herói de mil faces” – Joseph Campbell
*Shimenawa (标縄注连縄七五三縄, literalmente, "colocando o cabo") são pedaços de trançado de arroz palha corda usada para rituais de purificação do Xintoísmo religião. Eles podem variar em diâmetro de poucos centímetros até vários metros, e são vistos frequentemente enfeitados com shide. Um espaço vinculado shimenawa geralmente indica um sagrado ou puro espaço, como a de um santuário xintoísta.