Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

19 outubro 2010

I am what I am

CÍRCULO
"I am what I am"

"I AM WHAT I AM." É esta a última oferenda do marketing ao mundo, o estádio último da evolução publicitária, para lá, muito para lá de todas as exortações a sermos diferentes, a sermos nós próprios e a bebermos Pepsi. Décadas de conceitos para aqui chegar, à tautologia pura. EU = EU. Ele corre na passadeira à frente do espelho do ginásio. Ela volta do trabalho ao volante do Smart. Será que se vão encontrar?

"EU SOU AQUILO QUE SOU." O meu corpo pertence-me. Eu sou eu, tu és tu, e isto não vai nada bem. Personalização de massa. Individualização de todas as condições — de vida, de trabalho, de infelicidade. Esquizofrenia difusa. Depressão galopante. Atomização em pequenas partículas paranóicas. Histerização do contato. Quanto mais quero ser Eu, maior é a sensação de vazio. Quanto mais me exprimo, mais me esgoto. Quanto mais vou atrás das coisas, mais cansado fico. Eu ocupo-me, tu ocupas-te, nós ocupamo-nos do nosso Eu como num entediante balcão de atendimento. Tornamo-nos os representantes de nós próprios — estranho comércio, fiadores de uma personalização que se assemelha, afinal, a uma amputação. Afiançamos até à ruína, com uma falta de jeito mais ou menos disfarçada.

No entretanto, faço a gestão. Da procura de uma identidade, do meu blog, do meu apartamento, das últimas patetices da moda, das histórias a dois ou de cama… a quantidade de próteses que é preciso para sustentar um Eu! Se «a sociedade» não se tivesse tornado esta abstração completa, designaria o conjunto das muletas existenciais que me estendem para que me continue a arrastar, o conjunto das dependências que contraí em troca da minha identidade. O deficiente constitui o modelo da cidadania que vem. Não é sem uma certa dose de premonição que as associações que o exploram reivindicam atualmente para o deficiente um «rendimento de subsistência».

A obrigação constante de «ser alguém» preserva o estado patológico que torna necessária esta sociedade. A obrigação de ser forte produz a fraqueza pela qual ela se mantém, ao ponto de tudo parecer assumir um aspecto terapêutico, até trabalhar, até amar. Todos os «tudo bem?» que trocamos ao longo do dia sugerem uma sociedade de pacientes sempre a medir a temperatura uns dos outros. A sociabilidade é atualmente formada por mil pequenos nichos, mil pequenos refúgios onde uma pessoa se mantém quentinha. Onde se está sempre melhor do que no muito frio que faz lá fora. Onde tudo é falso, porque não passa de um pretexto para nos aquecermos. Onde nada pode acontecer porque estamos todos silenciosamente ocupados a tiritar em conjunto. Em breve, esta sociedade só se aguentará através da tensão de todos os átomos sociais em direção a uma cura ilusória. É uma central que faz funcionar as suas turbinas graças a um gigantesco reservatório de lágrimas, sempre à beira de transbordar.

«I AM WHAT I AM.» Nunca a dominação tinha encontrado palavra de ordem tão insuspeita. A manutenção do Eu num estado de semi-ruína permanente, de semi-desfalecimento crônico, é o segredo mais bem guardado do atual estado de coisas. O Eu frágil, deprimido, auto-crítico, virtual é, por essência, o sujeito indefinidamente adaptável que requer uma produção baseada na inovação, na obsolescência acelerada das tecnologias, na constante transformação das normas sociais, na flexibilidade generalizada. É ao mesmo tempo o mais voraz consumidor e, paradoxalmente, o Eu mais produtivo, aquele que se lançará com mais energia e avidez sobre o mais pequeno projeto, para depois voltar ao seu estado larvar original.

«AQUILO QUE SOU», então? Atravessado desde a infância por fluxos de leite, de cheiros, de histórias, de sons, de afetos, de cantilenas, de substâncias, de gestos, de ideias, de impressões, de olhares, de cantos e de comida. Aquilo que sou? Completamente ligado a lugares, sofrimentos, antepassados, amigos, amores, acontecimentos, línguas, recordações, a todo o tipo de coisas que, obviamente, não são eu. Tudo o que me prende ao mundo, todos os laços que me constituem, todas as forças que me povoam não tecem uma identidade, como me incitam a apregoar, mas antes uma existência, singular, comum, viva, e de onde, aqui e ali, de vez em quando, emerge esse ser que diz «eu». O nosso sentimento de inconsistência é apenas o efeito dessa crença tola na permanência do Eu, e da pouca atenção que concedemos àquilo que nos constitui.

É vertiginoso ver o «I AM WHAT I AM» da Reebok entronado no topo de um arranha-céus de Xangai. O Ocidente avança em todas as direções, tal como o seu cavalo de Tróia preferido, essa antinomia mortífera entre o Eu e o mundo, o indivíduo e o grupo, entre enraizamento e liberdade. A liberdade não é o gesto de nos desfazermos dos nossos laços, mas a capacidade prática de agirmos sobre eles, de nos movermos dentro deles, de os estabelecermos ou de os cortarmos. A família só existe como família, isto é, como inferno, para aquele que renunciou a alterar-lhe os mecanismos debilitantes, ou que não sabe como o fazer. A liberdade de uma pessoa se subtrair foi sempre o fantasma da liberdade. Nunca nos desembaraçamos daquilo que nos bloqueia sem ao mesmo tempo perdermos aquilo sobre o qual as nossas forças se poderiam exercer.

«I AM WHAT I AM» não é portanto uma simples mentira, uma simples campanha publicitária, mas sim uma campanha militar, um grito de guerra lançado contra tudo o que existe entre os seres, contra tudo o que circula indistintamente, tudo o que os liga invisivelmente, tudo o que serve de obstáculo à desolação completa, contra tudo o que faz com que nós existamos e que o mundo inteiro não se assemelhe a uma auto-estrada, a um parque de diversões ou a uma nova cidade tédio puro, bem ordenado e sem paixão, espaço vazio, glacial, onde só transitam corpos registrados, moléculas automóveis e mercadorias ideais.

A França não seria a pátria dos ansiolíticos, o paraíso dos anti-depressivos, a Meca da neurose se não fosse simultaneamente a campeã européia da produtividade horária. A doença, o cansaço, a depressão podem ser vistos como sintomas individuais daquilo que é preciso curar. Contribuem dessa forma para a manutenção da ordem existente, para a minha adaptação dócil a normas idiotas, para a modernização das minhas muletas. Encobrem a seleção que eu próprio faço entre as minhas inclinações oportunas, conformes, produtivas, e aquelas de que, com jeitinho, será preciso fazer o luto. «É preciso saber mudar, sabes?» No entanto, tomadas como fatos, as minhas falhas podem também levar ao desmantelamento da hipótese do Eu. Tornam-se então atos de resistência na guerra que está em curso. Tornam-se rebelião e centro de energia contra tudo aquilo que conspira para nos normalizar, para nos amputar. Não é o Eu que está em crise, mas sim a maneira como nos querem impor esse Eu. Querem tornar-nos Eus bem delimitados, isolados, classificáveis e catalogáveis por qualidades, numa palavra, controláveis, quando somos criaturas entre as criaturas, singularidades entre os nossos semelhantes, carne viva que compõe a carne do mundo. Ao contrário do que nos dizem desde pequenos, a inteligência não é a capacidade de adaptação — ou, se isso é inteligência, será a dos escravos. A nossa inadaptação, o nosso cansaço, só são problemas do ponto de vista de quem nos quer subjugar. Indicam sobretudo um ponto de partida, um ponto de confluência para cumplicidades inéditas. Deixam entrever uma paisagem muito mais deteriorada, mas infinitamente mais partilhável do que todas as fantasmagorias que esta sociedade alimenta a respeito de si própria.

Nós não estamos deprimidos, estamos em greve. Para aqueles que se recusam a gerir-se a si próprios, a «depressão» não é um estado mas sim uma passagem, um adeus, um passo para ao lado, em direção a uma desfiliação política. A partir daí, a única conciliação possível é a dos medicamentos e a da polícia. É por isso que esta sociedade não hesita em impor Ritalin* às suas crianças mais irrequietas, enredando-as tranquilamente nas teias da dependência de fármacos e pretendendo conseguir detectar «distúrbios comportamentais» desde os três anos. Porque é a hipótese do Eu que está a abrir brechas por todo o lado.

* - Ritalin: Fármaco. Estimulante do sistema nervoso central, utilizado sobretudo em crianças a quem foram diagnosticadas dificuldades de concentração e hiperactividade. (NT)

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!