
Sábado a noitinha, recebemos um casal de amigos que não víamos há mais de mês. Eles, chegaram trazendo consigo, como de costume, um pote com deliciosa canjica. Juntos conversamos na sala por alguns minutos e logo, as mulheres se dirigiram para a cozinha, onde mais a vontade, colocaram suas conversas
- Você já ouviu falar do Programa “Minha casa, minha Vida”?
De cara o título do “Programa” já me chamou atenção, não pela proposta em si, mas sim, pela sagacidade do apelo publicitário que passa desapercebido pela miopia popular condicionada pelo sonho da casa própria. Ainda pensando no teor da sagacidade marqueteira, respondi:
- Nunca ouvi falar disso!
- É um Programa do Governo; nunca existiu nada igual. É uma excelente oportunidade de investimento, só que você não pode ter nenhuma divida em seu nome. Funciona mais ou menos assim, o Governo financia de cara R$23.000,00 para você poder comprar a casa de sua escolha. E detalhe: não tem nada a ver com esses antigos projetos tipo “Singapura”. Estávamos tentando fazer no meu nome, mas não deu certo por causa da pensão alimentícia. Você mora de aluguel, não mora?
- Sim!
- Então, Nelsão, por que você não tenta? É uma excelente oportunidade de vocês saírem do aluguel! Quanto você paga nesta casa?
- R$600,00, mais o IPTU.
- Já dá para pagar a prestação do financiamento. E tem mais: as parcelas são com valores decrescentes... Nunca se viu nada igual em termos de financiamento; nenhum Governo anterior fez algo se quer parecido.
- Não tenho a mínima inclinação e nem interesse por uma casa própria. Não estou buscando por isso.
Minha resposta caiu feito balde gelado sobre a conversa. No ar, o silêncio similar ao momento em que o ator esquece o roteiro da peça. Percebendo a situação, polidamente voltei ao assunto pedindo para que ele me falasse um pouco mais. Ele de pronto, voltou a falar do assunto com o mesmo entusiasmo. Enquanto explanava sobre o assunto, nossas esposas voltaram a se juntar conosco. A conversa continuou por um bom tempo em torno do assunto “casa própria” e moradia. Com atenção acompanhei a idéia por eles passada do alcance de um modo de vida mais equilibrado na segurança de uma cidade interiorana próxima à capital. No entanto, não pude deixar de colocar meu ponto de vista de achar ilusória essa idéia de se obter “segurança” numa “casa própria” ou mesmo na fuga para uma cidade do interior. Uma vez dito isto, aproveitei para tocar no assunto da “insatisfação”, uma vez que esta amiga, antes de entrar neste relacionamento, vivia dizendo com muita propriedade a respeito de sua insatisfação existêncial. Falei em bom tom sobre o processo que venho atravessando de encarar a insatisfação de frente, evitando não me entregar a qualquer tipo de distração socialmente aceita para evitar seu decorrente mal-estar. Eles me ouviram atentamente, mas com olhar demonstrando espanto, olhar este também percebido por minha esposa. Contrariando as nossas expectativas, não ouve da parte deles, nenhum retorno característico da identificação com o tema "insatisfação". Uma vez percebido isto, tratei de silenciar-me e deixar que outro assunto surgisse no ar, enquanto o velho e conhecido sentimento de solidão tomou-me por completo. E assim foi até o findar da visita.
Minutos depois, enquanto Deca ao meu lado no sofá dormia, em minha mente, como de costume, vários e vários questionamentos...
Onde estão as pessoas assumidamente insatisfeitas como eu?
Onde estão as pessoas que buscam pelo Real Amor dentro de sua “casa interior” e não esse “pseudo-amor parental” propagado socialmente?
Onde estão as pessoas preocupadas em conseguir as "chaves" para abrir a “porta de suas mentes” e conseqüentemente de seus corações?
Onde estão as pessoas que não mais se iludem com “sonhos de segurança” em transitórias “conquistas materiais”?
Onde estão as pessoas preocupadas com a descoberta da real vocação, ao invés da conformação a um emprego que não amam e a um curso superior qualquer devido a pressão da empresa na qual trabalham feito escravos?
Onde estão as pessoas que não mais se iludem com as promessas de bem-estar vendidas através dos apelos consumistas movidos pelos "brancos sorrisos de Phototoshop" das campanhas publicitárias?
Onde estão às pessoas realmente interessadas em “buscar em primeiro lugar o Reino de Deus”, sem o egocêntrico interesse de garantir o que realmente buscam: “resto” acrescentado?
Onde estão as pessoas que entenderam o significado da palavra “resto”?
Onde estão as pessoas que realmente investem na aquisição de uma "mente própria" e não numa mente formatada de segunda mão?
Será que essas pessoas existem?
A falta de respostas para estas perguntas trouxeram-me a boca o gosto amargo dos momentos de solidão, o qual de forma consciente tentei aplacar com uma aquecida xícara da canjica amorosamente trazida pelo casal de amigos.
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Foto:www.fagondesimoveis.com.br/minhacasa/minha-casa-minha-vida.jpg