Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

23 novembro 2007

O valor da doação espontânea

Acordei atrasado, com o toque do telefone. Na noite anterior eu havia me programado de acordar bem cedo, para ir até a Paróquia Santana, verificar a possibilidade de alugar uma de suas salas para dar inicio a um grupo de auto-ajuda. Como fiquei assistindo um bom filme até tarde e meu corpo resistia a idéia de sair da cama para atender a ligação, deixei o telefone tocar até que parasse. Olhei no relógio e vi que já eram quase 9:00 horas da manhã. Virei para o outro lado da cama quando o telefone tocou novamente. Atordoado e de mau humor, fui atendê-lo...

- Alô!

- Bom dia! Por favor, é da Autoreg?

- Não, senhor, este número não é mais dessa loja de automóveis.

- Desculpe-me. Por acaso o senhor teria o telefone deles?

- Não tenho como lhe ajudar, senhor.

- Ok, muito obrigado e desculpe o incômodo.

- Por nada, tenha um bom dia!

Vai ver que ele me ligou só para me acordar – pensei comigo.

Como estava atrasado, tratei de me arrumar às pressas e bebi um copo de leite quente enquanto preparava a carta com a solicitação da sala para ser entregue na secretária da Igreja. Ao chegar ao ponto, para minha surpresa, o mesmo estava bastante lotado. Dei graças por não ter que me sujeitar todos os dias a esta situação e poder me dar ao luxo de esperar por um coletivo vazio.

Ao chegar em Santana, tive que esperar quase vinte minutos para ser atendido pela secretária da Paróquia, uma vez que ela estava dando atenção para uma senhora da terceira idade, que havia perdido o marido há poucas semanas. Enquanto elas conversavam, fiquei observando o mural de avisos da paróquia, o tamanho daquela igreja vazia, o cofre logo na entrada da igreja junto a parede da secretaria e as grades de proteção da mesma. A secretária conversava com aquela senhora por trás de um grosso vidro, onde apenas uma pequena fresta dava passagem para o som. Pude perceber o esforço feito pela secretária para romper com a impessoalidade que aquele grosso vidro criava. Junto ao batente do vidro, um bloco de papéis para anotar o nome das pessoas a serem lidos durante a missa, onde a frase "valor da doação espontânea" estava marcada em destaque. Atrás de mim, duas salas davam lugar a uma pequena loja de livros, imagens, velas e outros adornos religiosos. Quando chegou minha vez de ser atendido, entreguei-lhe a carta e falamos rapidamente sobre o motivo da minha presença. Ficamos de nos falar novamente, na semana seguinte. Agradeci sua atenção e disse-lhe que retornaria a ligação conforme o combinado.

Sai pela calçada observando o comércio, as lojas, a população, os camelôs e a enorme quantidade de lixo, que naquela hora do dia já se esparramava pelas calçadas e guias. Há uma energia bastante pesada no local. Várias barracas de cd´s e dvd´s piratas, dando destaque aos de material pornográfico com suas fotos coloridas bem expostas. Garotas uniformizadas tentavam seduzir os pedestres com promessas de crédito fácil. Bonés, camisetas, bermudas, tênis, artigos eletrônicos, todos falsificados e contrabandeados sendo vendidos sobre o olhar da policia militar e a policia metropolitana. Aproveitei o momento para passar num pequeno sebo, para ver se dava a sorte de encontrar algum exemplar dos livros de Krishnamurti, mas, como em outras ocasiões, não obtive sucesso – a maioria das pessoas nem ao menos sabem quem é esse escritor. Saindo de lá, passei na Padaria Polar, onde pedi por uma média quente e um pão com manteiga na chapa para quebrar um pouco da frieza e impessoalidade do atendimento. No caixa, um senhor com o olhar bastante sério ensinava uma jovem a operar o sistema. No balcão, todos se alimentavam apressadamente.

Já a caminho da plataforma de ônibus, uma pequena porta que dava para um pequeno e estreito corredor me chamou a atenção. Pelas paredes estavam expostas várias capas de DVD´s originais, porém usados. Um jovem rapaz, um pouco obeso para a sua pequena estatura, contrariando a mecanicidade do atendimento da região, cumprimentou-me com um simpático sorriso.

- Bom dia! Já conhece nosso pequeno espaço?

- Ainda não, senhor.

- Por favor, fique a vontade. Ao final do corredor temos muito mais títulos. Não gostaria de conhecer?

- Vamos lá!

Antes mesmo que eu lhe perguntasse algo, o jovem rapaz disparou a falar:

- Trabalho somente com cd´s e dvd´s usados, semi-novos e originais. Não trabalho mais com pirataria, apesar de ter vivido disso por mais de quinze anos da minha vida. Vivi um verdadeiro inferno durante estes anos em que eu me orgulhava de dizer, batendo no peito, que meu nome era trabalho e meu sobrenome, hora extra. Foi como camelô de pirataria que cheguei ao fundo do poço... As pessoas que passam por aqui, não sabem nada daquilo que passamos atrás destas barracas improvisadas... Boa parte do que ganhamos, os "zomes" acabam tomando... É muita sujeira, fofoca, disque-disque... Um verdadeiro circulo vicioso de inveja e corrupção... É cada um por si e a propina por todos... Vivi muitos anos preso nisso, porque achava não saber fazer de modo diferente... Tive que chegar ao fundo do poço... É como a televisão... A gente passa anos e anos assistindo a TV Globo por que acredita não ter nada de melhor para assistir... E não acha mesmo por que os olhos estão fechados...

A energia que ele transmitia com a sua fala era tão contagiante, que ficava difícil de olhar para os títulos dos dvd´s. A principio, meu condicionamento pedia para não dar atenção, mas, decidi deixar as capas de lado e olhar para ele.

- Eu vivi esse mundo da rua, durante muitos anos... Aprendi muito nessa faculdade. Existe tanta maldade e perversidade, que não tem como você não ser contaminado com ela. Eu vivia só para o dinheiro e o dinheiro vivia só para os gastos com as mulheres, de onde eu tirava a minha idéia do que fosse o amor. Mas foi quando eu tive uma experiência espiritual que me resgatou desse mundo... Hoje, o que ganho fica a milhas de distância daquilo que eu ganhava com a pirataria e o contrabando, só que faz toda a diferença... Hoje me sinto limpo e o que eu ganho, ganho com qualidade.

- Compreendo muito bem o que você está me dizendo. Qual é o seu nome?

- As pessoas me conhecem como Toninho.

- Sou o JR. Pode ter certeza de que estou tendo um grande prazer em conhecê-lo.

- O prazer é todo meu!

- Diga-me, quanto custa este DVD? – Perguntei-lhe apontando para a capa cujo título era, "Nada é para Sempre", estrelado por Brad Pitt.

- Esse está R$10,00. É usado, no entanto, está em perfeitas condições. Se quiser, posso passá-lo para você, JR.

- Por favor, deixe-o separado enquanto procuro por outros títulos.

- Está bem.

- Enquanto procuro, conte-me mais sobre a sua história, principalmente sobre sua "experiência espiritual".

- Se não fosse ela eu ainda estaria lá, corrompendo e sendo corrompido. No entanto, tive a graça de ter sido resgatado. Hoje, voltei até a estudar, estou fazendo supletivo. Engraçado, fiz a faculdade da vida e agora faço o supletivo atrás de conhecimento.

- E o conhecimento daqui de dentro? – perguntei-lhe tocando o centro de seu peito.

- Este, Deus aos poucos está me fazendo conhecer. – respondeu-me com o mesmo sorriso simpático.

- Isso, para mim, é o mais importante de tudo. Conheço muita gente letrada, pós graduada e totalmente analfabeta de si mesmo... E quanto custa este aqui: "O Naufrago"?

- Esse também é usado, mesmo preço, R$10,00.

- Mesmo sendo duplo?

- É mesmo, esse é duplo... Não faz mal! Já havia lhe dado o preço, fica por isso mesmo.

- Por favor, veja o valor correto.

- Palavreado é palavreado, R$10,00.

- Se para você está bem, então, para mim tudo bem, também. Deixe-o separado.

- Com licença, vou dar atenção para aquele senhor na entrada da loja. Fique a vontade. Tem muito título bom espalhado por aqui. Vai garimpando que você vai encontrar raridades, jóias raras do cinema.

- Ok, Toninho.

Enquanto ele dava atenção a um senhor que pela conversa, já era um antigo cliente seu, fiquei pensando no porque dele ter me dito tudo aquilo sem se quer ter me visto uma única vez. Pude sentir que ele realmente amava aquilo que fazia e que, através da conversa, tentava transmitir um pouco da sua alegria pela sua nova maneira de viver. Senti que naquele momento, havia encontrado alguém com quem poderia manter conversas nutritivas, alguém com uma história de vida, que sem dúvida alguma merecia espaço em meio das minhas Histórias para Cuidar do Ser.

- Toninho, hoje vou levar somente o filme "Nada é Para Sempre". Estou com pouco dinheiro, outro dia volto para continuarmos esta prosa e com certeza, levar outras raridades da sua loja.

- Será um prazer poder atendê-lo.

- Você pode me passar seu cartão com o seu telefone?

- Olha só, estou sem telefone, pois tiver que cortar algumas despesas, mas aqui está o meu cartão.

- Aqui estão os R$10,00. Obrigado!

- Eu que lhe agradeço. Vai na paz!

Ao pegar a sacola plástica, percebi que ele havia colocado os dois DVD's.

- Toninho, você colocou os dois títulos, não vou levar "O Náufrago".

- Por favor, JR. Faço questão.

- Como assim?

- Espero de coração que você encontre aquilo que está buscando nesses filmes. Fique tranqüilo, sei o que estou fazendo, não estou tendo nenhum prejuízo. Fique com ele.

- Você tem certeza?

- Por favor, aceite-o!

- Muito obrigado! Muito obrigado! Pode ter certeza de que voltarei e continuaremos nossa conversa!

- Vá com Deus!

Quando sai da pequenina loja, parei para pensar enquanto olhava para o movimento espremido da calçada... Fiquei pensando no que acabara de vivenciar naquela pequenina artéria do coração corrompido do comércio de Santana, mal podia acreditar... Havia mantido contato, em meio de tudo aquilo, com um homem de sangue revigorado, cujo dinheiro não era tudo... E com o sentimento de profunda gratidão, segui meu caminho em direção da plataforma de ônibus.





Você amaria desse jeito?...

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!