Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

29 novembro 2007

Palavras

Mais um dia de céu limpidamente azul, em que a brisa leve não é capaz de trazer frescor para o calor dos fortes raios solares. Do outro lado da rua, algumas senhoras caminham pela calçada sobre a proteção colorida de suas sombrinhas, enquanto que deste lado, a insensibilidade dos pedreiros da construção, faz com que as pessoas tenham que perigosamente caminhar pela rua, uma vez que preparam o concreto a ser usado na laje, usando a totalidade da calçada. Nessas horas, nenhum fiscal da prefeitura aparece por aqui.

- Bom dia, JR! Está tomando conta da árvore?

- Não, Sr. Pitágoras, ela é que está tomando conta de mim, protegendo-me com sua sombra, dos fortes raios de sol dessa manhã maravilhosa.

- Como é? Não está lendo como de costume? Essa cena já está fazendo parte do dia a dia das pessoas que caminham por esta calçada.

- Hoje não, tirei a manhã para meditar um pouco.

- Você quer dizer, pensar um pouco?

- Não, digo meditar.

- Mas, meditar não seria fazer uso de uma determinada técnica para tentar silenciar a mente?

- Se assim fosse, então, a palavra mais correta seria "tecnotizando", ao invés de meditando, o senhor não acha? – Risos.

- Essa questão do uso da palavra é muito complexa.

- Levando em questão que a palavra não é a coisa, então, tudo bem. Se o senhor acha que o termo mais correto seria "pensar", então, que seja assim. O importante é nos entendermos, ficar com espírito da coisa e não com a limitação da palavra que divide.

- Acho importante prestar atenção no uso correto das palavras. A maioria das pessoas nem se quer possuem a consciência de que a palavra tem poder.

- Pudera, nunca fomos ensinados, ou melhor, incentivados a "meditar" sobre as palavras. Ao contrário, vejo que desde a mais tenra idade fomos condicionados a nos manter bem afastados de um dicionário. Lembro-me que fazer uso de um dicionário era recorrer a ajuda dos "pais dos Burros". Não é dessa forma que as pessoas se referem ao dicionário?

- Sim, é verdade!

- O resultado é que a grande maioria das pessoas acaba ficando somente na superfície etimológica e, portanto, recebendo tudo conforme seu fundo psicológico. E, como resultado, a palavra – que é um símbolo – não consegue atingir o seu simbolizado.

- É por isso que digo ser de máxima importância o bom uso da palavra. Um povo que desconhece sua língua é muito mais fácil de ser manipulado.

- Sem dúvida!

- Mas, você quer dizer com isso que não costuma "meditar" no sentido como esta palavra é usada pelo senso comum?

- Não mais, Sr. Pitágoras, não mais!... Isso para mim já é pele de cobra... Já descartei esse tipo de prática há muito tempo atrás. No entanto, devo lhe dizer que durante alguns anos também acreditei no uso dessas "técnicas", sendo que cheguei até a fazer uma verdadeira via cruxis por vários chamados "Centros de Meditação".

- Dias atrás eu estava na padaria tomando meu café da manhã, quando um bem editado folheto me chamou a atenção.

- Acho que sei de qual folheto o senhor está se referindo.

- Era um todo preto com uma imagem estampada de Buda, só não me recordo o nome da instituição...

- "Meditadores Urbanos".

- Sim, isso mesmo!... Meditadores Urbanos. Achei o nome bastante sugestivo, só não achei interessante ter que pagar para silenciar a mente... Só essa questão de ter que envolver dinheiro, já gera barulho em minha mente.

- Talvez tenham meditado muito para poderem criar esse nome! Ficou muito bom!

Nossa conversa foi interrompida pelo toque insistente do telefone da loja.

- Por favor, senhor Pitágoras, me dê um segundinho para que eu possa atender a ligação.

- Fique a vontade.

- Enquanto isso, deixe que a sombra da pequena pitangueira cuide do pipocar dos pensamentos da sua mente.

(...)

- Sincronicidades! – Exclamei com um enorme sorriso no rosto, enquanto caminhava em sua direção.

- Que têm elas?

- Antes de o senhor chegar, eu estava meditando a respeito do termo "consumose".

- Consumose? Que diabos significa isso? Desconheço essa palavra!

- Essa não está no seu arquivo?

- Essa não! Vai ver que é por causa da edição do meu "Pai dos Burros" ser bem mais antiga do que a sua. – Respondeu-me com seu sorriso amarelado.

- Sim, esse termo não se encontra em nenhum dicionário. Tenho meditado nele como uma forma de simbolizar a patologia do consumismo, essa terrível doença resultante desse capitalismo selvagem criado pelos selvagens homens ditos civilizados.

- Interessante!

- Mas, como lhe dizia, estava rindo por causa das sincronicidades. Veja, eu estava aqui meditando sobre a patologia do consumo, quando recebo uma ligação da equipe de edição do SBT, solicitando o telefone de um grupo de auto-ajuda, nos mesmos moldes de A/A – Alcoólicos Anônimos -, para pessoas que tenham a compulsão pelas compras.

- Mas, por que eles ligaram para você? Qual a sua ligação com eles?

- Nenhuma. Chegaram ao meu telefone devido ao conteúdo do site da Cuidar do Ser. Nele, tenho um link que indica vários grupos que ajudam a Cuidar do Ser que nos faz ser. Por isso ligaram para mim. No entanto, não conheço a existência de um grupo especifico para a questão da compulsão pela compra. Só sei da existência de um grupo chamado "Devedores Anônimos", foi isso o que disse para eles.

- Me fale mais sobre essa tal de "consumose".

- Ainda não tenho nada escrito sobre isso; trata-se de um inicio de estudo sobre essa abordagem. Antes de o senhor chegar, eu estava me questionando se todo esse acelerado e frenético avanço tecnológico tem sido capaz de preencher as profundas e, na maioria dos casos, inconscientes lacunas geradas pelo esquecimento da qualidade do ser que nos faz ser. Estava me questionando se a felicidade e o sentido da vida humana tem avançado na mesma velocidade das descobertas tecnológicas viabilizadas para garantir a liderança nesse competitivo mercado de consumo imediato.

- Creio que não, a meu ver, ao contrário, isso só tem servido para manter as pessoas distanciadas de suas próprias realidades vazias.

- Sabe, agora a pouco, enquanto meditava, um menino, não mais que uns 15 anos de idade, parou diante da porta do salão da barbearia ao lado, carregando um belíssimo catálogo de moda de uma rede de lojas do setor de surfwear... Material de primeira, de fazer inveja às grandes revistas de moda existentes há muitos e muitos anos. Bem diagramado, com papel especial, fotos coloridas de belas modelos por todas as páginas e da espessura de um bom livro. Tudo em nome do consumo de verão... Ao ver aquilo, pensei comigo como é mais fácil arrumar verbas de patrocínio para a editoração, diagramação e publicação de um catálogo de moda, do que para um livro que aponte para o despertamento do ser e, conseqüentemente, de um modo de vida pautado na simplicidade voluntária, na necessidade básica e não nas ilusões do mundo do consumo. Percebo que, a cada dia que passa o investimento sério no "ser" é substituído pelo ilusório investimento no "ter". Esse é verbo é conjugado do seguinte modo:


Eu tenho.

Tu não tens?

Ele tem!

Como vós não tendes

Então, não és:

Eles é que são!


- Sim, isso me parece ser um fato. Vejo que as verbas hoje são direcionadas para o que chamo de "Cultura de Almanaque" e, como nos dizeres de um grande amigo meu, para livros de "Sabedoria Mística Esquizotérica".

- Esquizotérica... Gostei muito desse termo! Creio que seu amigo tem toda razão, realmente, tem muita coisa esquisita dentro dessa área. Durante estes anos em que trabalhei como livreiro, tive a oportunidade de testemunhar o quanto que as pessoas procuram por títulos que acabam lhes fragmentando ainda mais e como resultado, ampliando a péssima qualidade de suas vidas de relação. Livros que levam a um profundo e sério mergulho em si mesmas, esses, nem pensar!

- É verdade!

- Esse tipo de livro nunca vai estar na moda! Para a grande maioria das pessoas, o que interessa é o tal do Segredo vendido por um bom preço pelos formadores do modismo literário. Não estão a fim de buscar por uma literatura que, por exemplo, possa ajudar no tratamento das feridas infantis que elas insistem em esconder no fundo embolorado de suas caixas de brinquedos de adulto. Não querem saber de livros que ajudem a lançar um olhar carregado de compaixão, capaz de fazer com que as grossas e enferrujadas grades do vitimismo sejam abertas, proporcionado liberdade para si mesmas e para aqueles a quem julgam seus vitimizadores. Parece-me que o mercado literário não está interessado em investir nos livros cujo conteúdo seja capaz de gerar uma nova visão balsâmica que possa resgatar alguns sobreviventes a deriva, castigados pelas fortes ondas desse imenso oceano de desamor.

- JR, mesmo que se estivessem interessados, lhe pergunto: haveria público para tais livros?

- Eu acredito que existe. Lembro-me de uma ocasião em que fui até uma editora, questionar o porquê de eles terem parado de editar os livros de um grande pensador e filósofo brasileiro, já falecido. Obtive do editor a seguinte resposta:

- Senhor JR, é preciso entender nossa posição. Somos uma editora e uma editora tem como objetivo a venda de livros. Enquanto publicamos 2.000 livros do autor de seu interesse, que por sinal, acabam ficando quase um ano ou mais em nosso estoque acumulando poeira, vendemos quase 30.000 exemplares de um Dom Casmurro em questão de dois meses. Se você estivesse em nosso lugar, o que faria?

Então lhe respondi:

- Faria 35.000 Dom Casmurro e 2000 livros deste pensador, mas, de forma alguma deixaria de editá-los.

(...)

- É, JR! Parece ser assim mesmo que as coisas funcionam! Hoje, mais do que nunca o que vale é o imediatismo numérico. A ética e os valores mais profundos estão dando lugar a valores virtuais.

- Sabe, pode até parecer utópica esta minha visão, mas, eu ainda acredito que existam pessoas que busquem com seriedade por livros capazes de depurar todas as células carregadas de seus bancos de memória, as quais lhe impede de processar os fatos do cotidiano sem as lentes distorcidas de suas lembranças. Acredito em livros que possam facilitar o reaprendizado da tão negligenciada leitura dos sinais que a vida, tão importantes nos momentos em que nos vemos em suas encruzilhadas, que na realidade, representam momentos mágicos carregados de significado. Acredito em livros que possam ajudar o ser, que ainda está longe de ser chamado de humano, a se libertar do vicio coletivo de carregar um passado de lamurias e insistir com ele infectar os ouvidos dos menos precavidos. Percebe?

- Sim, percebo. Estou com você: acho que vale conspirar por esse sonho.

- Sabe, senhor Pitágoras, acho que mais do que nunca na história de nossa civilização, nunca estivemos tão carentes de pessoas que busquem com seriedade e paixão pela arte do cuidar; pessoas que busquem pelo trabalho interno capaz de remover os véus que as impedem de ver mais longe e que as mantém num estado profundo de letargia dentro das masmorras das velhas estruturas humanas. É sobre isso que venho há tempos meditando.

- Sim, acho que fizemos uma boa meditação juntos. Pena que neste mundo a gente viva e morra pelo compasso do relógio. Gostaria de poder, como você, dedicar mais tempo para momentos de reflexão. Quem sabe, um dia eu chegue lá.

- Sr. Pitágoras, se me permite, o momento é agora!

- Cada um sabe onde lhe aperta os calos.

- Se sabe mesmo, por que não assume a responsabilidade de fazer algo para aliviá-los?

- Essa é uma boa pergunta!

- Poderia meditar sobre isso?

- Vou tentar!

- Gostaria de poder compartilhar dos resultados.

- Com certeza. Até breve!

- Até mais!

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!