Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

28 julho 2010

Pesadelo numa nublada manhã


No horário de sempre, acordou com a música já não preferida de seu celular. Por breves instantes, a reprimida vontade de atirá-lo contra a adesivada parede do quarto. Ao seu lado, o corpo quente e malhado de sua esposa, sob a transparência de seu baby-doll. Sentado a beira da cama, deu-se conta de como tudo estava mudado. Há tempos já não se procuravam pela manhã, como nos primeiros meses do casamento. Sentado a beira da cama, foi tomado por suas lembranças, até o segundo chamado do despertador de seu celular. Levou as duas mãos à cabeça, apertando o couro já não tão cabeludo. O corpo curvou-se. Sentiu correr pelo corpo, aquele rotineiro frio, até o mesmo se alojar em seus intestinos. Da linguagem do corpo, esse amargo vocábulo já lhe era conhecido. Este, pronunciava mais um crônico dia depressivo a ser heroicamente escondido de todos. Num herculano esforço, levantou-se; calçou os chinelos em direção ao banheiro. Deteve-se por segundos. Decidiu-se pela janela da enorme sala de estar. No caminho, uma parada no quarto do caçula. Abriu a porta devagarzinho, não se atreveu a acender a luz. Dormia aquele sono angélico, dele, há muito desconhecido. Fechou a porta e encostou-se na parede, tão fria como seu estomago. Suspirando lembrou-se dos anos de menino, quando seus únicos medos estavam em seus sonhos, resultante dos monstros assistidos nos seriados da manhã anterior. Ainda encostado na parede, levou seu olhar para o teto, esticando o pescoço. Quem sabe assim, a angústia causada pelas lembranças pudesse descer mais redondo. Respirou fundo. Do outro lado do corredor, a porta do quarto de sua adolescente filha. Tentou abri-la. Trancada. A bola na garganta pareceu aumentar. Ela estava crescendo e a porta trancada, era um sinal de que seus medos há muito já haviam saído de seus sonhos. Com a mão trêmula à maçaneta, indagou-se:

- De que estaria com medo? Dos adultos queridos? Ou, de forma inconsciente, do futuro modo de vida, por ela a ser herdado?

Tentou achar respostas em suas lembranças, mas nada encontrou. Havia crescido num ambiente carente, onde quatro, dormiam no mesmo quarto. Levou sua mão à boca, recolheu um beijo; por segundos teve dificuldades de mensurar a altura de sua filha. Depositou o beijo no centro da porta e dirigiu-se para a enorme cortina da sala. Não havia sol. O céu tinha o mesmo cinza de seu mundo interior. Ao longe pesadas nuvens. Embaixo, igualmente seus pensamentos, pesado e solitário trânsito.

No banheiro, enquanto a água esquentava, reparou no tom escuro de sua urina. Na mente, as velhas preocupações com doenças. Imóvel, deixou a água cair sobre o franzino, mas pesado corpo. Percebeu que o corpo estava lá, mas a alma não. Levantou o rosto na vã expectativa de que seus pensamentos também pudessem ser levados pela água. Olhou para o chão, onde, para sua tristeza, pelo ralo, só água escorria. A felpuda toalha, como sempre, rapidamente correu pelo seu corpo. Não houve tempo para apreciar sua maciez. Como resultado do mecânico movimento, há tempos carregava uma frieira no dedinho esquerdo, que uma vez coçada, exalava horrível cheiro.

De volta ao quarto, sua mulher ainda na mesma posição. Abriu a porta do guarda roupa, ficando em dúvida na escolha da cor da máscara e da armadura. Apertou bem o nó da vermelha gravata para que sua angústia, dali não pudesse escapar em direção dos que nada tinham a ver com isso.

Na garagem, nem o cheiro do banco de couro de seu importado carro do ano, lhe trazia bem estar. Começava a luta, onde o primeiro round, se dava na longa avenida em direção ao trabalho. Seu adversário, o apressado motorista que lhe forçava a ultrapassagem pelo lado direito. Esforçando uma coragem troiana, fechou sua passagem. Mesmo protegido pelo escudo do insulfilme, não se atraveu a olhar para o lado. O trânsito continuava lento, mas não o fluxo de seus pensamentos. Como o motorista ao lado, tentou detê-los, mas estes lhe ultrapassavam com tudo, roubando-lhe a atenção. O farol abre, ao mesmo tempo em que soa a buzina do carro de traz. O trânsito, em lentidão, segue. Sua alma tenta ficar.

No escritório, em direção à sua sala, aos funcionários, sorrisos de está tudo bem. O corredor com as várias mesas alinhadas parecia não ter fim. O frio da ansiedade novamente correu até seus intestinos e com disfarçada dificuldade chegou à porta de sua sala, a qual fechou como os pesados portões de Tróia. Assustado, ali se trancou, buscando refúgio do espartano exército de vendedores e representantes, que ansiosos, já lhe aguardavam. Do frigobar, uma gelada garrafa de água. Da primeira gaveta de sua mesa, sacou a caixa de lenços de papel. Respirou fundo. Um gole d'água. Dois lenços de papel sobre o oleoso suor de sua testa. A enorme bola na garganta forçou-lhe o afrouxar da gravata. Na mente, os pensamentos a mil. Mais um gole de água. Os mesmos lenços. Pela janela, o tom nublado. Sobre a mesa, uma enorme agenda a ser cumprida. Num respiro de esperança, olhou para o lado em direção ao cofre. Não precisou conferir na agenda os números da combinação. Dentro, dólares, reais, apólices, documentos, algumas ações e um cromado calibre 38. Cinco balas. Assim como a porta do escritório, certificou-se de tê-lo trancado bem. Caminhou em direção à janela. A idéia de 14 andares de vento frio, fez novamente correr o frio até seus intestinos. Não tinha coragem; desde criança, sempre teve medo de alturas. Abaixou a cabeça, na mão esquerda o 38 cromado. Sentou-se na macia poltrona de couro. Outro gole d'água; mais dois lenços. O 38 sobre a mesa. De um lado a agenda, do outro, o cofre. A porta trancada. O celular desligado. Na janela, céu nublado. O 38 na mão. A camisa branca. A gravata vermelha ainda mais frouxa. Já não há lenços. Da janela, entre as nuvens cinzentas, um pequeno raio de sol faz reflexos no cromado 38... Uma pausa, mais um respiro longo. Outro gole d'água. A vermelha gravata agora assume o lugar dos lenços de papel. Ele respira fundo. Olha fixamente para o 38. Lembra-se da esposa e filhos. Olha na parede, o retrato de seu pai, com olhar sério, fundador da empresa, onde hoje, lhe pesavam mais de 300 funcionários, parece censurar seus pensamentos. Lembra-se de Maria, a faxineira. Pensa nos barrigudinhos filhos de Maria. A camisa branca. A gravata vermelha. Olha para a janela, o dia parece querer abrir. O 38 na mesa, sobre a agenda. Ele abre a gaveta. Nela, bolinhas coloridas numa caixa branca com tarja preta: FELIZAC. Um gole d'água; cinco bolinhas. A enorme bola na garganta parece sumir. A gaveta se fecha. Nela, o 38 cromado. No banheiro, a urina parece mais escura e seu cheiro forte faz com que se lembre dos espartanos vendedores, todos de plantão à sua espera. Um respiro fundo enquanto a gravata é ajeitada. Pelo telefone, pede à secretária, com urgência, por uma caixa de lenços de papel e que faça o primeiro gladiador entrar.

Em casa, rainha, príncipe e princesa, cada um em seu quarto, lhe aguardam. No estacionamento, um carro com bancos de couro. Na gaveta, FELIZAC, cinco balas e um 38 cromado.







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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!