Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

23 maio 2007

Quem é você sem o seu trabalho?

A água límpida da chuva que já cai há quase dois dias passa rapidamente pela guia da calçada formando em sua superfície um pouco de espuma devido ao seu rápido movimento. Gotículas de água enfeitam a folhas da pequena árvore e seu tronco aparenta-se mais escuro. A construção da esquina, por causa da continuidade da chuva, hoje, teve seu andamento suspenso. Os vidros embaçados dos coletivos impedem o reconhecimento dos rostos dos passageiros. A temperatura caiu bastante, fazendo com que o fluxo de pedestres pela calçada seja quase inexistente; os poucos que se aventuram, trazem os calçados e a bainha das calças bastante encharcados. Já são mais de 11:30min. da manhã e até agora não recebi a visita de nenhum cliente. Da porta da loja, observo silenciosamente o movimento dos automóveis. Pelo tom escuro das nuvens, parece que esta chuva continuara o dia todo. A sinfonia da manhã é formada pelas gotas da chuva na calçada, pela água que escorre pelos batentes e pelos pneus no asfalto molhado.

Ele estacionou seu Ford K azul metálico, distante alguns metros da entrada da loja, afetando assim o fluxo natural da água pela guia da calçada. Com o olhar carismático e seu sorriso de menino, menos gordo que da última vez que nos vimos, apesar da chuva, parou para me cumprimentar.

- E aí Brother? Belê?

- Fala Marcinho! Indo mais tarde para o serviço por causa da chuva?

- Que nada! Agora estou fora!

- Como assim?

- Saí da empresa... Não estava dando jogo; a coisa lá é centralizada demais. O dono não consegue ver a empresa além das portas da loja. Para ele, o que vende na loja é o suficiente. Não há uma política externa. Aí ficou difícil para mim. Fizemos um acordo que acabou me ajudando em muito para quitar umas dvidas que eu tinha e agora, estou trabalhando como representante comercial deles. Para mim ficou bem melhor, apesar de não ser aquilo que mais gosto de fazer. Só nestes três últimos meses, acabei ganhando o que não consegui ganhar em um ano e meio de fábrica...

Como sempre, empolgou-se em falar a respeito do seu assunto predileto: negócios, dando sempre destaque a todo seu conhecimento adquirido nas empresas multinacionais nas quais trabalhou durante seus primeiros anos de carreira. Enquanto ele falava de forma entusiasmada sobre os últimos acontecimentos, eu observava o contraste existente entre o brilho de seus branquíssimos dentes e o amarelado opaco de seus olhos. Deixei ele falar a vontade, o que mais parecia um monólogo do que um diálogo. Assim que tive uma chance lhe perguntei:

- Muito bem Marcinho! Agora que você já falou por quase quinze minutos sem titubear a respeito da empresa e da sua vida profissional, será que agora você poderia-me falar sobre o que realmente me interessa: como está você sem o "agregado" empresa?

- Ah!... Estou bem! - Respondeu-me desviando seu olhar para o movimento dos carros na avenida.

- Poxa! Você falou da empresa por quase 15 minutos e limitou-se a responder sobre você em questão de segundos?... Você não tem nada para me falar a seu respeito?

- Está tudo bem! Tudo na mesma! Não há nada de significativo! As coisas estão fluindo como Deus quer! E você? – Perguntou-me numa tentativa de retirar a atenção de si mesmo.

- Estou vivendo tempos extremamente nublados... Uma importantíssima, mas, dolorosa crise existencial. Não estou mais suportando trabalhar com o que faço hoje e o pior é que não tenho um insight que me aponte um novo paradigma vocacional. Percebo que minha mente está condicionada naquilo que sempre fiz até hoje: loja ou designer gráfico. Já não tenho brilho no olhar para nenhuma das duas áreas.

- Sei muito bem o que é isso, aliás, acho que todas as pessoas vivem isso, mas preferem não tocar no assunto e acabam empurrando com a barriga... Sei muito bem o que é sofrer por causa da rotina, do tédio e da insatisfação. Mas, como não se apresenta nada de novo, vamos tocando. Você sabe como é, neste planeta, sem estabilidade financeira não dá!

- E quando a defesa da estabilidade financeira coloca em risco a sua estabilidade emocional? Como é que fica?... Por favor, responda-me!

Nesse instante, um grande amigo evolutivo de conversas filosóficas, dentro de uma bela jaqueta de couro marrom adentrou pela porta da loja.

- Bom dia JR! Bom dia senhor!

- Bom dia Sr. Hiro! Este é o Marcinho, um antigo amigo meu!

- Muito prazer Márcio!

- O prazer é todo meu! Por favor não me leve a mal, mas eu já estava de saída! Vou aproveitar e já vou andando! Outro dia passo com mais tempo para terminarmos esta conversa!

- Vê se não se esquece da pergunta que lhe fiz! A gente se fala!

- Fique com Deus!

- Com qual deles?

- Com aquele que você preferir!...

- Vai na boa! Se cuida!

- E aí seu Hiro? Tudo bem? Estou com aquele filme argentino que lhe falei, o "Um Buda". Creio que o Sr. Vai gostar bastante.

- E você? Assistiu algum dos filmes que lhe emprestei?

- Ainda não tive a oportunidade. Só assisti parte daquela palestra do Paulo Gaudêncio cujo título é "O Entediado"... É preciso assistir com bastante calma pois ele coloca postulados totalmente diferentes dos convencionais.

- Pois é! Eu mesmo me choquei quando ele disse que o tédio é a ausência do medo!

- Eu até agora não engoli muito bem essa idéia não, pois isso me aparenta a idéia de que temos que viver motivados pelo medo e, sinceramente, não vejo muita inteligência nisso. No entanto, prefiro não tirar conclusões precipitadas. Mas, fique tranqüilo! Vou assistir com muita calma para que possamos conversar a respeito desse assunto.

- Gostei tanto das idéias do Paulo Gaudêncio que até Já me matriculei para um curso que ele dará daqui a dois meses. Ele já está com a agenda repleta para este curso por três meses. Mas, deixe ir direito ao assunto que me trouxe até aqui...

- Diga lá!

- Estive pensando muito sobre aquilo que você escreve em seus textos. Tenho os lido com bastante atenção e vejo que tanto o que você escreve, quanto aquilo que as pessoas trazem até você são reflexos do tédio e da insatisfação. Percebo que todas elas acabam vindo aqui para direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, matar o tédio, a mesmice e a insatisfação em seu balcão.

- Isso está claro para mim! Mesmo os meus textos, são uma maneira que tenho usado para dar sentido a mecanicidade do meu dia a dia.

- Você se queixa por não saber o que fazer, no entanto, você já está fazendo! Você já está escrevendo, mas ainda não está comprometido com isso. Penso que durante todos estes anos, você teve através desta loja, todo tempo necessário para colher muita informação e conhecimento. Creio que já está mais do que na hora de você compartilhá-los através de um livro de auto-ajuda. O que você precisa é focar um tema, explorá-lo, estudá-los, criar sua espinha dorsal, dividir o que pensa sobre ele com outras pessoas e ir colocando o que for descobrindo no papel. Escrever sem a expectativa de sucesso e reconhecimento logo no primeiro livro. O importante é ter uma meta, um objetivo. Eu acho que você já está mais do que pronto para isso, apesar de você afirmar o contrário. Sabe, eu particularmente acho que você e eu nunca estaremos realmente prontos... Quem é que pode afirmar que está? Aquele que afirmar já demonstra que não está! Pense nisso com carinho. Eu lhe apoio em tudo que você precisar para que esse material seja publicado. O que é preciso é dar o primeiro passo! Depois, a coisa começa a fluir por si só! Quando a coisa é para o bem comum, as coisas começam vir até nós. Só é preciso vencer o medo inicial.

- Eu lhe agradeço muito Sr. Hiro pela idéia, apoio e incentivo. Se me permite, isso que o Sr. acaba de me sugerir, já o estou fazendo através do blog "Histórias para Cuidar do Ser". Sinto que meu momento é de ir escrevendo sem estar preso em expectativas editoriais. O que quero com meus textos é encontrar por eco em outros corações que sentem como o meu. Quero encontrar minha tribo, pessoas que já despertaram para a essencial arte de cuidar do ser e poder trocar figurinhas com elas. Como o Sr. já sabe, há tempos que presto trabalhos de diagramação, editoração e criação de capas para algumas editoras. Sinto que ainda não é o momento de traduzir tudo isso em um livro.

- Você precisa procurar por uma editora de respeito como uma editora "Gente" ou "Vozes". E acho também que você deveria procurar pelo Leonardo Boff para prefaciar seu livro. Se me permite, acho que você deveria versar sobre o tédio e a insatisfação. Essas duas palavras deveriam estar em destaque na capa do livro. Vá pensando nisso, na capa... Apesar de você não gostar do filme "The Secret", acho que ele cabe bem neste momento. Tem que se pensar grande... Sei que você não acha correto querer editar algo que está influenciado pela experiência de outros pensadores... Acho que a coisa tem que começar assim até que você encontre sua própria mensagem. Muitos dos mais famosos escritores e palestrantes fazem isso também. Raros são aqueles que são realmente originais...

- Por isso mesmo que não acho correto, não acho justo. Não quero ser uma pessoa de segunda mão! A coisa mais fácil que tem é usar todo este conhecimento adquirido e maquiá-lo com minhas palavras... Em terra de cego espiritual, quem tem um olho vira palestrante de workshop; virou moda! E isso está se mostrando um grande mercado emergente. É muito fácil enganar o público, que em geral, busca por isso por que não tem visão própria e estão confusos. Está cheio de gente se trancando num quarto com vários livros esparramados e várias páginas da Internet arquivadas em seu histórico. Isso é muito fácil de fazer: resumir e maquiar o que foi dito por terceiros. Mas como posso enganar a mim mesmo? Não se trata de encontrar um modo de vida, mas sim, a própria resposta, a própria mensagem pessoal. Sinto que ainda não é o momento. No entanto, recebo sua sugestão com muito carinho. Veja, uma das coisas que tenho pensado muito é de criar uma editora para lançar meus próprios livros, bem como de outros autores que ao meu ver, também estejam versando sobre temas que realmente busquem pela negligenciada arte de cuidar do ser. Por enquanto, tudo está no pensamento, mas ainda, não tocou meu coração. Eu acredito na Vida e acho que se isso tiver que acontecer, pessoas irão surgir para a consolidação desse projeto.

- Ok! No entanto, pense nisso com carinho! Estava há semanas querendo lhe dizer isso. Acho que você já está pronto. O que você precisa fazer é apontar e fogo! Depois que a bala partir não dá mais para voltar a trás. Pense nisso! Não se esqueça: estamos juntos no que você precisar.

- Eu lhe agradeço muito Sr. Hiro!

- Vou nessa! Tenho ainda que passar na imobiliária para ver a respeito destas duas correspondências da União. Vê se assiste logo aquele filme "O Segredo por trás da matéria". Temos muito o que conversar sobre esse assunto. Já faz mais de duas semanas que lhe entreguei o filme; veja lá por que você está resistindo em assisti-lo.

- Nem é nada disso não! Falta de tempo e de cabeça para isso! Deixa que até o final desta semana assistirei o mesmo! Quem sabe encontro alguma resposta ali. Até outro dia!

- Até mais!

Antes mesmo que ele saísse pela porta da loja, a senhora minha mãe que acabará de chegar e a tudo escutava em silêncio, virou-se para nós mostrando-nos as palavras da folhinha 2006 da Seicho-No-Ie:


QUEM APROVEITA BEM O TEMPO VIVIFICA A PRÓPRIA VIDA.

Se você tiver sempre à mão um livro e um caderno, poderá usar seus momentos livres de modo bastante proveitoso, lendo, tomando nota, redigindo algo, esboçando um desenho etc. Pare de se lamentar que não dispõe de tempo. Tempo é algo que deve ser criado, encontrado, explorado, aproveitado, vivificado. A Vida é tempo, e, por outro lado, o tempo é Vida.

Do livro Nobiyuku Hibi no Kotoba(11) – Seicho Taniguchi


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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!