Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

04 maio 2007

Deuspressão

O dia amanheceu nublado, carregado daquelas nuvens escuras. O ar apresentou-se frio e o vento mantinha os cabelos em desalinho.

Há poucos metros de mim, sentados num pequenino muro, três conhecidos, jovens usuários de drogas, contavam suas moedas, provavelmente levantando fundos para uma dose a mais.

Ela chegou de forma tímida, perguntando-me pela presença da "simpática senhora portuguesa" por quem havia sido atendida dias atrás...

- Bom dia senhora! Dona Ida só se encontra na parte da tarde, no entanto, posso lhe ser útil?

- Talvez, vejamos... Deixei uma encomenda com ela e ontem recebi uma ligação dizendo que a mesma já se encontrava à minha disposição, por isso, vim aqui buscá-la.

- Qual o seu nome, senhora?

- Marlene.

- Pois bem, senhora Marlene, aqui está sua encomenda... Meu nome é JR... Bela gargantilha! Não gostaria de experimentá-la para ver como a mesma fica em seu corpo? Por favor!...

- Obrigada!

- Se a senhora preferir temos um espelho maior aqui no provador! Sinta-se a vontade!

- Ficou ótima! Vou levá-la! Era bem o que eu esperava!... Agora, por favor, deixe-me ver esses anéis... São de prata?

- Sim; prata 925... Não escurecem e a procedência é Tailandesa!

- Maravilhosos!... Posso experimentar sem compromisso este aqui com o formato de borboleta?

- Pois não, senhora!...

- Lindíssimo! Pena que ficou um tanto apertado... A borboleta não quer vir para a minha mão!

- Sim é lindo! Mas, muito mais lindo que seu formato é o seu significado!... A borboleta é um dos mais antigos símbolos para a representação do desenvolvimento e liberdade da alma humana!

- Então, vai ver que é por isso que me chamou tanta atenção logo de cara!... Sinto que é justamente isso do que estou precisando!... Não sei se é por causa da mudança do clima, mas hoje, amanheci péssima!... Sinto-me presa dentro de mim mesma! Sabe aqueles dias em que você sente a vontade de rasgar o peito de dentro para fora? Já experimentou isso alguma vez? Creio que não! Você me parece muito jovem para isso!

- Desculpe-me senhora, mas não creio que isso seja próprio de determinada faixa etária! Pois saiba que entendo muito bem o que a senhora está tentando dizer... Todos nós temos nossos invernos existenciais! E isso é uma verdadeira benção! Que seria de nós se fossemos só verão? Seriamos pessoas extremamente secas... Nesses invernos, entramos em contato com nosso intimo, nosso húmus... E esse intimo, esse húmus é que nos torna mais saudáveis, sensíveis e capazes de dar bons frutos... Se não fossem esses invernos existenciais seriamos estéreis desertos ambulantes ( e olha que tem um monte deles perambulando pelas ruas )... Já tive grandes invernos que pareciam nunca acabar!... E hoje acho que essas crises são os meus melhores patrimônios! A palavra crise tem grande relação com a palavra "crisálida"... A crisálida da borboleta... A lagarta só se transforma na bela, colorida e leve borboleta quando se entrega holisticamente e de boa vontade para esse processo de "crisálida"...

- Pois é! Conheço essa história!

- Na borboleta ou em você?

- Nunca tive coragem de me entregar por completo para esses sentimentos. Na realidade, tenho sempre procurado fugir de algum modo... No entanto, agora, me vejo enterrada nele até o pescoço!... Só para você ter uma idéia, vim da minha casa até aqui a pé para ver se consigo esfriar minha cabeça... É tanto pensamento que parece que a mente vai a qualquer momento estourar!

- Nem lhe perguntei: você gostaria de conversar um pouco sobre isso? Se quiser, fique a vontade! Sei por experiência própria que nesses períodos de inverno algo que ajuda muito é um par de bons ouvidos atenciosos... Principalmente daquelas pessoas que já viveram na pele o frio cortante desses invernos existenciais... Que sabem o que é uma depressão!

- Não gosto nem de ouvir essa palavra... Há anos que sofro de depressão... Tenho até que tomar remédio para poder dormir.

- Você deve saber muito bem que remédio só remedia...

- Tenho consciência disso, mas não me atrevo ficar sem eles... Já estou dependente! Se não os tomo não consigo dormir. Estou assim desde a morte do meu filho mais velho... Tomo Rivotril.

- Houve um período em minha vida em que também fiz uso de remédios. Foi logo na minha primeira crise... Hoje, procuro estar "limpo" para poder entender a mensagem evolutiva criativa que se esconde em suas entranhas.

- Pois é! Sinto que o remédio embaça a clareza da minha mente, só que ainda não consigo abrir mão dele... Nem acredito que estou falando isso com alguém que nem conheço. Não acho certo estar tomando seu tempo!

- Por favor... A senhora não viu o nome da nossa loja?

- Não!

- Cuidar do Ser!... Fique a vontade, aliás, na parte da manhã este balcão mais se parece com um divã do que um local de negócios... Esse nome não veio de bobeira! Na verdade, há algum tempo atrás, chegamos a ter um espaço terapêutico no andar superior, com vários psicólogos, terapeutas e atividades holísticas. Foi uma pena que o bairro não valorizou e tivemos que optar por encerrar as atividades.

- No bairro deve ser realmente difícil, uma vez que quase todas as pessoas têm medo de que os seus conhecidos fiquem sabendo de que estejam vivenciando períodos de crise. Falo isso por experiência própria, pois, meu terapeuta fica do outro lado da cidade.

- Concordo! Não fomos ensinados e incentivados a dar às boas vindas para aquilo que hoje chamam de "depressão" e que antigamente era sabiamente visto como um "rito de passagem". Alguns, hoje, chamam isto de "doença de rico"; eu acho que poderíamos dar o nome de "deuspressão"...

- Como assim?

- Minha experiência me ensinou que aquilo que chamam de "mal do século", na realidade, quando acolhida e bem assistida, é uma verdadeira benção... É uma pressão interior proveniente da oculta inteligência criativa que clama por ser despertada. Essa Inteligência mostra que em algum lugar do nosso passado começamos a nos distanciar de nós mesmos para satisfazer as expectativas descabidas e imaturas das nossas pessoas significativas, bem como da sociedade. A "deuspressão" é um grito de alerta da profunda inteligência do nosso ser que nos diz:

(...)

- Escute-me, caso contrário, lhe mato! Não quero você numa existência sem vida. Quero você com vida e com vida em abundância! Portanto, escute-me a sós e silenciosamente, pois nas entrelinhas desta crise, existe uma mensagem minha que encerra as sementes da sua integridade"...

(...)

Gostaria de poder acreditar nisso que você está me falando! Nunca tinha visto isso por esse prisma; chega a ser poético.

- Pois é de fato! Se tivéssemos mais poesia no olhar, com certeza não precisaríamos desses puxões de orelha dados pela Grande Vida. Nosso antigo e disfuncional modo de viver roubou-nos a nossa poesia original, roubou-nos quase toda sensibilidade nossa... E se não tivermos cuidado, os remédios, acabaram matando-a por completo. Precisamos de mais poesia e menos Rivotril... Posso lhe perguntar uma coisa?

- Sim, fique a vontade!

- Como você está se sentindo agora, depois desta conversa com um desconhecido, que o que você sente, já tem por conhecido?

- Leveza, alívio e um sentimento de não estar só!

- Muito bem! Fico feliz por isso! Estes sentimentos desconexos não são resolvidos com essas caixinhas de tarja preta. Os remédios para esses conflitos são produzidos pela voz do coração que se manifesta - inicialmente -, somente quando ,esvaziamos nossas mentes em ouvidos amorosos e quando nos vemos refletidos e validados no olhar de alguém que já vivenciou isso na própria pele. Você alguma vez já procurou pelos grupos de ajuda-mutua?

- Não.

- Mas, pelo menos já ouviu falar?

- Sim.

- Pois bem! Sugiro que você procure por eles em nosso site. Lá, com certeza, você encontrará outros ressuscitados para a vida, assim como eu. Com certeza encontrará por pessoas dispostas a compartilharem com você, suas experiências, forças e esperanças por uma nova maneira de viver. Tenho certeza que se você se permitir esse movimento, encontrará o "brilho" que você procura e que não se encontra nesse colar que você acaba de adquirir. Nenhuma prata, nenhum ouro, nenhum folheado, nenhuma jóia poderá trazer o brilho do olhar que um dia permitimos que nos fosse tirado. Esse brilho retorna quando aprendemos a nos olhar, a sós, silenciosa e amorosamente.

- Muito, mais muito obrigado mesmo pelas suas palavras!

- Eu é que lhe agradeço pela confiança em mim depositada. Obrigado por compartilhar um pouquinho da sua dor, que agora, é só meia dor. Precisando, estamos sempre por aqui, enquanto a Grande Vida por nós precisar!

- Por favor, agradeça a simpática senhora portuguesa por ter conseguido a minha encomenda. Creio que não foi a toa o fato dela não estar aqui...

- Nós é que lhe agradecemos pela preferência! Tenha um excelente dia; faça-o valer à pena!

- Até breve!

(...)

O céu agora estava parcialmente nublado com a temperatura por volta dos 20ºC. O vento soprava ainda mais forte balançando os negros cabelos de uma jovem mãe que levava seu pequeno filho para a escola.

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!