Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

10 março 2008

A neurose de ser boazinha

Mais uma semana se apresenta com a mesma temperatura abafada e o barulho infernal dos motores no trânsito. Alguns metros, bem em frente a calçada engordurada da casa de esfihas, três pombos bicam os detritos caídos dos sacos de lixo produzidos no final de semana e o som estridente da serralheria atrapalha o raciocínio.

Dona Laura, costureira aposentada, com um saco plástico cheio de caixas de remédios, fecha o portão da casa da vizinha e visivelmente atrapalhada, com voz embargada me cumprimenta:

- Bom dia Sr. JR!

- Bom dia dona Laura! Por favor, deixe o "Sr" de lado! Como vai a senhora e sua netinha?

- Com a pequena Dulce tudo bem! Eu é que não ando lá essas coisas. Ainda mais agora, depois de sair da casa da dona Odete. Ela me cansa a cabeça que só e, o pior de tudo é que não consigo me livrar de ter que passar por aqui umas três ou quatro vezes por semana. Ela sabe que já estou aposentada há nove anos, mesmo assim, vive me suplicando para continuar costurando para ela... É sempre a mesma ladainha, uma choradeira só! Já jurei de pés juntos nunca mais trabalhar para ela, mas não tem jeito... De tanto insistir, acaba me vencendo pelo cansaço. Ela sempre dispara a falar dos mesmos problemas dela, dos filhos e da malharia; fala com tanta propriedade que acabo ficando com dó da coitadinha e me contrariando. Ela chora tanto que acabo sempre dizendo sim, mesmo quando quero dizer não. E quer saber? Quando digo não, acabo ficando mal comigo mesma e no dia seguinte, lá estou eu batendo na porta da casa dela.

- Desculpe-me, mas, não creio que ela tenha todo esse poder. Ninguém pode fazer um cavalo beber água se ele não quer.

- Pior é que eu já sei disso. Você tem razão, sou eu que dou esse poder para ela. Minha filha vive me dizendo o mesmo que você. Até o meu médico já me disse que os meus problemas físicos resultam de eu viver me derramando em favor dos outros. Ele vive me dizendo que devo largar tudo e cuidar um pouco mais de mim mesma.

- E por que a senhora não dá ouvidos a ele?

- Parece fácil, mas, ela chora tanto nos meus ouvidos que eu acabo não conseguindo sustentar aquilo que sinto.

- Desculpe-me a pergunta, se a senhora não quiser me responder, fique tranqüila. Entenderei.

- Diga.

- Quantos anos a senhora têm?

- Não me importo de dizer a minha idade... Acabei de completar 61 anos agora no inicio de março.

- Olha só: mais um de peixes! Também acabei de fazer 44 anos no dia 4 de março. Meus parabéns!

- Para você também.

- E a senhora, com toda essa vivência ainda não aprendeu a dizer "não"?

- Aprender, aprendi, o problema está em sustentá-lo... Tenho o coração muito mole. Basta o outro começar a chorar que eu volto atrás e dou um jeitinho de ajudá-lo em suas necessidades.

- Sabia que essa tal moleza de coração tem um nome?

- Qual? – respondeu-me sorrindo.

- Codependência: a neurose de ser boazinha. Já perdi uma amiga por causa dessa doença: seu corpo não agüentou. Aprendi nestes meus 44 anos que muitas vezes, a melhor maneira de você ajudar uma pessoa é não ajudando.

- Bem que eu gostaria de pensar assim... – disse-me ela, apontando para o saco plástico repleto de caixinhas de remédios. – Estou indo para casa separar os remédios dela em saquinhos... É remédio para pressão, para osteoporose, para o coração, para gota... Se deixar por conta dela, faz uma mistureba danada e acaba tomando tudo errado.

- Mas e a família dela? Onde fica nisso tudo?

- Vixi!... Se deixar por conta deles, rapidinho ela bate as botas. Às vezes chego a pensar que é isso mesmo que eles querem. Eu mesma que não sou da família, por vezes, chego a ter esses tipos de pensamentos quando fico com raiva dela por não conseguir lhe dizer não. Mas, coitada, alguém precisa ajudá-la. Na realidade, acho que nós duas somos muito parecidas, uma vez que ela com quase 70 anos de idade, ainda fica para cima e para baixo, feito uma louca por causa dos problemas dos filhos já marmanjos de barba na cara.

- Se a senhora tem consciência disso, por que se permite tamanho desgaste desnecessário?

- Já falei: tenho o coração muito mole!

- Então, se a senhora me permite, com todo respeito: sofra!... E não reclame para ninguém!... Tem mais: a senhora nunca vai ver a palavra "codependência" num laudo psiquiátrico ou num atestado de óbito. No entanto, tenho absoluta certeza de que em muitos casos a raiz de todo problema está nessa forma codependente de pensar e agir.

- Pior é que você está coberto de razão. Outro dia mesmo, depois do almoço, vi o Gasparetto falando sobre isso em seu programa.

- A senhora me permite outra pergunta?

- Sim, claro!

- A senhora acha que estas pessoas lhe dariam assistência caso a senhora viesse a ter algum problema de saúde como um colapso nervoso? Acredita que lhe visitariam todas as semanas? Que lhe levariam bolachas e cigarros ou mesmo se certificariam de que a senhora estivesse tomando os seus remédios com precisão?

- Hum... Pensando bem, acho que não.

- Creio que lhe visitariam apenas uma vez, para se certificarem da sua real situação. Já vi isso acontecer várias e várias vezes. Já tive exemplos disso na família. Chamo esse tipo de pessoa de "umbigóide"...

- "Umbigóide?"

- Sim, umbigóides! São pessoas que só conseguem olhar para o próprio umbigo. Não enxergam nada além dele. São verdadeiras sanguessugas emocionais. É preciso muita cautela com esse tipo de pessoas, uma vez que são especialistas em transferir a solução de seus próprios problemas para os cardíacos molóides de plantão.

- Meu problema é que sei de tudo isso, mas, não consigo agir de outra maneira... Quando me dou conta, já abracei o problema do outro.

- Isso é que é insanidade, dona Laura: fazer as mesmas coisas esperando por resultados diferentes!... Sabe, existe um lema de vida muito interessante: "viva e deixe viver".

- Já ouvi falar!

- Quando se trata de um umbigóide, sou um tanto radical e o uso de outra maneira: "viva e deixe morrer". Penso que a existência já nos rouba uma grande soma de energia e se permitir ter a mesma sugada por um umbigóide, demonstra grande falta de seriedade e auto-estima. A senhora não acha?

- Acho que você está coberto de razão. Pena que ainda não consigo. Quem sabe um dia!

- Um dia... Sei!... Por que deixar para amanhã o que só se pode e deve ser feito hoje?

Ela balançou a cabeça, deu uma risadinha e perguntando-me, tratou de mudar de assunto:

- E a senhora sua mãe? Como vai?

- Com certeza, se protegendo dos ataques dos umbigóides que a cercam em sua família. Ficou bastante escolada depois de acompanhar o exemplo de sua própria irmã, que definha aos poucos, com o mal de Alzheimer, hoje dependente das migalhas de atenção de seus familiares (se é que tais pessoas que a cercam sejam dignas de tal adjetivo). Pobre mulher: em nome de sustentar um casamento de fachada e a disfunção de seus filhos, hoje, só Deus sabe como ainda continua existindo. Quem sabe, se tivesse tido a coragem de se desplugar dos tentáculos daqueles umbigóides e olhado com um pouquinho de atenção para as suas reais necessidades, sua sina fosse um tanto diferente.

- Diga para a sua mãe que lhe deixei um grande abraço. Qualquer dia desses, quando estiver com um pouquinho mais de tempo, passo aqui para ver ela algumas peças para mim. Agora me deixe ir, pois ainda tenho que correr com o almoço da minha netinha e voltar mais tarde com os remédios da dona Odete. Olha só: o que falamos aqui é para morrer aqui. Vê se não comenta nada do que falamos com ela. Se ela souber um terço do que agora conversamos, com certeza deixaria de me procurar.

- Ok, dona Laura, ok! Vá pela sombra, o sol está muito forte! Um beijo na pequena Dulce!

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!