Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

04 outubro 2007

Memórias Distantes

Ele começou o dia ao som de Aeoliah e Mike Rowland. Suas músicas são de uma profundidade tal que lhe transportam para outros estados de consciência; tocam no mais fundo do seu ser, transportando-lhe para memórias distantes de tempos idos de plenitude, unidade e sensibilidade expandida. Em cada um dos seres humanos, até mesmo naqueles cujos condicionamentos tornaram a sensibilidade quase nula, essa eterna lembrança, sussurra diuturnamente, conforme as batidas do coração.

Todo ser humano vem ao mundo como uma página em branco, pelo menos, assim ele pensava. Talvez, em suas células, traga a memória genética, não só de seus progenitores, mas sim, de toda a raça humana. Numa criança recém nascida, existe graça, pureza, delicadeza de movimentos e uma beleza cuja limitação das palavras não consegue alcançar.

Com certeza, uma das maiores experiências da sua vida, foi o de acompanhar de perto uma gestação... Saudosamente gosta de relembrar os momentos em que foi dormir, horas antes da cirurgia que traria um novo ser a este planeta... Ele olhava para aquela barriga, consciente de que o milagre da vida estaria ali para ser presenciado por todos que estivessem com suas mentes livres de regras, conceitos, crenças e condicionamentos, uma vez que aquele novo ser estava vindo ao mundo contrariando as regras sociais de uma gestação... Ele tinha consciência disso, uma vez que, ele mesmo, ao receber a noticia da gravidez, reagiu por instantes, de forma condicionada pela cultura na qual havia crescido. No entanto, bastaram alguns minutos para que caísse na real e passasse a dar as boas-vindas ao ser que estava iniciando seu processo de vir-a-ser.

Já no dia seguinte, na maternidade, ansiosamente aguardava diante da límpida parede de vidro do berçário, que ficava de frente ao enorme salão de espera, onde duas televisões apresentavam os rostinhos dos recém-nascidos aos seus familiares, juntamente com os nomes de seus pais. Enquanto aguardava o término do parto, deliciava-se com os movimentos dos recém-nascidos no berçário e com a reação dos seus parentes. Para ele, era impossível descrever a alegria que sentiu ao ver o rostinho daquele ser pela primeira vez: a perfeição de cada traço, os dedinhos miudinhos com os desenhos das digitais apuradas e as unhas bem delineadas, os lábios brilhantes e a pele clara destacando os vasinhos sanguíneos... Os olhinhos curiosos, filmando a tudo... Tudo ali era virginal, pureza imaculada... Até começarem os condicionamentos...

- É uma menina!...

- É a cara da mãe!

- Que nada, é a cara do pai...

- Não sei não!

- É, mas o narizinho é da vovó e os olhos são do vovô!

- Vocês já viram se aqui no hospital eles furam a orelhinha dela? Precisamos colocar o brinquinho de ouro logo de pequenina!...

- Vocês vão batizá-la!...

- Não sabemos ainda...

- Como não sabem? Tem que batizá-la logo! Deixem de história!...

- Não vemos a hora de apresentá-la para a congregação!...

- Não sei não, mas acho que a mãe não sabe quem é o pai...

- Num momento mágico como este, onde um milagre se apresenta gratuitamente aos seus olhos, é só isso o que você tem para falar? Cara, que pobreza de espírito! Se não tem nada a dizer, perdeu uma grande oportunidade de se manter de boca fechada!... Olhe a vida se manifestando, faça parte desse momento mágico, comungue!

Enquanto isso, ele atônito, observava no final do corredor, um recente avô inconformado, caminhando cabisbaixo de um lado para o outro, apoiado por sua esposa, incapacitado do desfrute do recente milagre da vida por causa da imensa crosta de seus condicionamentos. Ao invés de alegria, seu olhar expressava desgosto e preocupação...

E foi assim, que ele testemunhou a primeira vitória deste ser diante deste mundo condicionado.

Observando isso, num misto de alegria e tristeza, ele se questionava quantas batalhas aquele pequenino ser teria que travar para assegurar sua originalidade... Seria isso possível? Como seria isso possível em meio de tanto condicionamento parental? Como conseguiria manter sua originalidade, quando se é uma vitima indefesa da realização das fantasias, desejos egocêntricos e atitudes divisoras dos adultos?...

Logo, logo, com certeza, ela seria a Alice no País das Maravilhas, a Super Xuxa, a Hellow Kit, uma das Meninas Super-Poderosas, ou então a Branca de Neve com o olhar perdido diante das janelas da vida... E lentamente, incentivada e patrocinada pelo orgulho parental, cada vez mais se distanciaria de suas origens...

Ele sentia na pele a tristeza de ser uma impotente testemunha anônima da instalação sistemática de um processo divisor, que lentamente tende a deflorar sua virgindade psíquica e emocional...

É bem provável que esta jovem criança, ao tornar-se adulta, nunca tenha ouvido se quer falar das músicas angelicais de Aeoliah e Mike Rowland, mas, pelo andar da carruagem, assim como ele, um dia estará sentada num canto qualquer de uma residência, transportando-se para memórias distantes de tempos idos de plenitude, unidade e sensibilidade... Isto se tiver a graça dos imaturos adultos que lhe circundam não conseguirem, com seus condicionamentos, tornar sua sensibilidade nula...

Para ele, esse parece ser o drama da criança bem dotada...

E essa eterna lembrança, sussurra diuturnamente, conforme as batidas do coração do mundo.

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!