
O amor só é em pedaços
Aqui,
Em meio impresso
Confesso:
Destituído de progresso
Ou regresso,
Em processo
Encontro-me,
Ainda por me encontrar.
Pois, na infinitude
Deste agora
Só incompletude
Professo,
E não fosse a invejada
Inteireza da natureza,
Nada do olhar expresso,
Faz-me nexo.
E digo mais em anexo:
Sem a menor tristeza
Da moeda sexo sucesso,
Hora vejo-me avesso.
E por não mais ser
Nem côncavo nem convexo
Nesta tempera medianidade
Sem emburrecer – me aborreço.
E em nome de ser em excelência
Aos olhos dos outros fiz-me excêntrico
Uma vez que meu movimento,
De todos é de natureza inversa.
E hoje, sem a menor exceção,
Distanciado de antigos excessos,
Ao Inominável Ilimitado Inexprimível
Corpo e alma arremesso.
Sou o irmão mais velho da família: somos quatro.
Quando crianças, feito prisioneiros num campo de concentração, numa busca solitária para sobreviver à disfunção alcoólica do lar, nenhum de nós foi capaz de atravessar as grossas camadas de medo, fazendo com que crescêssemos feito desconhecidos sobre um mesmo teto. Sobreviventes entre sobreviventes.
Na adolescência, a fuga máxima dos momentos no lar e a busca pelas descobertas pessoais aumentaram ainda mais o distanciamento. Para cada um, caminhos e influencias diferentes.
Agora, na fase adulta (se é que ingressamos nesta) – a distancia emocional parece quase intransponível e se existe alguma familiaridade, parece-me que somente o sangue. Vivemos mundos completamente diferentes onde nada nos é familiar. Não existe a menor possibilidade de se pensar em voz alta, de se abrir o coração sem ter que se preocupar com a escolha das palavras para não causar melindres. De minha parte, sinto que estamos ligados apenas por um forte elo: nossa mãe.
Quanto ao pai, notoriamente perdido em seu mundo interno, por nós sempre desconhecido, definha a passos largos (há tempos deixei de lado a esperança de um dia sermos como dois bons amigos). É triste aos meus quarenta e cinco anos olhar para aquele ser de sete décadas de sofrimento e perceber que não sei nada de seus sonhos, anseios e medos. O que sei são as imagens que trago comigo da sua luta antes e depois do pesado alcoolismo.
Voltando à relação entre os irmãos – se é que podemos chamar a mesma de relação – a cada dia que passa questiono-me mais e mais quanto ao sentido de alimentá-la. Uma relação, para que possa ser chamada de tal, precisa ser nutritiva, tem que ser um fluxo de energia com fluidez, sem nenhum interesse de segunda mão. E sinceramente, não consigo perceber isso em nenhum de nós, por nenhum de nós. Sempre existe um interesse que precede os beijinhos e tapinhas nas costas.
Já fui o irmão rebelde que enfrentava a ditadura familiar proporcionando maior abertura aos novos. Já fui o irmão "fodão", o irmão "comedor". Já fui o irmão neurótico (e nas piadas da família ainda sou assim visto). Já fui o irmão que entende de informática, de sites, de programas e que possui banda larga. Já fui o irmão onde ser recompor dos momentos de solidão pelo rompimento brusco de um relacionamento... E já fui o irmão que para prá pensar no que vai dizer preocupado com os melindres ou com o uso que vão fazer com o que for por mim dito. Agora, pareço ser o irmão fotógrafo incumbido de fotografar as comemorações familiares e de bom grado disponibilizar a todos as fotos por mim tiradas.
Muito bem: já fui! Decidi deixar este cargo em aberto, para um dos irmãos mais novos, pois cansei.
Infelizmente, parece que a nenhum de nós foi ensinado que a vida é como uma estrada de mão dupla, onde o fluxo é de "vai e vem". Essa estória de "venha nós o vosso reino" pode ser muito bom para as missas de domingo, mas não para a nutrição de uma verdadeira relação. Infelizmente, parece que a nenhum de nós foi ensinado que estar em relação é estar em contato e quando digo contato, não me refiro ao contato físico, mas sim, de um contato visceral, holístico. E parece-me impossível estar em verdadeiro contato, de forma nutritiva, onde não existe comunhão, compaixão e liberdade de expressão e para se compreender isso é preciso ir muito fundo no sentido dessas palavras e não somente ficar na superfície das mesmas. É triste constatar, mas, na realidade, o que nos move, ao invés da comunhão, da compaixão e da liberdade, é um disfarçado interesse mercantilista, hiper-individualista e anti-pessoal, que corrompe a possibilidade de uma autêntica intimidade, capaz de proporcionar nutrição em abundância.
Esta é a maneira pela qual enxergo minha realidade (e às vezes me parece também o ser para alguns deles): é cansativo demais ter que ficar junto por mais de duas horas fazendo cara de paisagem, rindo das repetidas piadas de sempre e das estórias do passado, na espera do cafezinho da mãe para os beijinhos de despedida. Continuamos feito prisioneiros, só que agora, num campo de concentração ainda maior, imposto pelos tiranos anônimos que regem a sociedade não pensante. Continuamos feito prisioneiros em sistema semi-aberto, onde todos tentam sobreviver da melhor maneira, fazendo um esforço quase sobre-humano para não demonstrar sentimentos, medos ou fraquezas por oito ou dez horas do dia, voltando para o descanso solitário de sua cela de aluguel ou conquistada com o suor de seu rosto. Continuamos estranhos familiares reunidos em datas pré-estabelecidas, agora munidos de celulares, laptops, câmeras fotográficas, controles remotos da TV digital, maços de cigarros e das imagens que há anos insistimos em carregar... Verdadeiros escudos protetores contra a autêntica intimidade, que fazem com que permaneçamos cada vez mais inexpressivos e solitários. Nestes encontros de família, raros são os diálogos em que podemos nos reconhecer, ao contrário, o que mais vejo são comentários sobre as futilidades do dia-a-dia ou fofocas como forma de proteção, afinal de contas, quando o assunto é o "outro ausente" o risco de sobrar para um dos presentes é ausente.
Quem sabe eu realmente não passe de um neurótico desajustado, alguém completamente equivocado a viver com uma imagem distorcida somente por mim criada.
Quem sabe?
No entanto, lhe pergunto agora: isto lhe parece familiar? Ou lhe é estranho?
Para mim, familiarmente estranho.
(parafraseando Clarice Lispector)
Estou sentindo uma incompletude tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma incompletude dolorida, não há como explicar!
Nem o maior saldo bancário perfeito
do qual, no entanto, nem sempre se precise, lhe sacia.
Estou por assim dizer
vendo limpidamente o meu vazio.
E não transcendo aquilo que vejo:
pois estou mediocremente menor que eu mesmo,
e não avanço.
Além do que:
que faço dessa incompletude?
Digo também que esta minha incompletude
tornou-se um inferno humano
– como nunca me aconteceu antes.
Pois sei que
– em ciclos da rotina diária
com permanente incomodidade
irresignado à irrealidade –
essa incompletude da irrealidade
me é um visco.
Apagada, foi, minha esperança na imagem de Deus,
porque em nada me serviu para viver os dias.
Recuso-me como sempre a conformação
pois esta me é impossível.
Eu persisto,
e consisto,
ao além.
Nelson Jonas
* Para minha sempre querida e companheira Andrea, em homenagem ao dia de seu aniversário.