Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

08 agosto 2009

Bem-aventurados sejam os amadores

Modificando um pouco o dito popular, pimenta no prato dos outros é refresco... Ontem ao cair da tarde tive a triste oportunidade de sentir na pele mais uma das realidades que nosso povo enfrenta, com relação ao descaso por parte de alguns profissionais da saúde pública (se é que posso chamar tal cidadão de profissional).

Meu pai está sendo atendido por uma médica que tem se mostrado muito atenciosa, não só com ele, mas com todos nós. A mesma está tentando transferi-lo para outro hospital, para que ele não seja “enrolado” pelo precário plano de saúde do qual hoje faz parte. O ocorrido:

Um Sr. de jaleco branco, que se apresentou como um dos médicos responsáveis pelo hospital, de súbito entrou no quarto de meu pai, com seu prontuário nas mãos e descuidadamente foi lhe dando alta. Detalhe: nunca havia visto até então o Sr. meu pai. Logo, eu e minha mãe nos movimentamos para levantar a falta (ou não) de informação deste homem quanto a realidade do quadro clínico de meu pai. Friamente olhou para o prontuário, dizendo que não havia o que ser feito por ele, que toda parede de seu estomago estava tomada e que possivelmente em estado inoperável. Colocou suas mãos como quem segura o cinto de suas calças e reclinou-se na cadeira, enquanto minha mãe, com setenta anos, em pé, visivelmente baqueou.

Eu tive que me sentar no chão. Novamente as palavras sumiram...

De repente, foi como se algo tomasse conta de mim, me colocando num estado de frieza muito grande, a qual fez com que eu conseguisse dialogar com o tal cidadão, quanto as possibilidades dele segurar meu pai até a segunda-feira, data em que a Doutora nos prometeu a sua transferência para um dos hospitais que nos fora já recomendado. Fiquei olhando nos olhos daquele homem, inconformado com tamanha frieza, lidando com um ser humano, como quem lida com um saco de lixo na lixeira de um prédio qualquer. Fiquei olhando em seus olhos e ele para os meus e não pude ver nem se quer uma faísca de humanidade. Ele queria a todo custo se livrar de um “estorvo”, dizendo que essa era a indicação dada pela Diretoria do Hospital. Não é nada fácil ser diplomático quando a vontade real é a de levantar a pessoa pelo cangote. Não bastando isso, virou-se novamente para mim e me intimou:
- E tem mais!... Você e o resto de sua família trate logo de fazer uma clonoscopia e uma outra “cospia” qualquer.
Uma fez dito isso, reclinou-se novamente na cadeira e limitou-se a baixar a cabeça como quem olha para o prontuário médico.

Sabendo da ansiedade do meu pai, percebi a situação estabelecida: como poderíamos eu e minha mãe voltar para o quarto e dizer que ele não poderia dali sair? Como fazer com que ele não desconfiasse de nada? Novamente, voltei-me para o médico:

- Desculpe-me, mas não o conheço. Estive aqui a semana toda e nunca o vi neste hospital. Não vou retirar meu pai daqui a não ser que seja encaminhado para outro hospital conforme o que foi acordado com a Dra. Responsável pelo acompanhamento do caso dele. Agora, o Sr. criou uma situação a qual precisará remediar. Não cabe a mim e a minha mãe colocar algo para ele. O Sr. não poderia falar...

- Você não está pedindo para que eu vá lá e minta sobre a realidade dele... Isso não farei de forma alguma.

- Não estou pedindo isso, estou pedindo para que o Sr. dê um jeito de remediar a situação que criou.

- Não criei situação. Estou fazendo o que dita a Direção do hospital diante de tal estado clinico. Seu pai pode ir para casa e se passar mal, pode voltar novamente a qualquer momento.

- Mas como posso levá-lo para casa, se o Sr. mesmo acabou de colocar uma situação de grave risco?

- Aqui não temos o que fazer por ele. Só podemos mantê-lo como está. O caso dele agora é laboratorial.

- Ok! Mas o Sr. por favor, dê um jeito de mantê-lo aqui até segunda na espera do que nos foi conversado com a Doutora.

- Mas ela lhe prometeu isso mesmo? Estranho.

- Bom Sr. foi isso que foi conversado numa reunião com todos familiares, a qual foi solicitada por ela mesma.

Então, dando meio de ombros, disse:

- Então, tudo bem. Seguro ele até segunda-feira.

Tive que meter um sorriso amarelo no rosto e ainda apertar a sua mão, quando a real vontade...

Tratei de retirar minha mãe dali, levá-la para fora do hospital, a fim de que ela pudesse, pela primeira vez até então, liberar suas emoções. Não foi fácil fazer com ela se soltasse, pois a todo tempo dizia:

- Não posso chorar... Ele me conhece assim como eu o conheço só pelo andar. Preciso estar em pé.

Enquanto isso, o homem do jaleco branco e alma encardida, sumia pelos enormes corredores solitários do antigo prédio hospitalar.

Ele ainda não sabe, mas seu nome completo, bem como o nº do seu CRM já se encontra devidamente anotados com meu irmão, que não fosse pela minha insistência, talvez teria tomado atitudes, com certeza, irracionais.

A questão que fica: porque alguns seres humanos ficam anos e anos atrás de estudos técnicos, decorando paredes com quadros repletos de estampilhas coloridas, títulos e mais títulos, se acabam perdendo a paixão “amadora” que vemos em muitos enfermeiros e estagiários?

Sei que não deve ser nada fácil transmitir noticias como essas, mas, será que uma pessoa com tanto tempo de janela, perdeu o bom-censo de como transmitir de maneira sadia uma noticia de algo que não é são? Para que tantos títulos, se perdemos a capacidade de exercer uma inteligência amorosa?

A esperança que fica é a de que enquanto existirem aqueles, por alguns chamados de “ama-dores”, as dores de muitos ainda poderão ser, mesmo que por pouco, amorosamente cuidadas.

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!