Eu estava sentando num banquinho de madeira, embaixo da pequena árvore, ouvindo uma palestra sobre o poder do agora em meu aparelho de MP3 quando ela apareceu. Com seu curto e batido cabelo branco, bolsinha porta-níqueis embaixo do braço, vestido estampado de viscose e um par de baixas sandálias de couro preto. Não usava relógio, brinco ou qualquer outro adereço.
- Bom dia JR!
- Bom dia dona Norma... Como vai a senhora? Já rompeu com as normas que mantém a Norma longe de ser uma Norma sem normas?
- Estou tentando, estou tentado! Tem dias que é muito difícil ser a gente mesma... Mas, quer saber de uma coisa? Estou gostando disso!
- Isso é muito bom a senhora não acha?
- Isso eu acho!... Só não acho bons os problemas que estão ocorrendo em minha nova casa.
- Problemas de saúde?
- Não, não!... Graças ao meu Deus amantíssimo, todos em casa gozam de perfeita saúde!
- Então, o que se passa dona Norma?
- Sabe esta última chuva que tivemos na semana passada, que acabou alagando vários lugares da cidade?
- Sim! O que é que tem?
- Pois bem!... Alagou minha casa também!
- Mas como assim? A senhora não mora num bairro alto e sua casa não fica no segundo andar de um sobrado? Como pode ter sido alagada?
- Sei lá! Só sei que foi e a água jorrava pela parede feito cascata!... Quando vi toda aquela água ( e olha que já é a segunda vez!), liguei correndo para a imobiliária. Quando a encarregada da imobiliária chegou para conferir o tamanho do estrago, ficou tão assustado que ligou de casa mesmo para o proprietário. Só que não adiantou nada; o dono só veio no dia seguinte depois do almoço. Eta japonês cara amarrada!... Não sei não, acho que é mal da raça! Sabe que até hoje, nestes meus quase setenta anos não conheci sequer um japonês bem-humorado? Todos são metódicos e de cara amarrada.
- Humm... Não sei não!
- Vê se pode: ele tocou a campainha e quando eu saí na janela, nem sequer me deu bom dia... Foi logo dizendo que era o proprietário do prédio e que estava ali com o encanador para fazer uma vistoria no prédio.
- Não pode ser!...
- Falo sério! Pode acreditar que foi desse jeitinho mesmo que lhe contei... Te juro que não estou contando um conto e nem aumentando um ponto! Achei-o muito mal-humorado e sem educação! Para piorar, fiquei sabendo que ele é um militar aposentado... Você deve saber como é essa raça...
- Mas e ai? Acabou descobrindo o que causou o vazamento?
- Sei lá! Até agora ninguém me falou nada! Ele ficou lá em cima do telhado por quase meia-hora, depois foi embora sem ao menos se despedir. Tive que ligar para a imobiliária que, pelo que me parece, também não sabia de nada, apesar de tentar ajeitar o lado dele dizendo-me que fora uma pipa que havia tampado o encanamento.
- Pelo menos agora está tudo resolvido?
- Espero que sim, mas, para saber ao certo, só tendo uma outra chuva daquelas!... E as formigas?
- O que tem as formigas?
- Na sua casa não tem formigas?
- Tem sim, mas qual o problema com as formigas?
- Não suporto formigas! Elas fazem muito estrago!
- Quantos cachorros a senhora têm?
- Quatro!
- Por acaso eles não fazem muito mais sujeira e estragos do que as formigas? Por que a senhora aceita os cachorros e não aceita as formigas?
- Ah, sei lá! Vai ver que é por que o cachorro é o melhor amigo do homem! Você não leu outro dia a reportagem que saiu na revista Veja?...
- Vi sim!
- Pois é! Prefiro mil vezes meus cachorros a muitos dos meus parentes... Meus cachorros não me metem os dentes pelas costas, em compensação, alguns dos meus parentes...
- Olha ai a imagem... Primeiro o “japa”, “os militares”, “as formigas” e agora os parentes...
- O que você quer dizer com isso?
- Para a senhora tomar cuidado para não ficar se relacionando com imagens...
- Não entendi!
- Veja só: tenho muito contato com o Sr. Yuri, proprietário da casa que a senhora alugou, e pelo contato que tenho com ele, posso lhe garantir que a senhora está com uma imagem que não condiz com a realidade. O Sr. Yuri é uma pessoa muito culta e educada.
- Pode até ser, mas não foi essa a minha primeira impressão!
- Pois é! Talvez esse seja um dos nossos maiores problemas... Não nos relacionamos com as pessoas, mas sim, com a imagem, com a primeira impressão que fica... e como fica!
- E esse aí do lado? – mudou de assunto apontando para o meu vizinho do lado.
- O que tem ele dona Norma?
- Menino... Nem te conto! Agora pegou a mania de toda tarde, junto com aquele outro vagabundo, um que é meio carequinha, sentar para fumar maconha bem na porta da nossa casa... Eu até que não esquento! Na verdade, o que eu tenho mesmo é dó!... Quando sinto aquele cheiro forte da maconha, vou logo rezando para nosso senhor Jesus Cristo pedindo para que ilumine o pobre coitado e o liberte desse vicio maldito. O problema é a minha filha mais velha... Ela morre de medo que as pessoas passem por ali e acabem achando que eles fazem parte da nossa família...
- Entendo!... Olha aí novamente as imagens!... Ela não quer ter a imagem afetada na comunidade, não é mesmo?
- E quem é que quer?
- Talvez a senhora tenha razão... Mas a senhora já parou para se questionar do por que a imagem ter se tornado tão importante para o homem?
- Essa é uma boa pergunta!... Vou até o mercado fazer umas comprinhas, mas vou pensando no assunto! Não vá você ficar pensando que estou fugindo do assunto!
- Se a senhora chegar a alguma conclusão, por favor, não deixe de compartilhá-la comigo!
- Pode deixar! Agora me deixe ir! Gostaria muito de poder continuar conversando com você. Se pudesse, ficava mais tempo, mas você sabe como é a língua do povo... O que você pensa que eles vão dizer se verem uma senhora da minha idade conversando várias vezes com um garotão da sua idade? Você sabe como é não é mesmo?
- Imagens, imagens e mais imagens!... Acho que é por isso que fomos condicionados com a idéia de que uma imagem vale mais que tudo! Por que aceitamos isso? Por que não percebemos que essa mania de nos preocuparmos com as imagens rouba-nos a espontaneidade, a liberdade e a alegria de viver? Dona Norma, por que o ser humano aceita essa norma? Por que julgamos o livro pela capa ou o “japa” pela raça?
- Pois é! Isso eu não sei... Mas quanto as formigas, não abro mão... sou mais os cachorros!
(...)
(...)