O dia amanheceu com raras nuvens no céu, o qual mais parecia com um vasto oceano azul. O sol estava bastante forte, no entanto, seu calor era suavizado por um vento um pouco gelado que fazia com que as pequenas flores rosadas dançassem onduladamente, igualmente aos cabelos na fronte. Na banca de jornal da esquina, podiam-se ver, como de costume, senhores aposentados proseando soluções políticas para o país, ou então, ainda comentando os resultados esportivos do final de semana.
Do outro lado, um raquítico e mal-humorado senhor, que exerce a profissão de zelador do prédio ao lado, vigiava a lixeira para que nenhum morador vizinho pudesse fazer uso da mesma. Não raro, podia-se vê-lo praguejando através de sussurros, contra aqueles que assim ousavam fazer ou aos que estacionavam seus carros na única vaga disponível bem em frente da calçada da portaria do prédio.
O vizinho, barbeiro, convidou-me para, embaixo da sombra da pequena árvore, deliciar uma gelada água de coco.
Um enorme, barulhento e colorido caminhão de entrega de laticínios maculava o céu de tom azul com sua negra nuvem de detritos carbônicos.
As pessoas na calçada, hoje pareciam mais tranqüilas; não apresentavam o compasso acelerado, muito menos a fronte tensa. Algumas delas, como um senhor de cabelos grisalhos, camisa xadrez, calça vincada de tergal presas por um suspensório preto, ousavam dizer “bom dia” ou então se limitavam a um singelo balançar de cabeça. Era notório que aquele senhor andava com dificuldade respiratória, tanto, que mais adiante, deteve-se por alguns instantes, apoiado numa das mais antigas árvores da avenida, para poder recuperar seu fôlego. Poucos minutos depois, retomou sua caminhada parando um pouco mais adiante, num pequeno, escuro e pouco higiênico barzinho que se mantinha durante o dia, com a venda dos almoços servidos e com suas poucas escondidas máquinas de caça-níquel. A noite limitava-se a venda de bebidas alcoólicas e de fichas de karaokê, para os freqüentadores que tentavam abafar o imenso barulho proveniente da própria solidão.
A jovem senhora de oitenta e seis anos de idade, como sempre, de forma impecável e sorriso jovial, arcando um pouco mais a sua bela corcunda, cumprimentou-me perguntando sobre a minha mãe. Ela dividia seu tempo entre os afazeres de casa, as visitas a sua irmão hospitalizada devido um pequeno acidente e os serviços prestados como “Office-girl” na empresa de um dos seus sobrinhos. Dá gosto de ver a sua vitalidade,, alegria e sanidade diante de tantos jovens saudáveis que vivem se queixando da vida com seu tédio e insatisfação.
O som no ar era mesclado pela serra elétrica, o motor dos carros, o escapamento dos ônibus, as músicas das lojas, os gritos das maritacas no enorme abacateiro e o sino de vento feito de metal pendurado na entrada do nosso quintal.
Uma senhora atirou pela janela de um fusca azul em movimento, um pequeno copo plástico daqueles em que são servidos os capuchinnos de máquina, que quicou até parar no parapeito da calçada.
Ele era filho de um falecido pastor do bairro. Era tido como um jovem amável e inteligente. Até a morte de seu pai não havia apresentado qualquer tipo de comportamento que demonstrasse a necessidade de maiores atenções. Agora, tinha os dentes bastante deteriorados, a roupa bastante suja, as grandes botas de couro tortas, surradas, parecendo quase estourar para as laterais. Um enorme e antigo óculos escuro escondia a qualidade do seu olhar. A barba, também bastante suja e um tanto disforme. Seu forte odor se tornava quase imperceptível devido a ação do vento e das ondas do aroma do incenso de rosas brancas queimados no interior da loja. Arrastava consigo, um surrado carrinho de feira, contendo em seu interior uma grande mochila e um montante de jornais. Religiosamente detia-se diante da entrada da loja para inalar profundamente o aroma do incenso do dia, além de apurar o ouvido direito com ajuda da mão em concha, para apreciar a música tocada. Despedia-se após alguns minutos, sempre com frases com pouco sentido. Naquela manhã, chamou a atenção de uma antiga senhora conhecida sua, para as cores e o brilho das bijuterias expostas em nossa vitrine. Ela lhe disse, com ar moralista, dentro de seu vestido estampado até os joelhos, típico das senhoras viúvas e ditas religiosas, que “preferia juntar tesouros no céu!” Ele, em meio de sua “demência”, riu-se talvez da demência da senhora de crença. Quando ele se foi, ela veio em minha direção, com uma das mãos em frente da boca, olhando para os lados, contar-me a história do jovem rapaz e sobre o seu atual estado de andarilho invisível.
- Perdoi-me senhora, mas qual a inteligência de se acumular tesouros, seja na terra como num céu futuro?
- Oh, Israel! Escuta o teu Senhor e encontrarás a salvação!” Bradou com um enfático balançar do dedo indicador.
Sorri para ela com um sorriso de quem não está nem um pouco interessado em qualquer espécie de pregação. Creio que meu sorriso e meu silêncio falaram por si.
Era possível ver muito mais alegria, vida e originalidade no invisível jovem demente do que naquela polida e cheirosa crente.
Devido o horário do almoço, o movimento das pessoas nas calçadas bem como o movimento dos carros na avenida começou a aumentar.
O sol já estava a pino e já não era possível abrigar o corpo todo na pequena sombra.
O céu agora do lado norte mantinha-se repleto de densas nuvens em flocos e ao sul com nuvens esparsas.
O vento soprava ainda mais forte.