Creio que o
leitor já deve ter percebido, por várias vezes, a dificuldade que temos em
abrir mão do ranço da autoridade, ainda mais num momento como este em que, a
cada momento, o que mais se observa é um total descontrole quanto a corrupção
gerada pelo abuso de autoridade. Ao invés das coisas melhorarem, parecem piorar cada vez mais; a inconsciência parece estar dominando todas as áreas sem exceção.
Independente disso, a fim de nos
precavermos contra os ataques da observação ácida rancorosa, há que se manter
consciente conforme nos orienta um antigo preceito espiritual retirado das
escolas dos Anônimos: “O problema nunca está nas circunstâncias; o problema está
em nós”. É o nosso modo de ver e reagir ao que se apresenta no mundo, que gera
os nossos problemas e conflitos. O problema não está na tela do mundo, mas sim
na paleta de cores do nosso olhar.
A jornada do
autoconhecimento é um processo de ordenação.
Talvez o leitor já tenha visto, seja por meio dos vários mecanismos da imprensa,
ou até mesmo presencialmente, uma cerimônia de ordenação religiosa. Geralmente,
aquele que está recebendo a ordenação, tem que se prostrar, tem que se jogar ao
chão, ficar ali por alguns minutos totalmente imóvel e em silêncio, para depois
receber um “toque” de um superior, seguido de uma nova roupagem, a qual
simboliza a sua entrada em outra dimensão vivencial. No autoconhecimento, o
processo de ordenação não se faz de modo diferente.
O autoconhecimento
é um processo que ocorre em várias etapas, nas quais vai sendo restaurada a necessária
ordem para o alcance da sustentação do estado de ser, expresso pela presença de
nossa real natureza. A Consciência que somos, apresenta-nos conforme vamos nos
prontificando, a consciência da desordem interna e externa, originária da
exposição excessiva há vários anos de inconsciência de si mesmo. Nesses anos de
inconsciência, por meio de desequilibradas reações inconsequentes, causamos uma
série de danos — de várias ordens — tanto a nós mesmos como para com os demais
com quem mantínhamos contato. É aqui que a Consciência se apresenta e, com sua
voz mansa e suave, nos traz seu alerta: “Pare tudo, pois é preciso descer!... É
preciso descer e reparar o tamanho do estrago que se faz presente.”
Não há nada de
complicado no processo do autoconhecimento; nele, tudo se mostra muito simples.
Trata-se tão somente de um processo de ordenação, ou seja, um processo de
colocar ordem em tudo aquilo que se apresenta em desordem. O que torna tudo
complicado são as vozes do medo, que são projetadas de forma violenta em nossa agitada
tela mental. A ordenação é o resultado decorrente desses momentos de ócio, onde
temos a possibilidade de observar tudo que se apresenta em nossos corpos
mental, emocional e físico, sem que ocorra nenhum tipo de escolha, nenhum tipo
de condicionamento de resultados. São nos momentos de contemplativo ócio
silencioso que nos prontificamos ao estado receptivo, o qual facilita o separar
do joio e do trigo, ou seja, o separar das vozes da mente e a voz da
Consciência, pela qual nosso natural estado de ordem se faz restaurado.
No inicio do
processo de autoconhecimento, o momento se mostra muito difícil, muito confuso,
muito complicado, justamente por causa da enorme desordem em que se apresenta
nossa existência (o que não poderia se mostrar de forma diferente, uma vez que
foram anos e anos de total inconsciência de si mesmo). Não raro, todos os
nossos instintos, todas as áreas de nossa vida carecem de uma enorme faxina.
Tudo que olhamos parece ampliar nosso deplorável estado de agitação. A mente
adquirida, com seus monólogos, memórias e projeções não dá sequer um instante
de trégua e, diante nossa total imaturidade neste processo de ordenação, quase
sempre acabamos nos identificando com tal conteúdo mental, responsável por
tanta aflição... Culpa, remorso, ressentimento, medos infindáveis, a crônica
dor da inveja, a angústia do vir-a-ser... Tudo isso junto e embolado, gerando
aquela “bola” na boca do peito, tão difícil de ser engolida. Sabemos bem o que
significam esses dolorosos instantes, os quais uma vez presentes, parecem nunca
chegar ao seu fim. A agitação é tanta que faz parecer impossível o simples ato
de nos mantermos sentados por alguns minutos. O corpo dá chilique. A ausência de uma base emocional
nos joga em tal estado de ansiedade, que fica muito difícil se concentrar até
mesmo no mais simples dos textos de “encomendados” livros comerciais de
auto-ajuda.
Então, podemos
dizer que o processo de autoconhecimento é uma espécie de Bê-á-bá psíquico, um
Bê-á-bá emocional. Nesse momento iniciático, não há como acreditar que o
processo de autoconhecimento seja algo profundamente simples, expresso pela
ação de se sentar, observar os pensamentos e emoções, absorver o que é real e
absolver-se do falso; inspirar, acalmar e “despirar”; ficar pronto, receptivo e
quieto. Por isso que se faz necessário o processo de ordenação, o qual coloca
todos os instintos em seus devidos lugares, para que cumpram sua ordem natural,
para que então se manifeste o sossego mental. É através do processo de ordenação
que nos libertamos dos insistentes ataques da culpa, do remorso, da ansiedade e
de todas as formas de medo, dos quais quase sempre procuramos fugir por meio de
alguma forma de compulsão, que no fim das contas, apenas agregam mais conflito
e confusão. Sem o processo de ordenação, não há como se apresentar uma mente
serena, sossegada e livre de conflitos, dotada da capacidade de se mostrar receptiva
para Algo que esteja muito além do manifesto. Caso contrário, o que temos é a
continuidade do processo da mente adquirida, dessa mente de segunda mão.
Em outras
palavras, a ordenação é um processo de formação de uma necessária base
emocional, reparar bem em todas as situações, vivências e manifestações, não só
as do nosso passado, mas igualmente aquelas que vão ocorrendo de momento a
momento, e tendo uma compreensão capaz de fazer com que não nos identifiquemos
com aqueles impulsos reativos, inconscientes e inconsequentes que ditavam nosso
conflituoso e inseguro dia a dia.
Outra situação
que se mostra bastante difícil nessas etapas iniciais do processo de ordenação, é aquela em que já não temos um foco específico de conflito, digamos assim, em
que se apresenta um período de “deserto de conflito”... É aquele momento em que
o conflito inicial que nos atirou no caminho do autoconhecimento, já não se faz
mais presente, no entanto, percebemos que não há a manifestação de uma mente
serena, sossegada... O que se apresenta é um desconhecido sentimento de
vazio... Então a mente se apodera desse sentimento de vazio e faz dele, o novo objeto
de nosso conflito. O leitor passou por isso?... Continuemos.
Aqui já há uma
consciência de que não faz sentido tentar fugir desse estado de vazio que se
apresenta; que também é necessário sentar com o mesmo. Ocorre uma ordenação
inclusive com a questão de como observar esse vazio; há um processo de colocar ordem para que
se tenha a capacidade de se sentar com o vazio, de modo que o mesmo deixe de
ser algo que nos conflite, que deixe de criar a conhecida ansiedade por um
vir-a-ser que nos liberte do vazio. Esses momentos iniciais com o vazio não
narcotizado se mostram bastante difíceis, mas sem que tenhamos consciência, são
nesses momentos que estão ocorrendo o implante da base emocional para fazer frente
a uma nova maneira de observar o conflito, pois, sem ele, tona-se impossível a
manifestação de algo totalmente novo e criativo. É aqui que vamos lançando as
bases para que, quando mais maduros, possamos ficar em estado de quietude, de
contemplação do sopro que nos habita — e no qual somos —, do ritmo de nossa
respiração e dos batimentos cardíacos, ou seja, num incondicionado estado de
presença. Sem a ordenação dos pensamentos, dos desejos, das emoções, das
reações, esse estado de presença se mostra impossível. Como nos diz um antigo
pensamento da sabedoria oriental, “É no vazio fértil de um bambu que a flauta
dá sua harmoniosa e criativa melodia”. Em outras palavras, o estado de
ordenação é aquele que retira os nós internos do bambu que somos, para que a
Consciência Pura possa, através do nosso sopro, tornar manifesta uma criativa mensagem
que produz harmonia, não só para nós, mas o mundo que nos rodeia.
Mas por mais
que avancemos em nosso processo de autoconhecimento, a mente se mostra mais
sagaz... Ela faz uso desses momentos iniciais de, com boa vontade, fazer frente
ao vazio que se apresenta, e começa a nos bombardear com ideias de que os dias
estão se passando e que nada está ocorrendo e que se continuarmos nesse ritmo,
acabaremos perdendo a vida, deixando de vivê-la com propriedade, como parecem
estar vivendo todos aqueles que nos rodeiam. Como nos demais momentos
anteriores, a observação sem escolha de tudo que ocorre em nossa mente e
emoções, bem como em nosso corpo, mostra-se um poder superior contra as antigas
identificações inconscientes e inconsequentes que nos causavam as dolorosas “saídas
do Ser”. Percebemos com a observação sem escolhas, que é a mente adquirida quem
clama por uma ação qualquer, pois, sem a identificação com uma ação externa, a
ação permanecerá na dimensão interna, e com isso, não há como não ocorrer a revelação da imperiosa influência dos ilusórios movimentos da mente condicionada.
Toda natureza se permite momentos de quietude e contemplação... Observe um animal... Na maior parte do tempo ele se encontra em estado de repouso. Portanto, é só a mente que possui essa necessidade de estar em constante ação acelerada. Mas, se somos sérios e dotados da necessária paixão pelo autoconhecimento, e em resultado disso, desenvolvemos a capacidade de observação de tudo aquilo que nos vai sendo revelado de momento a momento, essa ânsia pela ação externa, deixa de nos incomodar. Os momentos de vazio e de ócio passam a ser recebidos como uma necessidade vital em nosso processo de retomada da consciência da presença que somos. A identificação com as cobranças mentais — tanto nossas como dos demais — deixam de ser levadas a sério. Caem por terra as cobranças mentais que exigem por uma atividade no agora que nos prometa por segurança psicológica num futuro imaginário. Uma até então desconhecida capacidade de confiar na Grande Vida começa a se instalar, trazendo consigo o antídoto contra os antigos medos e ansiedades.
Toda natureza se permite momentos de quietude e contemplação... Observe um animal... Na maior parte do tempo ele se encontra em estado de repouso. Portanto, é só a mente que possui essa necessidade de estar em constante ação acelerada. Mas, se somos sérios e dotados da necessária paixão pelo autoconhecimento, e em resultado disso, desenvolvemos a capacidade de observação de tudo aquilo que nos vai sendo revelado de momento a momento, essa ânsia pela ação externa, deixa de nos incomodar. Os momentos de vazio e de ócio passam a ser recebidos como uma necessidade vital em nosso processo de retomada da consciência da presença que somos. A identificação com as cobranças mentais — tanto nossas como dos demais — deixam de ser levadas a sério. Caem por terra as cobranças mentais que exigem por uma atividade no agora que nos prometa por segurança psicológica num futuro imaginário. Uma até então desconhecida capacidade de confiar na Grande Vida começa a se instalar, trazendo consigo o antídoto contra os antigos medos e ansiedades.
Tudo isso faz
parte desse processo de ordenação resultante do exercício de autoconhecimento, o
qual vai colocando em ordem a nossa percepção de mundo, e nos apresentando sua desconhecida e maravilhosa paleta cores. Deixa de fazer sentido a necessidade de buscar por
validação para nossa maneira de estar no mundo, bem como a necessidade de
explicar essa percepção, que para os demais, se mostra totalmente diferente e
até mesmo irracional. E é essa nova visão de mundo que vai nos permitindo dele
desfrutar de modo livre, leve e solto e, na medida que nos for solicitado, ter a capacidade de compartilhar a maneira como tal estado de ser, em nós se fez manifesto. Essa capacidade de
maestria diante das influências da vida, de modo não reacional é que nos traz
um novo sentido de existir e de compartilhar dessa nova qualidade do estado de presença, que em última análise sempre esteve aqui, encoberta por uma grossa e tão pesada rede de condicionamentos transgeracionais.
Outsider