Quando, após a
instalação da crise iniciática, nos deparamos com determinados materiais que
apontam com seriedade para o processo de autoconhecimento, que quando começam a
ser compreendidos faz com que comece a cair toda a velha estrutura que tínhamos por real e
dotada de valor. Tudo começa a cair de forma tão rápida feito um enorme
castelo de cartas. Começamos a perceber a falência de toda estrutura, a
falência do mundo que cultuávamos, a falência da imagem que protegíamos, a
falência do sistema parental e social que cultuávamos, o que acaba nos causando
um impacto por demais violento. Nesse período, é muito natural nos olharmos no
espelho e não mais reconhecer aquele que vemos, ou então, acordar pela manhã e
não saber quem somos. É natural termos esse choque, essa profunda crise de
identidade, crise no sentido de olharmos para tudo que antes nos fazia sentido,
pra tudo que antes ao olharmos para aquilo víamos algo nosso ali, algo da nossa
história, algo carregado de valor psicológico significativo e que a partir de
então, torna-se como que cinzas em nossa boca. Tudo se transforma em cinzas!...
Isso tudo é muito impactante, chegando mesmo a se mostrar desesperador.
A experiência do
despertar vem carregada dessa confusão, porque o despertar faz desmoronar nossa
enorme coleção de castelos de ilusões; o despertar escancara com nossos
segredos e mentiras e desvalida nossas incertas certezas emprestadas. E como acabamos
vendo esse processo de desmoronamento não solicitado de nossos castelos de
ilusão, se as pessoas que nos são significativas fazem parte dos alicerces
desses castelos de ilusão?... Os ambientes significativos de outrora também fazem
parte desse castelo de ilusões; nossas práticas fazem parte desse castelo de ilusões; e o pior: todos com que estamos envolvidos, vivenciam e defendem
ferrenhamente esse castelo de ilusões. Então, é natural uma sensação de
profunda e temerosa solidão, com seu resultante desespero; é natural nos
sentirmos congelados no sentido de não saber pra que lado nos movimentar.
Com o processo
de autoconhecimento, pelo processo de busca pelo conhecimento de quem somos, nosso
poder de percepção vai sendo restaurado; nosso poder de observação vai sendo
restaurado; a sensibilidade vai sendo restaurada. Então, o que nos ocorre?... Os
pensamentos, medos e ansiedades sempre estiveram ai, mais sempre haviam algumas
identificações que abafavam os mesmos; e com o processo de autoconhecimento a
falência de tudo isso vai se tornando clara e trazendo uma maior abertura para
essa capacidade de observação e percepção. Então, quanto mais vai ocorrendo o
resgate do poder de observação e percepção, começamos a perceber mais os movimentos
do pensamento, os movimentos das imagens que carregamos do mundo, dos demais e
de nós mesmos; começamos a ter maior percepção do corpo e a percepção da nossa
dimensão interna. Tudo isso de um modo e com uma intensidade nunca antes sequer imaginada. Começamos a ter a percepção de que a sensibilidade estava tão
encoberta fazendo com que ficássemos muito na periferia de nós mesmos e da
realidade das situações em que nos encontrávamos de várias formas envolvidos. E
o autoconhecimento vai nos jogando cada vez mais para dentro de nós mesmos...
Ele vai derrubando, sem dó, sem egocracia, as paredes da insensibilidade, as
paredes da não observação, as quais nos mantinham fechados em nossa temida e não observada solidão. O autoconhecimento vai derrubando tudo isso.
Então,
aparentemente, para a mente adquirida isso se mostra um tanto apavorante, uma
vez que ela só pode funcionar dentro da limitada dimensão do conhecido, uma vez
que ela tem um profundo medo diante do desconhecido. É como no “Mito da Caverna
de Platão”... Nós só conhecemos a sombra; não conhecemos a realidade intitulada
por planície; não conhecemos cor, não conhecemos luz, não conhecemos nada. E
o autoconhecimento vai arrancando todas aquelas sombras, pois vai nos
apresentando uma luz que vai clareando cada vez mais tudo aquilo que
anteriormente não percebíamos como falso. E é óbvio que vamos começar a
perceber... Muitas situações falsas... Não há como ser diferente!... A
estrutura na qual funcionávamos é falsa; a estrutura na qual funcionávamos tem
valores morais que são profundamente imorais; e quando começamos a perceber
essa imoralidade, como podemos falar dessa imoralidade, quando o outro tem por
sagrado esse pacote de moral?... Então, somos como solitárias vozes gritando
num imenso deserto. Então é muito natural a mente criar pânicos e medos que nos
desajustam organicamente, afinal de contas, somos química também, resultante
desse processo mental.
Imaginemos uma
situação interessante: passarmos um bom tempo jogando nossas roupas sujas e
amaçadas dentro do compartimento apertado de algum guarda-roupa... Todo dia socando
mais e mais peças ali, ao ponto de termos que forçar suas portas para poder
fechá-lo... Num determinado dia, sem que esperemos, vem o processo de autoconhecimento
e escancara as portas do guarda-roupa e deita tudo de uma só vez ao chão...
Então não sabemos por onde começar a reparação da enorme bagunça... Não sabemos
quais são as roupas limpas e quais são as sujas... quais ainda nos servem e quais
precisam ser descartadas... Mas vem o sofrimento por estarmos profundamente
apegados naquelas roupas antigas que já não nos servem mais... Entramos em
pânico só de pensar em abandonar aquelas peças de roupas que nos são
queridas... Como fazer para abrir mão das mesmas?... Então a mente vem e cria uma
enorme coleção de fantasmas que nos assombram... Isto pode nos soar como um
exemplo bobo, mas, dentro da metafísica, dentro do esoterismo, a roupa é uma
representação do alcance de um estado de transcendência; é a transposição do
velho, a transposição de tudo aquilo que nos é conhecido. A roupa é a
representação da manifestação de um novo estado de consciência muito mais abrangente.
Mesmo na vida real, a roupa sempre marca nossos ritos de passagem. Mas a mente
adquirida não quer essa mudança de roupa, essa mudança de pele, essa mudança de
ambiente, esse caminhar pela planície ensolarada... Ela quer nos manter na úmida
caverna de nossa preconceituosa solidão.
É importante
notar que, antes do início do processo de autoconhecimento, quase todos nós,
enquanto profundamente identificados com a mente adquirida, funcionávamos
sem a consciência dessa limitante identificação. Tudo nos parecia normal quando
estávamos no exercício de sua ativa. Quando estamos profundamente identificados
com um determinado padrão comportamental obsessivo compulsivo, não existe
sequer a consciência de ego, que dirá a consciência da Consciência. Funcionamos
de forma cega e de modo que nossos esforços estejam sempre voltados para a
realização do prazer imediato proporcionado pela prática de tal comportamento.
Quando temos o primeiro choque, quando temos a primeira manifestação da
consciência da Consciência, a qual instala uma crise que acaba nos levando para
alguma “escola iniciática”, começamos a tomar consciência dos movimentos do
ego. Ainda é uma consciência com “c” minúsculo. É uma consciência que começa a
perceber que muita situação precisa ser reparada, que muita coisa precisa ser
descarta. Mas a mente adquirida entra em cena e diz: “Não! Não olhe para isso!
Não ouse abrir mão disso!... Deixe isso de lado, pois você não tem condições de
mexer com nada disso! Se mexer com isso, certamente vai acabar enlouquecendo!”...
Apesar disso, instala-se uma consciência que passa a nos incomodar de que
alguma coisa ai não está muito certo, que algumas coisas precisam ser
reparadas, doa a quem doer.
Quando
chegamos nesse momento do autoconhecimento, torna-se cada vez mais clara a
percepção do que são as vozes da mente e as vozes da Consciência que somos.
Isso vai se tornando cada vez mais perceptível e sem esforço. Abre-se como que
um portal para que essa Consciência que somos possa ocupar o seu devido espaço,
o qual foi indevidamente apropriado pela identificação com a herdada mente adquirida.
Começamos a perceber que o espaço que deveria estar sendo preenchido pela
Presença da Consciência, encontra-se tomado por uma somatória de crenças morais
com prazo de validade há muito tempo vencido. E é preciso ir muito além do que
temos por crença... Crença é tudo aquilo em que acreditamos; moral é o conjunto
de valores que temos por verdadeiros. E o autoconhecimento começa a nos
apresentar que tudo aquilo que temos por verdade são conteúdos de segunda mão,
até então nunca devidamente questionados. E é preciso ter em mente também que,
desde a mais tenra idade fomos formatados para não confiar em nossa intuição e para dar muito mais valor as palavras das autoridades que sustentam com suas
palavras e ações nossa adulterada escala de valores. Não fomos incentivados a
acreditar naquela “energia sem palavra” que de forma sutil nos mostra que alguma
coisa não condiz com a realidade, não aponta para a Verdade e que, portanto,
por ali não podemos seguir... Não dá pra ir por ali; não sabemos por que, mas
sabemos que não podemos ir por ali.
Então é muito
natural que quando começamos a ter essa percepção interna de que tudo está errado,
surja uma grande confusão, uma grande aflição, assim como os medos que nos
impulsionam a acreditar que, novamente, nossa percepção é que se encontra fora
do contexto da realidade. E percebemos também que não faltam influências
externas para nos fazer acreditar no abafamento do recém-encontrado poder de intuição.
Fomos profundamente adulterados no sentido de confiarmos na dimensão do
coração; essa adulteração fez com que perdêssemos a capacidade de sentir o que
nos diz o coração. Tamparam nosso coração; tamparam nossa percepção; e nos
fizeram pessoas totalmente presas nos apertados limites de uma mente
condicionada, ou seja, uma mente que nem é nossa e que vai muito além da mente
de nossos pais, avós e demais conhecidos, uma vez que estes, também se
encontram prisioneiros de suas mentes igualmente condicionadas. Então é natural
que no início do processo do autoconhecimento se instale em nós um profundo e
desconhecido medo, medo esse que não adianta ser compartilhado com quem nunca
dele, sequer teve consciência. Há que se encontrar por aqueles que ousaram
senti-lo na pele, que ousaram observá-lo em todas suas nuances e que por meio
dessa destemida observação, o compreenderam e o superaram.
Outsider