Este é um tema
muito importante no processo da retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa que somos. Um dos primeiros conflitos que acabam surgindo no
processo está nas oscilações decorrentes entre a ação do “observador ácido” e o “observador
melancólico”. Essas oscilações judiam demais uma vez que, em determinados
momentos estamos por assim dizer, eufóricos e em outros momentos,
demasiadamente letárgicos; num momento nos sentimos “o rei da cocada preta” e
em outros momentos, as fezes pisadas do cavalo do príncipe do reino da angústia.
Quando estamos nos sentindo o rei, apenas com nosso olhar, cortamos a cabeça
dos demais com quem pensamos nos relacionar. Quando nos sentimos o príncipe,
nos mantemos sorumbáticos, permanecendo por horas em nossa cama, nos fechando
no quarto, amargando um bom tempo com as imagens e sons que de forma acelerada
inundam a nossa mente.
Quando
dominados pela identificação com o estado de observador ácido, alimentamos uma
série de conflitos desnecessários; elegemos inimigos externos para dar vazão ao
mal estar que sentimos devido ao nosso estado de fragmentação.
Não tivemos
uma cultura e uma educação, não houve nada que alimentasse o desenvolvimento da
consciência de que somos Espírito, de que somos “anima”, de que somos o “Sopro”
no qual somos e interagimos. Só tivemos uma educação para a formação de uma consciência
técnica, cartesiana, o que fez com que alimentássemos um estado de
inconsciência sensória, fazendo com que passássemos décadas na inconsciente busca
de alimentar os sentidos de forma imediata, estes completamente fragmentados, desestruturados, sem dar a devida atenção aos possíveis resultados.
O Paradigma
Holotrópico é uma chamada para um processo de retomada de uma consciência espiritual,
ou seja, de uma consciência que nos torna conscientes do nosso estado de
ânimo diante de várias situações da vida de relação, as quais em situações
passadas, se viam desprovidas de tal percepção anímica. Essa retomada de consciência
nos tira do anterior estado automático e nos leva a percepção do modo com que
nos sentimos diante de todas as nossas atividades: diante das nossas relações,
diante dos conceitos sociais, diante dos sistemas de crença, diante das descabidas
exigências sistêmicas e diante de nossa atividade profissional (entre outras
tantas). É um chamado para uma atenção maior ao que ocorre em nosso interior, aos
sussurros da voz mansa e suave que se manifesta no mais fundo de nosso ser, ao
invés da ininterrupta voz no interior de nossa mente, a qual seguíamos de forma
mecânica e dela, totalmente inconsciente. Com o despertar dessa consciência espiritual,
começamos a perceber que essas vozes que dominavam nossa mente, não eram mais
que ferozes e limitantes ecos das vozes de nossos pais, avós, parentes,
professores, amigos, religiosos, políticos e demais pessoas significativas que
fizeram parte de nossa formação psíquica emocional. Deixamos de dar atenção a
estas falas e passamos a buscar cada vez mais, ajudados agora por momentos de silencioso
recolhimento, a escuta atenta dessa voz mansa e suave, profundamente centrante
e integrativa e que nos desperta para essa dimensão sensitiva, intuitiva. Essa
consciência nos faz perceber que há algo que nos cala mais fundo, e que não é o
corpo, e que não é a mente, mas que é uma “Presença”, que podemos chamar de
alma.
Quando olhamos
para o passado, não é difícil perceber que para a maioria de nós, sempre havia
como que uma pulguinha atrás da orelha nos dizendo sempre que havia algo de
errado em tudo aquilo que nos era forçado como verdade e valor. Desde criança,
alimentávamos um impulso questionador, o qual, devido ao medo gerado pela
necessidade de aceitação parental, acabamos na maioria das vezes por abafar.
Para a maioria de nós, sempre houve uma exposição a uma repressão a qualquer
forma de questionamento contrário aos valores estabelecidos e alimentados pelas
pessoas significativas. Em resultado disso, acabamos reprimindo muita coisa,
nos ajustando, nos formatando, nos adequando, e a garganta foi ficando
entalada, por engolir um sapo atrás do outro e sem compreender esses sapos. Então
nos chega de forma inesperada e totalmente desconhecida, o que chamamos de "crise iniciática", a qual pode se manifestar tanto pela experiência do absurdo
como pela experiência da Graça, a qual coloca um basta nesse processo de
ajustamento e na doentia mania de engolir sapos. E, a partir daí, as perguntas
não feitas quase sempre começam a aflorar de forma abrupta. A observação se amplia; surge um
novo olhar trazendo consigo uma imensa sede de anos sem respostas, juntamente
com a necessidade de começar a se manifestar diante de tudo, quase sempre de
modo contrário e desequilibrado. Nesse momento, a vontade é de cortar a cabeça
de deus e do mundo através de uma rebeldia nem um pouco inteligente. Há um
sentimento de vingança, não observado, por tantos anos de ajustamento forçado. Surge também uma imatura repulsa a qualquer tipo de valor ou pratica de cunho espiritual.
Esse é um
momento muito delicado, uma vez que esse impulso reativo aflora de tal forma
que, quase sempre, torna-se impossível evitar os desequilibrados confrontos
diretos com aqueles que até então, nos forçavam ao ajustamento, seja de forma
consciente ou totalmente inconsciente. Raiva passa a ser a energia maior que
corre em nossas veias, o que faz com que paguemos um preço emocional muito caro
por isso e quem fica com a fatura, geralmente, é o corpo. Aqui é preciso ter
sempre em mente que o conflito é o alimento da mente adquirida. Se alimentamos
o conflito, a mente adquirida não morre de forma alguma. Para que ocorra a
manifestação da experiência que nos lança novamente na dimensão do domínio da Perene Consciência Amorosa Integrativa, se faz necessário que a mente e os
pensamentos, que estão sempre se manifestando na ponte do tempo passado-futuro,
cheguem à morte natural. Como que ocorre uma morte natural? Basta não alimentar
com água e comida. Então, aqui, nossa observação nos leva a consciência de evitar
a todo custo o desequilíbrio emocional, quase sempre gerado pelo exercício da
controvérsia pública. Nesse momento, mais do que nunca, nosso idioma quando em
meio dessas situações conflitantes precisa ser o silêncio. O trabalho com um
confrade mais antigo de caminhada, aqui se mostra de profunda importância, como
uma espécie de “válvula de pressão”. É com ele que compartilhamos de nossas
percepções de forma franca, honesta, o que faz com que possamos compreender
melhor, não só os acontecimentos nos quais nos vemos envolvidos, mas, o
principal, o modo como somos influenciados por eles. É por meio dessa troca
aberta que vão sendo instalados em nós os alicerces de um modo maduro de estar
na vida de relação.
Na infância com o Paradigma Holotrópico, muito coisa surge para ser trabalhada,
sendo que muitas delas se mostram de forma bastante confusa e dolorosa. Ele
começa a nos trabalhar para a formação de uma consciência quanto aos nossos
sentidos adulterados. Então, uma das primeiras coisas que começamos a trabalhar
é o apaziguamento e a reorientação dos nossos sentidos; é a percepção de como
eles se encontram adulterados e do quanto que esses sentidos acabaram por
adulterar aos demais com quem mantivemos contato. Este é um processo de ir
reparando, de ir observando, observação esta que nos leva ao progressivo apaziguamento
dos sentidos, e a instalação de um estado de silêncio mental até então nunca
sequer imaginado. Conforme os sentidos vão retornado ao seu devido
funcionamento, começamos a experimentar um novo estado de calma. Conforme esses
sentidos vão sendo apaziguados, conforme através da observação desses sentidos
e da influência das relações vamos descobrindo nossas falsas dependências
psicológicas, também vamos nos acalmando, também vamos deixando de receber nutrição na
esfera mental.
Uma das
dificuldades iniciais está no fato de não conseguir exercitar a observação sem
alguma forma de escolha, ou seja, sem a ocorrência do automático vício do
julgamento daquilo que é percebido. Conforme se vai percebendo e aceitando as
limitações da mente adquirida e nessa aceitação — o que não significa se
comprazer com elas — ir percebendo que o processo é assim mesmo, que não
poderia ter sido diferente, vamos reparando e olhando bem para tudo isso, e
quando menos percebemos, nos deparamos com a instalação de uma percepção presencial
de si mesmo e do ambiente não reativa. Inicialmente isso é bastante doloroso. Mas, conforme
vemos que isso ocorreu igualmente para todos, conforme vemos que somos todos prisioneiros entre prisioneiros, todos adultos adulterados adulterantes, vai se instalando uma
maturidade no olhar que nos permite constatar que as coisas não poderiam ser
diferentes, o que faz com que se torne mais fácil soltar e relaxar... soltar e
relaxar... vai ficando mais fácil de estar mais próximo dos demais e das
situações, porque essa percepção presencial, tanto de si mesmo como do ambiente
em que estamos inseridos, essa percepção presencial tanto interna como externa,
vai nos proporcionando algo que para muitos pode acabar soando como algo místico:
a percepção de uma Presença, a qual nos possibilita um observar muito mais
sutil, que supera em muito a antiga forma grosseira de nos relacionarmos com
tudo que é. Começamos a sentir “Algo” dentro de si, começamos a sentir uma
Presença; começamos a sentir que há dentro de nós um local mais seguro onde
podemos nele nos recolher e nos preparar para poder estar em nossas relações de
modo consciente, centrado e integrativo.
É interessante
notar que a sociedade dá muito valor à concentração, ao retiro, para
determinadas situações, dando especial ênfase a isso, principalmente nos
noticiários esportivos. Exalta-se o retiro e a concentração de alguns dias para
o sucesso em determinada prática esportiva. Para o esporte isso já faz parte da
condicionada cultura popular. No entanto, não desenvolvemos a percepção da
necessidade da concentração para os demais modos de relação. Não temos a
cultura de nos “conectarmos” com essa Presença que nos habita e na qual somos,
antes de mantermos conexão com as demais situações do cotidiano.
Com o
exercício do observar do Paradigma Holotrópico, vai surgindo em nós essa
necessidade de recolhimento e de centramento, para poder estar integro, quando
diante dos desafios do cotidiano, uma vez que a vida é relação. Com essa
prática, tudo vai se mostrando mais fácil; os sentidos vão se apaziguando; os
pensamentos vão silenciando; porque, com os sentidos e a mente agitados, não há como sentir algo de
uma dimensão mais sutil; não há como perceber a energia que somos, a consciência
que somos... Não há possibilidade disso. Mas, conforme vai ocorrendo esse aquietamento,
que não é algo forçado, mas sim, uma resultante da prática do recolhimento, da
observação e reparação dos acontecimentos e das coisas que foram tomadas por
verdadeiras durante um longo processo de inconsciência e inconsequência, essa
abertura vai se ampliando, essa percepção de que somos essa Presença, de que
somos essa energia, de que somos esse caloroso e centrante Sopro, o qual nos dá
condição de não levarmos a sério a própria mente e também a mente dos demais
com quem mantemos contato. Fica muito fácil de deixar de levar a mente dos
outros a sério quando deixamos de levar a sério nossa própria mente. Quanto mais
damos risada dos conteúdos — sem conteúdo — de nossa mente, mais fácil se torna a
vida de relação, mais fácil se faz a compreensão do espírito que anima a
conhecida frase cristã: “Pai, perdoa, porque eles não sabem o que fazem”.
Outsider