Domingo: eram por volta das 20:00 horas quando tocou o celular. Estávamos proseando com alguns amigos, reunidos numa padaria da zona norte. A conversa versava sobre as nossas experiências relativas a observação do pensamento e seu processo divisor. Do outro lado da linha, um tanto ansioso, nosso amigo Roberto, cuja esposa encontra-se na UTI do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer. Pediu-me para que se possível fosse, o recebe-se em nossa casa, pois estava muito necessitado para desabafar seus sentimentos. Prontamente, nos despedimos de nossos amigos e partimos em direção à sua casa, um tanto apreensivos. Sua esposa, uma pessoa extremamente especial, estava com seu quadro clinico muito critico e no fundo temíamos pelo conteúdo do que ele tinha para nos falar.
Ao chegarmos a sua casa, encontramos Julia, outra amiga nossa, bastante abatida. Roberto, naquele momento, conversava por telefone com seu filho residente na Austrália. Com o telefone sem fio, movia-se de um canto para o outro da pequena sala, deixando transparecer o grau de sua ansiedade. Pela sua fala, tornou-se claro que o quadro de nossa amiga havia se agravado profundamente. Meu sentimento foi de total impotência.
Estávamos agora sentados na sala, onde durante um ano e meio, todas às segundas-feiras mantivemos um grupo de estudos, primeiramente do livro "O Sermão da Montanha", seguido do livro "O Poder do Agora". A persiana branca que escondia sua pequena, mas aconchegante sala de massagem, agora estava aberta deixando transparecer a cama e o material por ela usado. Sobre a tampa das teclas do piano, os dois livros de auto-ajuda que eu havia visto com ela em seu quarto durante a minha visita. No tampo superior do piano, vários porta retratos das pessoas que lhe eram queridas, entre elas, um com a foto do nosso grupo de estudos.
Assim que terminou a ligação, Roberto solicitou para que fossemos para a nossa casa, pois como seu filho caçula encontrava-se no piso superior da casa, tinha receio de que ele escutasse o teor da conversa. Prontamente nos levantamos e seguimos na frente para a nossa casa. Quando lá chegamos, minha esposa tratou de acender logo um delicioso incenso de macela, mirra e mel para sobrepor o cheiro deixado pelo montinho de fezes do nosso pequeno cão. Deixamos a porta de vidro da sala bem aberta para que a sala fosse arejada mais depressa. Dez minutos depois eles chegaram. Sua presença causou uma grande ansiedade em nosso cão e para que ele não atrapalhasse nossa conversa, tratamos de trancá-lo nos fundos de nossa casa. Uma vez devidamente acomodados, perguntei-lhe:
- Muito bem, meu amigo, o que você tem para nos falar?
- O que tenho para lhe falar não é nada bom. O estado dela agravou muito. O médico, depois de uma hora e meia de exames, veio ter comigo em particular e disse-me que sentia muito, mas que havia sido feito tudo aquilo que estava ao alcance da medicina atual. Ele disse que o problema esta no fato de que o organismo dela não está respondendo. Ela já está com água no pulmão, somente 20% do seu fígado está funcionando e o seu sangue está tendo dificuldade de coagulação. A situação é critica.
- Ele disse quais são as chances?
- Só há chances se o fígado reanimar. Temos que torcer para que não atinja os rins.
- Bem, agora que você já nos falou a respeito da situação dela, por favor, fale-nos de você. Compartilhe seus pensamentos e sentimentos, sejam lá quais forem. Sinta-se a vontade, você sabe, está entre amigos.
- Meus sentimentos?...
- Sim, seus sentimentos! Você é humano, precisa compartilhar!
- Medo!... Tenho muito medo de perdê-la. Tenho muito medo da vida sem ela. Tenho medo de ficar só... Sinto-me perdido! Não sei por que isso tinha que ocorrer agora... Nossos primeiros 20 anos de casamento foram muito tumultuados e só agora nestes últimos 15 anos é que começamos a nos relacionar de verdade. E agora, no auge do bem-estar de nossa relação, apresenta-se essa maldita doença... Sinto raiva! Sinto muita raiva da minha impotência diante dos acontecimentos. Sabe, apesar de não ser católico, hoje pela manhã permaneci por uns trinta minutos orando na capela do hospital. Pedi muito para que Deus não a levasse, que nos desse mais uma chance... Tenho medo de perdê-la. Não quero ficar só. Ela sempre me disse que se eu morresse primeiro ela iria junto comigo. Você quer saber meus sentimentos?... Estou com muita raiva e com muito medo!
- Ela está sabendo da realidade do quadro dela?
- Não, não sabe! Se souber, tanto eu como o médico acreditamos que ela entregaria os pontos de uma vez. Sabe, ela vem reclamando há dias de que se encontra muito cansada disso tudo. Decidimos não falar.
- E seus filhos? Estão a par dos acontecimentos?
- Só o mais velho. O caçula é muito apegado a ela; tenho medo de que ele não tenha estruturas para lidar com a realidade dos fatos. Ainda me resta uma esperança, essa, como dizem, é a última que morre.
- Pois então, aguardemos juntos! Você não está só! Estamos juntos meu amigo! Vamos torcer pelo melhor e que seja o melhor para ela e não o que achamos que seja o melhor. Que seja o melhor para ela!
- Sim, sem dúvida, o melhor para ela!
- No entanto, precisamos estar cientes das duas possibilidades. Esperamos por aquilo que achamos ser o melhor, no entanto, se a possibilidade que não queremos vier a se apresentar, que estejamos prontos para sermos amorosos "parteiros". Todos, um dia, precisamos de uma "parteira" para ingressarmos neste espaço tempo e todos também vamos precisar de "parteiros amorosos" que nos incentivem a ir com tranqüilidade para o Ser que nos faz ser e ser um com ele.
- Eu só não quero perdê-la, não agora! Se isso ocorrer, não sei se vou saber me adaptar à vida sem ela. Tudo nesta casa tem o toque dela.
- Meu amigo, no momento, o que posso lhe dizer é que você não está só, estamos todos juntos com você! É preciso muita coragem para ficar com o que é. O que é não é democrático, muito menos oferece consolo. É preciso força, serenidade, coragem e sabedoria.
Ele curvou sua cabeça, respirou fundo e a balançou em sinal de concordância. Depois da conversa, fiquei meditando na insanidade da nossa cultura secular. Nunca tivemos uma pedagogia para a morte. Nunca aprendemos a conviver com ela, a ver a beleza em sua manifestação. Sempre nos mantiveram, desde a mais tenra idade, distanciados desse grande fato da existência. Carregaram-nos de medo, assombro e desespero. Nunca nos ensinaram a ver a morte em cada acontecimento diário. Literalmente, sempre a encobertaram de nós. Por isso não sabemos como lidar com esse acontecimento quando inesperadamente se apresenta. Não fomos ensinados a ser "parteiros". Não aprendemos a ver a morte como um fator de transcendência. E por isso, acrescentamos sofrimento aos já instalados.
Como morrer para o velho condicionamento da morte?
Como manter a mente aberta para compreender a mensagem contida em si mesma?
Como aceitar a impermanência de tudo, não pelo conformismo doentio, mas sim, pela compreensão inteligente?
São perguntas que não cabem a ninguém responder por nós e precisamos respondê-la logo, pois a morte, nunca nos avisa do dia de sua chegada e como diz um grande amigo nosso:
"Se você não morrer antes de morrer, você morre quando morrer".