- Viva, JR!
- Viva, Pessoa! Já estava sentindo falta da pessoalidade de suas letras na impessoalidade da tela do meu monitor. Eu espero que você esteja vivendo bons momentos!
- Durante esta semana emprestei o meu computador portátil à minha irmã e fiquei incomunicável e desligado do mundo por algum tempo. Liguei a televisão e reparei que é época de natal. Pude observar que se multiplicam as campanhas de solidariedade com as crianças desfavorecidas cujos pais não têm a possibilidade de lhes presentear brinquedos. Assim, muitas personalidades famosas e anônimas contribuem para que as crianças desfavorecidas se tornem, também elas, fiéis consumidoras. O capitalismo é um bom pai: não quer que nada falte aos seus filhos, nem a nenhum dos seus filhos. Neste natal, o meu desejo é que as crianças favorecidas não tenham brinquedos! E que as crianças desfavorecidas tenham pão. Eu fui uma criança muito favorecida porque me diverti muito a inventar os meus brinquedos... Aviões de madeira, pianos de pedrinhas, e fiz do nosso sótão uma enorme nave espacial... Com vista para todas as galáxias conhecidas ou por descobrir.
- Natal!... Estamos em véspera dos dias em que a hipocrisia humana chega aos seus níveis mais apurados!... É terrível ter que compactuar desse teatro armado em favor do consumismo... Consome-se o ser humano durante um ano inteiro e nas últimas semanas, sorrisos amarelos, abraços e tapinhas nas costas, acompanhados de frases mecânicas ditas sem o menor sentido. Almoços, jantares e finais de semana de confraternização entre pessoas que se odeiam e digladiam entre si para garantir seus postos em instituições sem vida... Sem falar nas doações aos pobres para aliviar um pouco do peso da consciência de um ano de corrupção. Há de chegar uma aurora em que homens e mulheres deixem de compactuar com esse teatro de estação.
-"Aurora de um dia sem medo"... Foi uma expressão que se me entranhou quando li o texto de Vimala Thakar que o JR partilhou comigo durante esta semana. O texto é muito inspirador. Esta expressão atinge imediatamente, e sem rodeios, o meu maior desejo. Como eu gostaria de viver assim, sem medo, acordado sem memórias, amanhecido sem ontens. Sim, como eu gostaria... Bem, entretanto compreendi o desejo e compreendi que desejá-lo impede concretizá-lo, vi que a preocupação é um beco sem saída. Que coisa irônica esta: Querer é não poder! Ou seja, para poder fazer algo tenho que não querer fazer esse algo, mas não querer fazer algo é também querer fazer alguma coisa!!!... Tenho que sair deste labirinto! Mas não posso desejar sair do labirinto. Sim, eu sei: observar o labirinto fá-lo desaparecer, nem será preciso procurar a saída! Mas eu não sou o Neo, nem tomei a pílula azul, ou vermelha...
- Compactuo deste mesmo desejo, Pessoa! Esta é a minha maior ambição: ser livre de mim mesmo, livre de todas as crenças, livre de todas as datas, livre de todos os programas perpetuados através dos sorrisos de aluguel nas faces plastificadas dos atores globais! Também acredito que há de surgir uma aurora em que um número maior de pessoas seja capaz de deixar de atender aos apelos televisivos.
- Reparei que a televisão é a única pessoa da minha família a quem todos prestam atenção. E que o primeiro ato-reflexo quando entram em casa é ligar o televisor, mesmo quando não há nenhum programa que lhes interessa. Dizem que é pela companhia que esta lhes proporciona. Eu sugiro-lhes que a desliguem, que poupem energia elétrica e dinheiro na fatura mensal. Eles não se importam, os tempos de pobreza e frugralidade são longínquos. Sempre que eles saem da cozinha, eu desligo a televisão que me aborrece e fico sozinho comigo, à lareira. Descobri que sou uma companhia muito interessante. Mas reparo que a televisão tem sobre mim, ainda, um poder de encantamento qualquer... Deixei de ver telejornais, e passei a almoçar junto das árvores nossa vizinhas.
- Isso é um fato! Tem pais que conhecem mais os colunistas do jornal, os apresentadores de TV do que os sonhos de seus próprios filhos. E, por outro lado, filhos que conhecem mais a mediocridade da mente dos MTV's do que os medos, inseguranças e sonhos de seus próprios pais.
- Tenho textos que o JR me envia e outros que retiro de vários sites para reler durante as semanas. E ainda não concretizei a promessa que fiz a mim mesmo de encomendar os livros de Krishnamurti que, afinal, se encontram publicados e disponíveis em Portugal. A verdade é que não me apetece mais ler. Eu li tanto na minha vida, cresci dentro de uma biblioteca, sei como são frios os braços de um livro. Não me apetece mais ler. Eu não consigo mais ler. Só me apetece contemplar os dias, e as coisas inesperadas como uma abelha em meu redor, ou uma borboleta perdida, ou uma nuvem solta. Afinal, se olhar, se observar é tudo quanto basta para viver, para quê continuar a procurar a verdade nas páginas dos livros?... Que justiça universal haveria se a verdade fosse apenas percebida por aqueles que sabem ler? Os iletrados das montanhas do Nepal são seres menos cônscios que eu só porque não descodificam caracteres e símbolos?
- Não tenho como lhe responder essa questão.
- Admito, contudo, que faz sentido recorrer a livros para "desaprender" aquilo que fomos obrigados a aprender por outros livros durante a nossa existência inconsciente. E sou solidário com o JR: os livros para "desaprender" são mais escassos e raros (e valiosos!) do que aqueles que doutrinam. Há uma escassez de editoras interessadas em tais livros. Mas é fácil de entender o porquê: uma editora é uma empresa. E os livros de "desaprender" des-ensinam o consumismo. Seria incongruente uma empresa dedicar-se ao não-consumismo, se assim acontecesse ela deixaria de ser uma empresa e se tornaria em algo humano. Seria a decadência da máquina, e a aurora da humanidade. Mas, perante o imperialismo das editoras, resta-nos a rebelião cibernáutica... Afinal, não é isso que a Cuidar do Ser faz?
- Sem dúvida!
- Nesta semana, sem internet, aborrecido de morte com a televisão, sem vontade de ler quaisquer textos, depois das horas de trabalho cumprido como autômato, adormeci de cansaço. Dormi muito e bem... Que era algo que já não fazia desde a infância. Dormi como quem hiberna. E fez-me tão bem... Há coisas tão simples de que nos esquecemos quando somos seres preocupados.
- Por falar em dormir, a noite já vai tarde aqui deste lado do mar. É sempre bom manter nossas conversas nutritivas, mesmo que por meio desta sopa cósmica de letrinhas! Veja lá se não desaparece! Continuamos por aqui refletindo em momentos de tédio, insatisfação e vazio existencial. Bem haja, Pessoa! Bem haja! Um forte abraço fraterno!
- Um abraço, JR!
(...)
- (parafraseado de conversas com um amigo além mar)
Por que sua carta não foi lida?