Agora à tardinha, encolhido de frio na porta da loja, recebi a visita de uma pessoa que me é muito querida. Ele veio me pedir para que eu fizesse a diagramação de dois quadrinhos com alguns lemas usados nos grupos de A/A – Alcoólicos Anônimos, os quais iria levar a noitinha para colocá-los num albergue. Num determinado momento da nossa conversa, ele me perguntou seriamente a respeito do meu estado de espírito, uma pergunta que foi bem mais além daquele rotineiro "como vai você" do script social básico.
- Você quer realmente saber?
- Lógico!
- Pois bem! Mais nublado e frio do que o dia de hoje! - Lhe respondi depois de uma longa respirada.
- Por quê? O que está lhe pegando!
- Deve ser a crise dos 40... O que está pegando mesmo é o lance vocacional... Sinto que estou me consumindo aos poucos aqui nesta loja... Trabalho com algo que não amo, que não tem nada a ver comigo. Minha relação aqui é somente para angariar os fundos necessários para o meu custo de vida. Acho isso muito pequeno, sem o menor sentido... Não consigo aceitar que eu deva me conformar em trabalhar apenas para custear a existência. Tem que ter alguma coisa com a qual eu me identifique e que possa me prover com os valores necessários para as minhas necessidades do cotidiano.
- E o que você gosta de fazer?
- Essa é a pergunta que não se cala dentro de mim. Hoje sei muito bem tudo aquilo que não desejo fazer, mas, ainda não tenho respostas para essa pergunta. Lógico que se tivesse respostas para a mesma, já teria saído desta situação que me consome dia a dia.
- Mas acho que a maioria das pessoas vive esse conflito. Não creio que as pessoas trabalhem realmente com aquilo que amam. Eu mesmo nunca fiz isso. Sempre tive que correr atrás do prejuízo, você sabe, prestações de casa própria, filhos, supermercado, prestação do carro... Quando se tem essas despesas não dá para se pensar muito. Tem mesmo é que ir empurrando as coisas com a barriga. Acho que todas as pessoas vivem mais ou menos isso! Eu desconheço pessoas que realmente fazem o que amam!
- Então, desculpe-me, sou mesmo um anormal. Não consigo me conformar com esse tipo de pensamento. Esse lance de ter que fazer o mesmo por que a grande maioria não se permite o questionamento não é comigo não! Uma vez feita essa pergunta com propriedade não tem como ignorá-la. Desculpe-me pela franqueza, mas é triste ouvir de você, aos 65 anos, que nunca trabalhou com algo que amasse. Eu não quero chegar à sua idade e me olhar no espelho e ter que dizer isso para mim mesmo. Acho que isso é uma verdadeira morte em vida.
- Sempre achei que a gente tem que ir pulando de emprego em emprego até descobrir algo que se goste. No meu caso, acabei não descobrindo. Algumas pessoas têm mais sorte! Para aquelas que não conseguem, acho que o lance é se conformar em trabalhar com o que aparece.
- Deixe-me ver se entendi bem: você está me dizendo que o lance é se conformar com o que aparece? Você se conformaria em pagar as suas contas com o dinheiro proveniente da venda de bebidas alcoólicas? Teria coragem de vender para outro ser humano, aquilo que você por experiência própria sabe que é um grande veneno? Aceitaria viver daquilo que quase destruiu a você e a sua família?
- Se tivesse que fazer isso para sobreviver, claro que o faria!
- Então, você se conformaria em pela manhã "sobreviver" através da venda do álcool e a noite levar a mensagem de A/A para pessoas que se embebedaram durante o dia através da compra de bebidas nas mãos de alguém que como você se conforma em sobreviver com a bebida?
- Se não encontrasse outro modo de ganhar a vida, o faria!
- Pois é meu pai!... Não sei se podemos chamar isso de "ganhar" a vida! Não consigo ver ganho algum nisso! Seu filho realmente deve ter algum problema. Mas perto do que acabei de ouvir de você, acho que o meu problema é bem pequeno quando comparado com o seu...