Acordei por volta das 8:00min. da manhã com as quentes e amorosas lambidas do meu pequenino cão. A temperatura caiu para 14 graus e o asfalto encontra-se bastante molhado pela fina, mas, constante garoa fria. As pessoas estão bem agasalhadas, ainda mais encolhidas dentro de si mesmas. Algumas delas fazem uso de tocas e cachecol.
Mal abri a loja, um jovem rapaz deixou sobre o balcão uma revista da Associação dos Comerciários, a qual folheei em menos de 5 minutos... Vendas, vendas, vendas e mais vendas... Uma coletânea de idéias para se conseguir sucesso e crescimento comercial... Vários sorrisos amarelos e poses que não retratam a verdade dos métodos usados para tais sucessos... Não havia nada de meu interesse em tal revista. Como hoje é dia de coleta de lixo, coloquei tal revista sobre o amontoado de sacos pretos da calçada; quem sabe, para alguém que esteja buscando por isso, esse revista possa ser de alguma valia.
Sinto que minha necessidade é muito mais profunda do que a coletiva preocupação pelo crescimento comercial. Sei por experiência própria que esse tipo de conquista não tem o poder de trazer respostas para a minha profunda necessidade de sentido existencial.
Apesar de ter meu próprio estabelecimento comercial, não me sinto estabelecido; não sinto que encontrei o meu lugar. Minha atual atividade comercial é monótona, rotineira e destoa totalmente do meu modo de pensar e sentir. Não creio na validade real das mercadorias que vendo (com exceção de alguns poucos títulos de livros) e, portanto, não sinto o menor estímulo para vendê-las. Sinto que são produtos altamente supérfluos, sem falar no fato de que hoje não consigo mais ficar "xavecando", criando a ilusão da necessidade de tais produtos, para mim, desnecessários.
Resumindo: não disponho mais do espírito de vendedor... Não consigo mais colocar "vendas" sobre a dor do outro...
Sinto que devo trabalhar com algo que de alguma maneira possa ajudar a "desvendar" e não algo que crie ainda mais "vendas" sobre as já existentes camadas de vendas que o outro traz sobre seu olhar, e, que por vezes, lhe causam dor.
Definitivamente não nasci para ser um "fazedor de vendas", não nasci para vendar a dor. E o fato de ter desvendado que não nasci para vendas, mas ainda me encontrar nesse mercado, me provoca imensa dor.
Que venda é essa que me impede de ver com propriedade as propriedades de uma real vocação?
O que realmente é de minha propriedade, que me é original e que não é fruto de uma técnica do passado ou fruto de mera imitação?
O que é de minhas origens que possa ser realmente útil e de conteúdo real para a sociedade?
Que talento é este que se encontra tão lento?
São perguntas que não se calam em meu interior...
Em meu trabalho, me sinto como um prostituto, com a diferença de que não vendo meu corpo, mas a minha integridade em favor de alguns trocados para pagar meu custo de vida...
Hoje, meu primeiro cliente, um senhor tapeceiro da região, entrou cabisbaixo em meu "estabelecimento comercial", me pedindo por um "poderosíssimo" incenso para limpeza do ambiente, contra inveja e mal olhado e outro para chamar dinheiro e trazer paz de espírito (a paz de espírito vem sempre em último lugar, até nos pedidos!)... Em meu intimo, sei muito bem que essas pequeninas varetas de bambú, aromatizadas artificialmente, não têm o poder que está estrategicamente impresso em suas bem trabalhadas e coloridas embalagens repletas de imagens...
E aí?... O que faço?... Minto?... Coloco ainda mais vendas sobre as vendas deste meu cliente?... Ignoro o que sinto?... Lavo as minhas mãos?... Alimento a ilusão?... Ou faço o que é característico do espírito vendedor: trato de empurrar mais algumas mercadorias de maior valor?...
Não! Não é isso o que faço!...
Silencio-me!... E com o olhar atento direcionado para os olhos embaçados de tal cliente, mantenho uma comunicação sem palavras... Vou muito mais além da mecânica frase "mais alguma coisa, senhor?"... Não digo o que sinto, mas não o deixo de fazer pelo olhar silencioso... E essa é a minha mais sagrada oração!...
E é essa limitação de não poder expressar aquilo que realmente sinto que faz com que eu me sinta traindo a mim mesmo... Sinto-me traindo o espírito que me motivou um dia a criar a "Cuidar do Ser"...
E este é meu grande martírio: saber o que não quero, mas não saber o que quero!