São 8:42 minutos. O dia amanheceu seco, no entanto, a temperatura caiu muito. A padaria está lotada e várias pessoas disputam um lugarzinho no balcão para um café, geralmente bebido as pressas. Consegui um cantinho logo na entrada do salão. Enquanto aguardava minha vez de ser atendido, observava os olhares das pessoas: tensos, cansados e preocupados. Na outra ponta do balcão, um rapaz que havia estudado na mesma escola que eu no período do ginasial; um metro e sessenta de altura e por volta dos 95 quilos. Olhar extremamente tenso, carregado. Não me reconheceu. Diante de si, sobre o balcão, uma agenda eletrônica, um celular da última geração e várias folhas impressas com gráficos.
- Bom dia Josino! Como é que é? Já abriu os pedidos hoje? Ainda não? Quase nove horas e ainda não deu nada?... Estou brincando! Olha só: tivemos uma prévia do mapa de vendas e o único da equipe que ainda não conseguiu bater a cota foi você. A chefia está pegando no meu pé, uma vez que no mês passado você também não conseguiu bater a cota. Estou vendo aqui que você está com 93% da sua cota... Então? O que você me diz?... Precisa fazer o movimento cara! Tem que acreditar que vai dar!... Claro que vai conseguir vender! Faz o seguinte: se você conseguir chegar nos 97% eu vejo seu lado com a chefia; vou fazer de tudo para eles cobrirem, só que você tem que ralar, cara! E aí?... Posso contar com você? Você é ou não é um dos meus? Vê lá!... Então tá! Qualquer coisa me liga! Boas vendas!...
Abaixou a cabeça um tanto contrariado, pegou metade de seu pão com manteiga colocando quase que a metade do mesmo de uma só vez em sua boca... Mastigou contrariado balançando sua cabeça. Olhou para um senhor que estava ao seu lado e exclamou;
- Tanta gente querendo trabalhar e neguinho dando-se ao luxo de se sentir desmotivado... Dá para acreditar! Como é que o cara pode vender se já sai de casa nesse estado?...
Novamente baixou sua cabeça, olhou para a agenda eletrônica, sacou o celular apertou uma só tecla e aguardou pelo recebimento da ligação...
- E aí Everaldo? Bom dia prá você também! Então, estou olhando aqui os mapas de vendas e você conseguiu cobrir a cota muito de raspão... A coisa está em cima do muro... Precisa ter mais umas vendinhas aí para não correr o risco; se tiver algum cancelamento de última hora ou algum produto em falta no estoque você pode dançar!... Posso contar com seu esforço? Os homens estão no meu pescoço! O que você me diz?... Ok! Qualquer coisa me liga! Temos hoje o dia todo! Estou contando com você! Você sabe que considero você um dos meus!...
Ele estava tão nervoso que falava numa altura que da calçada do estacionamento qualquer um poderia ouvi-lo. Novamente abaixou a cabeça e repetiu o movimento anterior, engolindo apressadamente boa parte da outra metade do seu pão com manteiga. Virou-se para o senhor do lado e exclamou:
- Já vi que hoje vai ser um daqueles dias! Plena sexta-feira! Logo cedo pressão sobre pressão! Mal começou o dia e não vejo a hora dele terminar!
O senhorzinho limitou-se a dar um tímido sorriso. Percebi que vários outros clientes, assim como eu, assistiam silenciosamente o acontecimento tirando suas próprias conclusões.
Eu aqui do meu lado comecei a me questionar sobre a desumanidade do sistema capitalista, com toda sua desonestidade, manipulação, jogo de mentiras, pressões motivadas pelo auto-interesse e pela busca de segurança.
Como que um homem pode estar motivado logo cedo pela manhã ao receber ligações como essas, dotadas de uma impessoalidade descomunal?
Por que ao invés dessas cobrança desumana não ver que do outro lado há um ser humano que pode estar atravessando sérios problemas?
Por que não procurar saber quais os motivos da desmotivação?
Por que o homem só percebe a insanidade de ter vivido preso em gráficos impressos no papel, somente quando sua vida se encontra presa diante dos gráficos emitidos numa maquininha ao lado do leito de um hospital qualquer?
Isso para o sistema não importa: o importante... é a venda!