A palavra "deserto", em hebraico, significa algo ou
alguém abandonado — à natureza, às feras —, em russo, deserto, vem de "pusto"
"pustota": o vazio.
Nosso
deserto tem seu início quando a Consciência desperta de seu estado de sono
profundo, resultante de anos de adulteração psíquica.
Esse
deserto se caracteriza pelo que a sociedade acaba rotulando como uma doença, a
qual dá o nome de "Depressão". No nosso atual modo de ver — o qual você poderá achar um tanto estranho —, a depressão não tem cura: a depressão é a cura de nosso estado de
inversão.
O
deserto inicial estaria na perda do antigo estado de ser, o qual era por nós visto como "normalidade".
Nesse
estado de depressão, o qual prefiro dar o nome de “crise iniciática”, nos vemos
num deserto de uma explicação que nos seja satisfatória para aquilo pelo qual
estamos sendo acometidos.
Corremos
em vários locais, mas, em nenhum deles, encontramos uma palavra que realmente
toque fundo e nos dê um senso de direção diante da enorme confusão
aterrorizante na qual nos vemos inseridos.
Aliás,
para muitos de nós, cada local que procurávamos para a compreensão daquilo que
estávamos vivendo, ampliava ainda mais a nossa imensa sede de respostas; se
mostravam como miragens do deserto existencial.
Então,
para nosso assombro, conforme vamos nos deparando com materiais que esclarecem a triste realidade na qual estamos inseridos, esse deserto vai se ampliando cada vez mais.
Surge
o deserto da compreensão parental; ninguém compreende aquilo que estamos
atravessando e, não raro, estes nos trazem suas sugestões que apontam não para o encontro
de nós mesmos, mas sim, para um modo de ajustamento ao conhecido insatisfatório.
O
mesmo deserto acaba ocorrendo com nossa rede de contatos sociais e
relacionamentos, aparentemente mais íntimos (com o caminhar no deserto,
descobrimos que não sabemos nada a respeito da verdadeira intimidade).
Esse
deserto se amplia no que diz respeito as nossas atividades rotineiras: profissão
e Hobbies que antes nos deixavam eufóricos, passam a se mostrar vazios de
qualquer sentido e significado, o que, não raro, acaba se mostrando um
grande fator de conflito em relação aqueles com quem estamos comprometidos
nesses Hobbies e profissões.
Também
ocorre para muitos de nós, a tomada de consciência de como estamos
espiritualmente estéreis e, mesmo para aqueles que, por causa da influência de
seu lar de origem, frequentavam um determinado sistema de crença, o mesmo passa
a se mostrar totalmente incapaz de nutrir nossa sede de respostas. Nos vemos
vazios daquilo que todos chamam de Deus.
Então,
para nossa sorte, em alguma escola iniciática, nos deparamos com nossa “nova
família”, aquela que realmente compreende aquilo pelo qual nos vemos inseridos
até o pescoço. Com
ela começamos a aprender um novo idioma, começamos a ter nosso "bê-á-bá psíquico" (o qual, providencialmente, vai ampliar ainda mais o nosso já enorme deserto
existencial).
Então,
uma vez despertos, a consciência começa a nos apresentar o falso que temos que
deixar pela estrada, o que nos remete a um estado de muita ansiedade, pânico,
culpa, ressentimento e incertezas.
Começamos
a perceber que muito do nosso investimento foi feito para dar sustentação a uma
imagem totalmente irreal de nós mesmos. Nos olhamos no espelho e em nosso guarda
roupa, bem como em nossa garagem, nossos hábitos alimentares, e não mais nos
encontramos ali... Percebemos
que, até então, sempre fomos uma cópia de segunda mão; aqui, muitos de nós
mudamos completamente nosso estilo de se vestir, nossos cortes de cabelo,
carros e costumes, o que também acaba gerando muito conflito com aqueles com
quem de algum modo ainda estamos envolvidos (muitas dessas relações poderão
ficar no passado).
Nossos
parentes e amigos, quase sempre chegam com frases do tipo: “O que está
acontecendo com você? Não vê que esse lugar e essas pessoas com quem você está
se relacionando, estão lhe fazendo uma verdadeira lavagem cerebral?” Eles não
conseguem aceitar que as pessoas mudam. Eles passam também a hostilizar nossos
novos interesses, como nossas leituras, novas preferências musicais, novos
amigos, passeios e atividades. Passam a
ter um indisfarçável ciúme agressivo diante de tudo e todos que lhes são
desconhecidos.
Apesar
do enorme medo do desconhecido, assim como o imenso medo de perder o resto de
nossa capacidade de lidar com a distorcida realidade, começamos a perceber a
necessidade de abrir mão de vez, e em outros casos, de apenas
minimizar o contato com esses ambientes e pessoas que não nos apoiam em nossas
novas necessidades mais intrínsecas, o que por sua vez, aumenta ainda mais a
nossa sensação de deserto existencial.
A
dúvida no que diz respeito se estamos ou não fazendo a coisa certa, nos
acompanha a cada passo do processo e, não raro, nos vemos em recaídas
comportamentais que acabam sendo providenciais no que diz respeito à
confirmação de que temos que “seguir viagem”. Passam a calar fundo em nosso
ser, as palavras cantadas pelo poeta: “Amigos
a gente encontra; o mundo não é só aqui; repare naquela estrada, que distância
nos levará. As coisas que eu tenho aqui, na certa terei por lá; segredos de um
caminhão, fronteiras por desvendar. Não diga que eu me perdi, não mande me procurar,
cidades que eu nunca vi, são casas de braços a me agasalhar”.
Conforme
vamos avançando, entramos em contato com atividades, manias e tendências
que alimentam nosso doentio estado de ser e que, dessa forma, impedem o avanço
no processo do estado de contato consciente com a realidade que somos. Torna-se
clara a necessidade de abrir mão desses comportamentos, os quais durante muito
tempo se fizeram de profunda importância para a nossa estabilidade psíquica, e,
como resultado, nos vemos jogados no que é conhecido por “síndrome de
abstinência”, com seus terríveis sintomas físicos e emocionais, o que se mostra
como mais uma enorme duna no deserto do ser que somos.
A
primeira fase de deserto se faz compulsória, ou seja, uma imposição natural do
próprio processo de crise iniciática; mais adiante, com o maturar de nossa
percepção e com a prontificação exercida pelo enorme trabalho de base emocional,
chegamos num determinado momento da caminhada, em que nos vemos diante de uma
bifurcação: ou nos conformamos ao nível psíquico da consciência coletiva dessas
escolas iniciáticas — a quem somos imensamente gratos — ou nos aventuramos de
modo totalmente solitário, no deserto do real. Raros são aqueles que conseguem
dar esse significativo e tão necessário passo no processo da retomada da
consciência que somos. É aqui que serão lançadas as bases de nossa real
integridade, de nossa autonomia psíquica.
Não raro, aqueles que, nessas
escolas, nos receberam de braços abertos, do mesmo modo que em nossa família original,
passam a hostilizar também nossa nova observação de mundo, nossos novos
interesses, nossas novas leituras, nossas novas atividades e, nossa atual
necessidade de retiro e solidão. Do mesmo modo que no início do processo, a
dúvida ronda sobre nosso espírito, além do doloroso sentimento de que possamos
estar sendo ingratos com aqueles que, num momento tão delicado de nossa
existência, foram os únicos capazes de nos estender as mãos, de forma realmente
significativa. É um momento realmente muito delicado em nossa caminhada rumo ao
encontro consigo mesmo. Mas, se tivermos realmente atingido o estado de
prontificação — apontado por essas escolas —, não nos sobrará nenhuma opção a
não ser, novamente, optar por “levar adiante” o processo de compreensão do
sentido de nossa existência.
Com o avanço de nossa decisão de novamente “seguir
viagem”, começamos a perceber lucro, onde até então, devido a nossa enorme
dependência emocional dessas escolas, só conseguíamos ver por prejuízo. Aqui,
novos mestres, novas escolas se apresentam para nos trazer novas percepções bem
mais sutis quanto ao processo de funcionamento de nosso mental e emocional.
Se,
no início, já era enormemente difícil encontrar por ouvidos capazes de
compreender nossa percepção de mundo, aqui se torna mais difícil ainda. É
realmente a trilha menos percorrida, a jornada solitária do herói. Mas, com a
continuidade da caminhada, vamos percebendo que isso é algo muito, mas muito
providencial. É um modo de fazer com que soframos o mínimo de influências
externas em nossa maneira de aprender a observar, tanto a nós mesmos, como a
tudo com que entramos em relação. É aqui que vamos nos dedicando cada vez mais
a ficarmos firmes nessa nova etapa do deserto, e, sentir de maneira
substancial, a necessidade de encontrar “dentro de nós”, a palavra, o sopro
que nos confirme cada passo de nosso caminhar.
Aqui, cada vez mais se apresenta
a necessidade de "retiro e solidão", o que também é visto como uma atitude
doentia, até mesmo pelos nossos mais recentes contatos, provenientes de nossa
busca espiritual. Nossas novas percepções, não se mostram compreendidas pelos
atuais companheiros de jornada e, mais uma vez, somos lançados no deserto do
real, o que amplia cada vez mais a necessidade de encontrar algo de valor
Infinito, realmente substancial, em nós mesmos. Nesta etapa da jornada, livres de qualquer preconceito ou
ranço religioso — tão importante para a travessia desse momento —,
começamos a entender os dizeres contidos em vários sistemas de crença que
apontam para a necessidade da escuta de uma “voz no deserto”, a qual muitos se
referem como sendo a voz da verdade, a voz de Deus.
Neste
momento de nossa caminhada, dá-se uma enorme necessidade da prática da
meditação e da oração, sendo que, por oração, não mais compreendemos como sendo
aqueles antigos cacoetes orais petitórios, para determinados pontos de
interesse autocentrado. Aqui, o que vemos por oração, é um estado de silenciosa escuta
atenta, onde a única coisa que se espera é o conhecimento de nossa real
vocação, ou em outras palavras, “da voz do coração”, pela qual possa nos ser apresentado os passos e
ações que deem um real sentido e significado a todo o processo, bem como à nossa
existência.
Este também é um momento em que nossa sanidade, em que nossa
seriedade entra em questão; a mente nos bombardeia com ideias de que de nada
valeu a pena, de que a jornada foi toda em vão. Antes, quando essas dúvidas
surgiam em nossa mente, sempre estávamos rodeados de outros caminhantes, os
quais acabavam por confirmar e incentivar nosso avanço no processo. Aqui, nosso
momento se faz muito semelhante com aquele que é narrado nos textos bíblicos,
referentes ao total sentimento de solidão e abandono vivenciado por Jesus, no
Getsêmani. As enormes dunas do deserto sensorial, emocional e mental já ficaram
para trás; não há a mínima possibilidade de retorno, afinal, quem em sã
consciência se entregaria a repetir tudo de novo? Aqui, apesar de termos
aprendido a como lidar com suas tempestades de areias psíquicas, ainda não
encontramos um local, dentro de nós, que se apresente como um abrigo seguro. Sabemos
que a resposta, de modo algum será encontrada no externo, mas, no entanto,
ainda não a encontramos de maneira significativa, dentro de nós. Talvez esse,
seja o momento de maior deserto em nossa caminhada, momento este que pode ser
traduzido pela essência da expressão cunhada por João da Cruz em seu poema
intitulado “A noite escura da alma”,
ou então, nos dizeres de Agostinho: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso
coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”. Aqui, como nos demais momentos do processo, a única
opção que nos resta é a de caminhar, com a certeza de que, “muito mais nos será
revelado”.
Outsider
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