Este blog não foi criado para quem já fechou as persianas de sua mente e cuidadosamente as fixou para que nenhum filete de luz de novas idéias penetre e perturbe sua sonolenta e estagnante zona de conforto. Este blog é para os poucos que querem entrar na terra firme da experiência direta por não verem outro caminho mais seguro a tomar.

26 julho 2007

As flores de plástico não morrem

Já fazia mais de um mês que Celsão não dava o ar de sua graça. Mesmo com a fraca chuva da manhã, como sempre, com sua bicicleta, de mochilas e o velho blusão de lã verde, aqui estava ele com sua simplicidade. Pelo seu olhar carrancudo e pelo tom de sua fala ao me cumprimentar, pude perceber que ele não estava bem e que algo desagradável havia lhe ocorrido.

- Fala Celsão! Ainda bem que "quem está vivo sempre aparece!"

- Não sei não, Jr! Desculpe-me pela franqueza, mas, acho que esse seu dizer não está muito coerente com o que vejo...Para mim, quem "realmente" está vivo "nunca aparece"... Só os "mortos" tem essa necessidade doentia de aparecer. Essa imatura necessidade de estrelato é só para aqueles que já apagaram a chama interna que produz o brilho do próprio olhar: quem está vivo é um anônimo.

- Interessante!

- Você pode constatar isso com seus próprios olhos: a sociedade só enxerga o que é ilusório; eles não têm olhos para o Real. Eles estão em busca, tão somente, do que é temporal e não daquilo que é atemporal.

- Nesse ponto, estou 100% com você!

- Se você estiver correndo, como todo mundo, atrás do que é ilusório, do que é temporal, então, eles têm olhos para você. Você corre o risco de ser rotulado como um "homem de sucesso", alguém que está "se dando bem na vida"... Você passa a ser visto porque, de certo modo, você também está explorando os outros, assim como igualmente está sendo explorado. Agora, se você estiver seriamente engajado num processo de "auto-exploração", de auto-conhecimento, e por meio desse autoconhecimento deixando de explorar e de também ser explorado, então, você não aparece. Além de não aparecer, passa a ser logo rotulado com vários nomes, tais como: vagabundo, preguiçoso, problemático, neurótico, alguém que não leva nada a sério, e assim por diante... Meu irmão, quer saber de uma coisa?

- Diga!

- Já estou com o saco cheio disso! Já não agüento mais as cobranças dos meus familiares e de alguns conhecidos!

- Por quê? O que mais está pegando?

- Grana! Neste planetinha, o que mais é grana!... Parece que aquilo que realmente mantém uma família "unida" é a tal da grana...

- Será que você não está sendo severo demais?

- Que nada!... Se você têm grana, se você colabora com a enorme soma de superficialidade, com aquele monte de supérfluas necessidades desnecessárias, então, tudo bem! Você é um membro querido da sua família. Caso contrário, você já não é mais querido, passa a ser um peso, um estorvo para a sua família. Então me questiono: Quem realmente é o querido? Eu ou o dinheiro que coloco em casa?... Quem é que tem mais valor? Eu ou aquele montinho de papel impresso numa gráfica qualquer com o patético nome de "Gráfica do Tesouro Nacional"?... O dinheiro fala? Quem tem mais poder de falar, eu ou o dinheiro?

- Caracas!

- Quem estaria ficando louco?... Eu por não sentir a necessidade de correr atrás desses valores que para mim pouco valor tem, ou eles, por se submeterem a verdadeiras loucuras para conseguir garantir os mesmos?... Cara, estou puto de raiva!

- E qual o problema de se estar com muita raiva? Por acaso, negar os seus sentimentos ou os seus instintos básicos tornaria você mais humano?

- Claro que não! Estamos carecas de saber isso! Creio que ao contrário: somente observado os mesmos sem a menor sombra de julgamento, racionalização ou justificação é que pode me devolver a qualidade por muitos negligenciada de ser humano. Vejo que é justamente em razão de se perseguir esses ditos "valores" destituídos de real valor, é que muitos descartam o que há de maior valor em si mesmos: sua humanidade, ainda que adoentada.

- Não é preciso ser filósofo ou um grande pensador para ver a realidade do fato que você está me falando. Abra um jornal ou ligue um aparelho de Teleilusão e você terá uma seqüência interminável de fatos do cotidiano de diuturnamente abalam cada vez mais a humanidade da dita humanidade.

- Pois é, cara! Agora eu lhe pergunto: você consegue ver algo de humano na carga horária de trabalho, para muitos de 8 a 10 horas, convencionalmente aceito por todos, em troca de uma verdadeira ninharia? Está correto dedicar mais da metade do seu dia em troca de algo que mais se parece com esmolas? Acha que existe algo de humano em ficar brigando por um lugar na condução, enfrentar em média 3 horas na mesma entre ir e voltar do seu local de trabalho? É humano tamanho trabalho por um trabalho? Você acha que existe algo de humano na atual situação do transporte público? Os caras agora estão fazendo um baita barulho por causa do transporte aéreo, que é um privilégio de uma pequena fatia populacional, no entanto, não existe o mesmo barulho com relação ao transporte urbano, ao transporte da massa, do povão... Você já pegou o Metrô na Estação Sé, sentido Zona Leste por volta das 18:00 horas?... O que existe de humano ali? Estamos sendo tratados como animais de abate em direção ao abatedouro... Existe uma espécie de curral que impede que um "animal" passe por cima do outro animal... Qual a diferença existente entre um abatedouro e a estação Sé do Metrô? Para mim, nenhuma!

- Para mim, já há uma grande diferença!

- Qual?

- Um abatedouro é muito mais humano!

- Como assim?

- Um abatedouro leva à morte em poucos minutos e com uma ou duas pauladas na cabeça. Já esse sistema capitalista, bate diariamente em nossa cabeça com o martelo do consumismo, com o qual nos vai "abatendo com dor" homeopaticamente.

- Sim, sim, você está com toda razão! Eles vão tirando o sangue da população, lentamente, sem que eles consigam ter consciência desse macabro processo. Para que o gado humano não perceba os gritos de abate de algum boi, eles inventaram o aparelhinho de MP3. O gado diariamente, a caminho do local de trabalho, enfia os fones nos ouvidos e "áudio se transporta" dessa realidade desumana. É preciso muita música externa para abafar o barulho do silêncio provocado pelo vazio interior. Ninguém quer ouvir nada! O pior de tudo, é que o gado lá de casa não se conforma por eu querer me "desgarrar" da manada que só dá lucro para o dono da fazenda... Você sabe o que quer dizer a palavra "fazenda"?... Conjunto de bens, haveres, grande propriedade rural, de lavoura ou criação de gado, recursos financeiros do poder público... Que poder público é esse em que o público não tem poder?... O gado lá de casa quer que eu seja mais um "executivo" executando a lei de consumo, sem a menor dó ou simples reflexão.

- Em outras palavras, eles querem que você se "vende" e "venda" a sua integridade, a sua humanidade.

- Sim, para eles, isso não tem valor algum, afinal de contas, isso não paga contas! Cara, está tudo invertido! Os caras trocaram o Real pelo ilusório!

- Você sabe por que meu amigo?

- Diga!

- Gostaria de lhe responder com mais propriedade, no entanto, o Sr. Yugi está chegando e eu preciso falar com ele agora. Faz o seguinte, vai para casa pensando nesta resposta: "Por que eles pensam que as flores de plástico não morrem!"

- Como assim?

- Vê se dá para você passar amanhã à tardinha para um café, assim podemos falar mais sobre isso! Enquanto isso, continue viajando nas estradas da vida, tocando sempre o seu "berrante", não para tocar a boiada, mas quem sabe, para provocar um verdadeiro estouro! Quem sabe assim, o dono da fazenda um dia caia do cavalo e repense em como tratar melhor o gado colocado aos seus cuidados. Vai nessa! Cuida-se! Transmita um efusivo abraço financeiro em sua família!

23 julho 2007

A Ganância Tecnológica e seu olhar plasmático

- Olá garoto!

- Bom dia senhor! Como foi de final de semana?

- Um pouco gripado, mas agora melhor! Li seus textos desta semana.

- O que viu neles?

- Continuo achando que você precisa ver um pouco mais “o lado colorido das coisas”. Acho que é por isso que algumas pessoas enviam seus comentários lhe chamando de depressivo e pessimista. Acho que também é preciso contemplar o belo!

- Não discordo disso! No entanto, como contemplar o belo se a “normose”, essa patologia da normalidade operante impede a clareza de visão? Creio que o papel deste blogador é apontar para aquilo que obscurece o belo. O senhor que já convive comigo há um bom tempo, acredita mesmo que eu seja um maníaco-depressivo, um rebelde marxista ou um pessimista? Por favor, seja sincero!...

- Claro que não! Mas continuo achando que você precisa também colocar nos seus textos a arte de contemplar o belo.

- Desculpe-me, mas creio que em nenhum dos meus textos deixei de fazer isso. Ao contrário, neles expresso sempre tanto a beleza do cotidiano bem como as manifestações da normose.

- Sabe JR, o que tem me ajudado muito é procurar ver sempre o melhor das coisas... Veja por exemplo, a beleza do avanço da criatividade tecnológica... Você não tem visto as máquinas maravilhosas que o homem vem produzindo? Tenho gravado uma reportagem de uma série que está passando na TV a cabo, sobre o avanço tecnológico dos automóveis. Tenho achado fantástico! Assim que acabar a série, faço questão de gravá-la num DVD para que você possa assisti-la. Outra coisa que tem me chamado bastante atenção são esses novos aparelhos de TV.

- Quais? As LCD?

- Não, as de plasma! Quando me deparo com uma fico abobado com a sua nitidez. Parece que você está de fato diante da realidade!

- Sei!... Estive neste final de semana na megaloja em Pinheiros. Gosto de ir lá por que, além dela, ao seu lado, há vários sebos com vários livros esgotados. Nessa loja, os livros ficam no último andar do prédio. O piso térreo está forrado com o material de telefonia, games e informática. Depois você é forçado a passar pela sessão de imagem e som, e, por último os livros. Até a disposição das escadas rolantes foram projetadas para que você circule o máximo possível dentro da loja. Parece mesmo que neste país, até nas lojas os livros são deixados em último plano. Isso é fácil de constatar, basta você observar o ínfimo número de livrarias que se encontram por aí. Mas não é sobre isso que quero comentar. Quero falar do absurdo que vi nessa loja, no setor de TV: um aparelho de plasma no valor de R$38.000,00... Vi ali um grande contraste entre a realidade dos que se dão ao direito da luxuria burguêsa e dos meninos mal vestidos que mendigavam por um trocado para tomarem conta do meu carro na entrada da loja. Será possível para uma mente saudável se conformar com esse tipo de desequilíbrio social? Ou será que devo também fazer uso daquela esfarrapada desculpa usada pela classe burguesa que diz que eles fizeram por onde para poderem usufruir desses bens de consumo, enquanto que a grande maioria não quer saber de responsabilidades... Já estou quase careca de ouvir esses chavões egocêntricos, típico “Pôncio Pilatos”.

- Eu procuro sempre ajudar quando posso, mas nunca, dando dinheiro na mão desses meninos. Quase sempre estão ali sendo descaradamente explorados por algum adulto!

- Sei!... De certo modo, creio que todos nós estamos também sendo explorados por algum adulto... Existem várias formas de se explorar o ser humano... Algumas são mais notórias! Creio que a ganância tecnológica é uma delas. Veja só o que o homem está fazendo com o planeta e com ele mesmo em nome desse inconsciente avanço tecnológico... Creio que seria muito interessante o senhor assistir um filme que já circula pela internet, intitulado “Surplus”, em outras palavras, supérfluo. Quem sabe ficaria mais fácil de entender a minha visão.

Nesse instante, enquanto ele ponderava sobre o que eu havia acabado de expressar, fomos interrompidos pelo carteiro que me trazia alguns documentos que requeriam a minha atenção e assinatura. Como estávamos próximos do horário do almoço, meu interlocutor aproveitou-se do momento para se despedir e partir para seu almoço. Depois de despachar o carteiro e, novamente solitário em minha loja, coloquei-me a meditar sobre o que acabáramos de conversar.

Estaria a tecnologia realmente sendo usada para a criação de respostas para as reais necessidades sociais?

Ou, muito ao contrário, estaria a serviço do consumismo elitista?

Qual o limiar entre o supérfluo e o essencial?

A tecnologia tem realmente criado maquininhas fantásticas, levado o homem a distâncias astronômicas e, no entanto, parece se distanciar cada vez mais, talvez anos luz, da preocupação com o que parece ser realmente essencial para o bem-estar social.

O que se vê não seria uma tecnologia voltada para a concentração de capital, que vem a cada dia que passa gerando incontáveis problemas de todas as ordens, os quais o próprio capital não tem sido capaz de solucionar?

O que de fato atravanca a solução dos problemas básicos para o bem-estar social?

A falta de capital?

A falta de tecnologia?

Ou o “auto-interesse”?

Como manter a cabeça nas nuvens cor-de-rosa do avanço tecnológico e os pés na terra preta e fértil das reais necessidades sociais?

Só por hoje, o que me parece é que, para a classe burguesa, acompanhar o avanço tecnológico é muito mais sedutor do que a busca de respostas para a conquista de um equilíbrio social. Para isso, ela já conta com uma forte tecnologia de desculpas e algumas delas são: “não se pode ficar preso somente no lado escuro das coisas”, ou então, “o mundo não é perfeito e nunca será; não existe a menor chance de acabarmos com todas as coisas que nos incomodam, então de que adianta reclamar de tudo?”... Para muitos dos que fazem uso destes tipos de resposta, acham mesmo que é preciso olhar “plasmaticamente” para as coisas boas e simples da vida, menos para a vida simples daqueles pelos quais não queremos lançar o nosso olhar plasmado.

Infelizmente, as cores quentes de uma TV de plasma são muito mais sedutoras do que a frieza das cores da vida real.

Reflexões de uma segunda de chuva

Segunda-feira com chuva. Estou começando mais um dia, sendo logo cedo agraciado com a beleza de um milagre: uma pequenina e solitária pitanga amarelinha, envolta em gotículas d'água da chuva. Seu tom amarelado faz um belo contraste com as verdes folhas da pequenina árvore... Esse não é o mesmo verde e amarelo do agitado movimento nacionalista presente nos jogos Pan-Americanos. É um verde e amarelo de um inteligente e harmônico equilíbrio. Apesar da chuva fraca, a temperatura encontra-se agradável.

Há bastante lixo esparramado pelas calçadas e poucos são os pedestres que transitam pelas mesmas. O trânsito local, até agora, apresenta-se bastante reduzido para uma segunda-feira.

Enquanto, na padaria local, saboreava um copo de café com leite, silenciosamente eu observava a empolgação que movia a conversa em alto tom entre três senhores, distribuídos ao longo do balcão. O assunto: futebol. Cada um deles falava de peito aberto, as certeiras estratégias que deveriam ser tomadas por seus respectivos times de adoração, para que os mesmos pudessem obter os resultados por eles apresentados. Apontavam com minuciosos detalhes as falhas de cada um, desde o técnico, jogadores, comissão técnica, diretoria, presidência e até mesmo, as coligações com os patrocinadores. Eles diziam saber o melhor para os seus times e o expressavam sem a menor hesitação. Um deles, enquanto falava, corria seu olhar por toda extensão do balcão, certificando-se de que os outros clientes estivessem de acordo com as suas considerações.

Já no último gole do meu café, ocorreu-me o seguinte pensamento:

Será possível, algum dia, os homens falarem abertamente, com o mesmo entusiasmo e empolgação a respeito de seus conflitos, suas angústias, seus medos de não terem a realização de seus desejos infantis e sobre suas dúvidas e inseguranças?

Será que algum dia o homem versará livremente sobre suas próprias falhas, desatinos e corrupções?

É preciso ter em mente que corrupção é muito mais do que passar dinheiro por debaixo da mesa. Corrupção é esse movimento insano que nega a interioridade em nome da exterioridade. É a negação da realidade de si mesmo em conformidade com a falsidade da influência de terceiros. É tudo aquilo a que conscientemente nos sujeitamos e que contraria o bom-censo do ser que nos faz ser. É toda atividade que contribui para o intrincado processo que nos afasta da essencial descoberta do motivo pelo qual estamos no aqui e agora.

Do outro lado da rua, um senhor por volta da terceira-idade, de boné na cabeça, barba mal-feita e uma surrada capa de chuva, anonimamente revirava os sacos de lixo em busca de papelão e latinhas de alumínio.

21 julho 2007

Crise, oportunidade de crescimento

- Bom dia JR!

- Bom dia senhora!

- Lembra-se daqueles cd's com as aulas do curso do Gasparetto que eu havia lhe encomendado no inicio deste mês?

- Sim, o que tem?

- Meu filho entrou no site que você havia me recomendado e os encontrou lá. Achei um pouco caro, pois custam em média R$36,00. É possível comprar pelo site. Obrigado pela dica.

- Ora, senhora, não por isso.

- Tenho aprendido muito com o Gasparetto. Assisto ele todos os dias pela televisão. Não perco um só programa se quer. Para mim é um horário sagrado. Acho ele demais, simplesmente fantástico. Ele tem uma sabedoria incomum.

- Sei!...

- Sempre gostei de fazer terapia, mas tive que parar por que não estava mais encontrando liga entre eu e a psicóloga. Para ser franca, tinhas vezes em que eu sentia como se os nossos papéis estivessem invertidos... Era como se ela fosse a paciente e eu a psicóloga. Era como se ela estivesse fazendo sua própria terapia através da minha história pessoal.

- Quem sabe!... Mas fico feliz por você estar se encontrando através das falas e chavões psicológicos repetidos pelo Gasparetto. Acho que ele é um grande sintetizador de falas, além de possuir o poder da oratória envolvente. Só não sei se ele realmente vivencia em si mesmo tudo aquilo que ele fala, se bem que isso não vem ao caso. Há um dito de um sábio oriental que diz para beber o chá e não se preocupar com as possíveis sujeiras contidas no copo. Se o chá está lhe fazendo bem, então desfrute-o. Só faço votos para que você consiga se libertar o mais breve possível dessa seta que ele representa em seu processo de unicidade interna. Deixe essa seta o mais breve possível antes que ela vire um condicionamento que lhe impeça de chegar ao local para onde ela aponta. Só é possível chegar ao centro de você mesma sem a interferência do mapa de terceiros, uma vez que o seu caminho é único.

- Tenho uma leve consciência disso! Fique tranqüilo. Como hoje não tenho como fazer terapia, procuro fazer dos programas dele o meu horário de terapia particular.

- Você alguma vez experimentou a terapia gratuita dos grupos anônimos de auto-ajuda?

- Não é pelo fator financeiro que não estou podendo fazer terapia... É por causa do meu marido: ele é extremamente ciumento. É uma doença só. Tenho que fazer quase tudo as escondidas. Até da missa de domingo ele tem ciúmes.

- Isso deve causar uma ansiedade e tanto!

- Nem me fale!

- Você gosta de ler?

- Sim!

- Está aberta para sugestões literárias? Conheço algumas "sopas de letrinhas" que talvez possam lhe ser nutritivas...

- Diga lá!

- Sugiro que você leia um livro chamado "codependencia nunca mais". Há outro que aborda a mesma questão, intitulado "Juntos, porém, livres! – Amor sem dependência" São ótimos livros que apontam os nossos mecanismos de participação num relacionamento fechado. Mostram como muitas vezes somos os grandes mantenedores da doença do relacionamento. Por vezes, para evitar que uma crise se estabeleça, acabamos por anular nossa expressão de ação. É importante não criar uma crise desnecessária, mas talvez seja muito mais importante não impedir que uma abençoada crise se estabeleça. A palavra crise, em grego, "Krísis, Kríneim", tem como significados: julgar, examinar, selecionar. A crise é uma verdadeira benção quando é aceita e examinada com boa vontade a mensagem nela contida. Há também um ótimo livro do escritor e teólogo Leonardo Boff, intitulado "Crise: oportunidade de crescimento".

- Sei muito bem o que são as crises... Perdi minha família toda no espaço de quatro anos. Só eu sei o que passei com essas perdas, só eu sei como foi difícil sair do luto e ir a luta.

- Tenho em mente mais um livro para lhe indicar, mas receio que você me leve a mal por causa do seu título...

- Jr! Faça-me o favor... Desembucha...

- "Perdas Necessárias"...

- O título é bem forte mesmo e parece já dizer tudo...

- Não se apegue ao título; ouse conhecer seu conteúdo!

- Obrigado pelas indicações. Bem, agora eu preciso ir embora, pois ainda tenho que passar no mercado e fazer umas comprinhas básicas. Se eu demorar muito é capaz de ele vir atrás de mim, ou então, tenho que passar um final de semana inteiro vendo cara feira e neguinho "pensando alto". Você não faz idéia do quanto que isso é sufocante!

- Ok! Vá em paz e tenha um ótimo final de semana!

- Obrigado e igualmente. Por favor, transmita meu abraço para a senhora sua mãe.

- Será dado!

Por que as pessoas se permitem viver entre as grades frias de um relacionamento fechado?

Por que se mantém em relacionamentos disfuncionais e sem nutrição?

Por que não enterram os relacionamentos com prazo de validade vencido?

Por que permanecem em relacionamentos que não lhes incentivam na busca da "excelência do ser"?

Pode haver uma verdadeira relação onde existe apego, ciúme e controle? Isto é amor?

Pode uma pessoa que se permite ser vitimizada por comportamentos de controle por parte de terceiros, ter amor por si mesma? Sem amor a si mesmo, como ser possível expressar amor pelo outro? Sem o mínimo de amor por si mesmo é possível fazer escolhas sensatas para a própria vida?

E pode-se chamar de vida uma existência de conformismo a este tipo de "prisão" a qual muitos erroneamente chamam de relação?

Talvez, a fala de um grande amigo meu possa servir de resposta para alguma destas questões:

"É melhor um pouquinho de merda, do que merda nenhuma; afinal de contas, dessa merda, o cheiro já nos é conhecido"...


 


 

18 julho 2007

A culpa e a energia desconhecida

Ele chegou com sua velha boina de lã, azul-marinho, com seu guarda-chuva a tira colo e o simpático sorriso de sempre no rosto. A quase um mês e meio que estava sem me brindar com a sua visita e sua boa prosa. Por volta dos 75 anos, aposentado e com os filhos já formados e morando no exterior, senhor Elton, dedica boa parte do seu tempo entre pesquisas literárias, viagens para o seu pequeno terreno em Ubatuba e conversas nutritivas ao pé do balcão.

- Ora, ora! Que bons ventos lhe trazem aqui, senhor Elton?

- Vim até aqui por que já estava com saudade e por que ainda tenho muitas arestas que precisam ser lapidadas e que estão atrapalhando minha vida. É por isso que venho aqui. Nossas conversas sempre me lapidam um pouco!

- A mim também, pode ter certeza! Então, você é como um diamante bruto que precisa ser lapidado?

- O pior é que, para a minha idade, acho que está bruto demais!

- Está difícil acabar com os condicionamentos?

- Bota difícil nisso meu amiguinho! Quisera eu ter descoberto tudo isso com a sua idade! Teria evitado um grande inferno em minha vida. E, o pior de tudo, é que eu só tenho dois livros do K, mas tudo que está lá, realmente faz muito sentido. É pura verdade! Sabe que por várias vezes tentei sair fora, negar aquilo que ele escreve ali; bate aquela resistência, mas não tem jeito: mais cedo ou mais tarde cai a ficha de que aquilo é verdade. A vontade é optar pelo escapismo, mas, uma vez aberta as portas da consciência, torna-se impossível fechá-las novamente.

- Isso é um fato!

- Se tentar escapar, o resultado é sofrimento e choro na certa! É fogo! Existem dois tipos de choro: os de alegria e os de sofrimento! Quando você se emociona e chora por causa de uma coisa boa, isso é muito bom. No entanto, o choro por causa da tristeza e da dor é realmente muito duro!

- O choro da depressão não é melzinho na chupeta não! Esse é terrível!

- Dói demais!

- Mas se o senhor parar para pensar, essa dor da depressão é uma verdadeira benção... Dizem que muitos dos seres humanos funcionam como um fusquinha 64: só pegam no tranco. E quer tranco melhor do que uma apurada depressão?

- Sem dúvida! Tem muita gente que se não levar um tranco desses não sai da insignificância do script global. Ficam na mesmice, ou como você mesmo diz, na conformose, na doença do conformismo e da zona de conforto. Não sei não se eu mesmo não sofro dessa doença.

- O pior é que enquanto a pessoa não se conscientiza dessa doença, quanta energia e dinheiro desperdiça com a mesma!

- É verdade! Isso me fez lembrar que uma certa vez eu chamei um rapaz que mora em frente de casa – ele é pedreiro – eu o chamei para fazer uns concertos em casa. Você sabe como é, numa casa sempre há alguma coisa para se fazer. Aí, não sei como é que foi a conversa que eu comentei que não tinha o dinheiro suficiente para pagar aquilo que ele estava me cobrando pelo serviço. Disse-lhe que meu dinheiro não dava para cobrir o orçamento por ele dado. E ele, sorrindo me respondeu: "Que é isso seu Elton... Dinheiro na sua mão é igual a coceira em cachorro: não acaba nunca!"

- É uma verdade mesmo, parece que coceira em cachorro não acaba nunca!

- E de resto? Quais as novidades que o senhor me conta?

- Ah!... A gente vai vivendo, né? Vai lendo um pouquinho aqui, um pouquinho ali, mas sempre o menos do que nos é necessário! Sempre menos do que devia!

- E o livro que o senhor é, o senhor está lendo?

- O que?

- O livro que o senhor é... Está lendo?

- Xi! Nem me fale! Esse, pouquíssimo! Eta livrinho chato! Daqui a pouco estou chegando ao seu final e ainda não li nada de interessante!

- Pois é! Mas se o senhor não se atrever a ler com propriedade o livro que o senhor é, nunca será capaz de ter um encontro ao vivo e a cores com o seu autor!

- Tem razão! Rapaz, ando muito relaxado! Houve um tempo em minha vida, que levou longos anos, em que me habituei na pratica da meditação. Nesse período, eu acordava sempre de madrugada para praticar a meditação. Sabe por que?

- Não faço idéia!

- Porque de madrugada é o horário de maior silêncio... É o melhor horário para você meditar!

- Por quer o senhor acha isso?

- Por que a noite sempre tem alguém acordado e de dia, o excesso de barulho atrapalha. Durante o dia, os constantes convites para a solução dos problemas sempre nos chamam... Então, a madrugada é sempre o ideal para a prática da meditação. E já faz um bom tempo que eu ando com uma má disposição para acordar e praticar a meditação; principalmente neste frio.

- Então, o senhor está querendo me dizer que não está querendo "acordar"...

- Isso mesmo! Não estou querendo acordar, quero ficar dormindo, tanto na cama como na vida também!

Risos...

- Não quero sair do conforto do meu sono... Engraçado! Uma das coisas que está escrito nas entrelinhas dos textos do K, é que quando não estamos cansados a energia é muito grande.

- De fato!

- Eu não sei se você está acompanhando como eu, as competições dos jogos do Pan...

- Muito pouco senhor Elton!

- Rapaz! É incrível a energia que o ser humano tem! É incrível o que um ser humano consegue fazer quando sabe fazer bom uso da sua energia natural. É incrível o poder da energia que o ser humano possui e que, no entanto, desconhece.

- De que jeito? O ser humano vive diariamente queimando energia desnecessária com o processo dos seus pensamentos acelerados.

- Sem dúvida alguma, como diz o K, é a própria mente que fica roubando toda a energia! Outro dia vi uma reportagem na televisão sobre dois, assim chamados "super-atletas". Não sei se você teve a oportunidade de ver. Eles vão participar de uma maratona de 40 quilômetros e durante a entrevista, um deles disse que parte do treino é correr uma média diária de 70 quilômetros. Já pensou que coisa incrível? Logo depois deles, teve um comentário de um médico que afirmou que estes super-atletas são grandes candidatos a um AVC, um enfarto, um problema cardíaco. E perguntaram para um dos atletas se ele não se preocupava com isso e ele respondeu que não se preocupava, pois não sentia nenhum tipo de cansaço. Percebe quanta energia tem o ser humano?

- Sem dúvida!

- Sabe meu amigo, o que realmente nos cansa, o que nos rouba muita energia são os nossos problemas emocionais, a depressão, a culpa, essas coisas todas que nos acometem no dia a dia.

- Então? Mas para o senhor, qual é a natureza exata desse desgaste de energia? De onde surge a culpa?

- Boa pergunta? Gostaria que você me respondesse?

- Através de qual instrumento do seu corpo que você a percebe se manifestando?

- Através da minha consciência.

- E a sua consciência é um aglomerado do que?

- Pensamentos!

- Claro! Por isso é que temos que ficar de olhos bem abertos para os mesmos! Pode ver que esse negócio de culpa é tudo mentira. Mentira é fruto de uma mente irada e a mente é como um macaco pulando de galho em galho na selva do condicionamento humano, como já dizia Buda.

- Gostei!

- A culpa faz parte do arquivo morto! O senhor já viu um empresário, ao deixar sua empresa, carregar para casa em suas costas o pesado arquivo morto?

- Não nunca! Você disse uma coisa interessante: a culpa está sempre no passado!

- Pois é! Arquivo morto!

- Então para que carregá-lo? Parece que a gente gosta de carregar peso desnecessário na mochila, não é mesmo?

- Fomos condicionados desde a nossa infância a isso! Os métodos de educação era sempre baseada no medo e na culpa. Ao invés de uma educação voltada para a formação de uma consciência amorosa libertadora, fomos educados num paralisante sistema de medo, culpa e vergonha. Isso para mim é um fato! Sempre uma educação punitiva. E uma criança educada nesses moldes, não tem a menor chance de não se transformar num adulto "culpável".

- Olha meu amigo, digo-lhe que para mim, isso é um verdadeiro inferno. Na minha infância e na minha adolescência eu fui criticado muito e fui criticado por pessoas que tinham importância psicológica para mim.

- Pessoas emocionalmente significativas!

- Sim! Então, eu recebi aquilo com um impacto muito forte. Então, hoje, estou batalhando muito para não ser mais influenciado pela culpa. A minha maior luta, o meu maior esforço, você não vai acreditar é com a minha culpa. Eu sou uma pessoa muito imperfeita e isso, por vezes, me deixa doente de culpa. A culpa vem rápida, sem avisar, e, para sair, só eu sei o quanto demora! Percebo que a culpa e a raiva andam de mãos dadas pelas estradas da vida. Quando criança me jogaram muita culpa nas costas e confesso que nunca soube como lidar com ela, bem como com a raiva. Na ocasião que me jogaram eu fiquei com muita raiva por que não podia de forma alguma reagir; não podia enfrentar, as condições não me permitiam. Diante da culpa, a minha reação sempre foi a de sentir raiva e eu acho que é uma coisa muito ruim sentir raiva de si mesmo. A raiva é sempre um mau negócio.

- A neurose da culpa é uma coisa fora do comum, judia demais.

- Rapaz... É fogo!

- Bota fogo nisso!

- Mudando de assunto... Coisa pequenas que eu vejo, que eu leio, que eu ouço, que eu observo, que eu assisto em palestras, em livros, em conversas... Qualquer coisa que vejo no cotidiano, se for interessante eu escrevo sobre aquilo. E já tenho alguma coisa escrita de trechos de livros que leio. Nem tudo num livro é bom, nem tudo é especial; tudo que me é especial eu escrevo. Eu tenho, por exemplo, vários cadernos com coletâneas de pensamentos, poesias, crônicas de vários escritores. Tenho também muita coisa minha, muita não: um pouco! Agora, eu tenho muita coisa de outras pessoas. Essas coisas boas, se eu der para você, tenho certeza de que irá gostar. O que eu escrevi, se você for submeter a um julgamento, com certeza vai me mandar jogar tudo fora.

- Dá uma olhadinha na imagem que o senhor tem de si mesmo! Por que o que o senhor escreve não pode ser tão bom ou melhor do que aquilo que foi escrito por outras pessoas?

- Não sei! Para mim é bom, mas a humanidade é muito ingrata, eles não dão valor a alguém que não tenha vários diplomas espelhados pela parede de uma sala qualquer... A humanidade tem um péssimo gosto: crucificaram Jesus, tacaram fogo na pobre da Joana D'Arc, no Giordano Bruno e no Galileu, pregaram Pedro de ponta cabeça, envenenaram Sócrates... Rapaz, a humanidade está muito sonada, prova é que nos últimos anos, ainda reelegeram o Lula...

Risos...

- Pior ainda: reelegeram Collor de Mello, Maluf e vai companhia limitada... Que coisa terrível!

- Pois é! Desse sono chamado política, parece que nosso povo não vai querer acordar mesmo!

- Nossa prosa está muito boa, mas tenho que ir para casa, pois já está quase na hora do almoço e se me atraso, a patroa reclama. Foi muito bom estar aqui com você! Tchau JR, tenha uma ótima semana!

- Até a próxima senhor Elton!

17 julho 2007

O segredo não está nas posses


SF Centro/SP
Já estamos com mais de 12 horas de uma fraca chuva ininterrupta. O solo está bastante encharcado e a temperatura bem mais fria do que ontem.
Como de costume, acordei com vários questionamentos, já há muito feitos e ainda sem respostas. Enquanto agachado, abrindo os cadeados da loja, passou-me pela mente a seguinte pergunta:
"O que hoje seria mais importante para você?... Encontrar uma profissão mais rentável ou a resposta definitiva para essa constante inquietude interior? O que seria mais valioso?... O sucesso profissional, o poder, o reconhecimento e o prestigio dele proveniente ou um estado de bem-estar comum e bem-aventurança?"...
Sem a necessidade de muito tempo, sem a menor hesitação, muito mais rápido que o movimento da água pelo canteiro da calçada a resposta soou em meu interior:
"Claro que encontrar a resposta para esta constante e desde sempre inquietude interna!"
De que me adianta, como a grande maioria, obter um posicionamento profissional, saber gerir um departamento ou instituição financeira com inúmeros funcionários subordinados e não ser capaz de gerir com propriedade o funcionamento dos meus pensamentos-sentimentos e ficar subordinado à eles?
De que me adianta saber dar todas as respostas criativas dentro do meu local profissional, mas ter que viver recorrendo à um profissional para me dar respostas acadêmicas para meus conflitos existenciais?
De que me servem as posses, as poses e as máscaras de estabilidade se me falta a paz de mente? Será que essa paz pode ser encontrada através das posses, posições e privilégios materiais?
Absolutamente não!
No cotidiano, atrás do meu pequeno balcão, recebo pessoas financeiramente privilegiadas, abastadas, mas que vivem numa constante e, por vezes, inconsciente inquietude interior. Como mendigos emocionais buscam nas aquisições materiais, nos relacionamentos afetivos e sexuais, no acumulo de atividades e responsabilidades sociais uma insana forma de obter sentido para as suas vidas. Não se consegue ver brilho em seus olhares, muito menos aquela energia contagiante do bem-estar e bem-aventurança.
Alguns deles, apesar de já estarem bem próximos da chamada "terceira idade", ainda se iludem com reuniões semanais para estudarem "o segredo" que possa lhes possibilitar a realização dos seus adolescentes "sonhos de consumo".
Estaria o silenciar dessa inquietude no vazio saciar consumista?
Se está aí, por que para essas pessoas nunca se encerra o constante movimento do "quanto mais tem mais quer"?
Não!... Não preciso passar por isso; posso ganhar tempo aprendendo com as tristes experiências dessas pessoas. A falta de brilho em seus olhares, o hálito de cinzas em suas bocas e a profunda dificuldade de conversarem olhando diretamente em meus olhos, servem-me de luzeiro. Não existe segurança e bem-estar no modo de vida que elas levam, portanto, isso não serve para mim.
De que me adianta por um lado o sucesso profissional e material e do outro o insucesso da mediocridade nas demais áreas da minha vida?
Já há alguns minutos que a fraca chuva deu uma trégua. Já é possível ver alguns pequenos buracos na dureza do asfalto cinzento, causado pelo confronto entre o movimento delicado e constante da chuva e o apressado e ruidoso movimento dos estressados motoristas.
Há uma enorme semelhança entre a cortina feita de fio de nylon com pedrinhas brancas e azuis, pendurada no batendo da porta de entrada e a seqüência de gotículas transparentes da água da chuva no batente do sombreiro da loja.
A pequena árvore, com algumas poucas flores, parece dançar alegremente agradecida pelo frescor proporcionado pela chuva.
O movimento dos carros e pedestres aos poucos começa a se intensificar.
Talvez, para algumas pessoas acostumadas a comentários maldosos, eu possa ser visto como alguém que não tenha nem ao menos um lugar onde cair morto. No entanto, como nos dizeres de minha esposa, se eu for fiel à minha busca, quem sabe, muito em breve, eu possa ter um local onde possa cair vivo com propriedade, mesmo sem propriedades.
Inquieto em meu canto, à tudo observo...

16 julho 2007

Reflexos do “si mesmo”

Apesar do fato de estarmos em pleno inverno, a noite apresentava-se bastante quente.

Por causa da greve dos metroviários, vários participantes da reunião chegaram bastante atrasados.

Era a primeira vez que aquela jovem estava participando da nossa reunião e, para tanto, havia cruzado toda a cidade, com seu trânsito congestionado. Disse-nos que durante todo o trajeto, por várias vezes passou em sua mente o desejo de deixar de lado a reunião e voltar para o aconchego solitário de sua casa. No entanto, algo no mais profundo do seu ser sussurrava que a transformação pessoal está na arte de se observar e se contrariar. Decidindo seguir as sugestões dessa fala mansa e suave, deixou de lado a sugestão pelo retorno à sua zona de conforto e, contrariada, partiu em nossa direção.

A sala onde são realizadas as nossas reuniões fica nos fundos do prédio de uma instituição espiritualista, no entanto, não temos qualquer ligação com a mesma, sendo que apenas locamos uma de suas salas pelo valor de um aluguel simbólico. A sala que alugamos é a última ao longo de um estreito e escuro corredor.

Quando foi dada a palavra para a jovem visitante, esta começou a "praguejar" quanto à distância do local, da lentidão do trânsito enfrentado, do péssimo estado de conservação do prédio, da escuridão do corredor cercado por grades e portões de ferro e que o mesmo mais se parecia com um daqueles corredores da morte dos campos de concentração em Auschwitz. Deixando de lado a sua tendência à birra infantil de praguejar, havia em sua fala certa coerência com relação a semelhança do corredor com os corredores da morte de um campo de concentração. Para os que estão ali seriamente concentrados, esse corredor pode realmente levar à morte, o velho rabugento "eu" condicionado.

Quanto ao restante do conteúdo de seu praguejar, não passavam de inconscientes reflexos de sua própria realidade interna: uma mente condicionada nunca gosta de se ver de frente com as grades de ferro do corredor sujo, escuro, estreito e limitado que é, além do fato de aquilo que é nunca oferecer uma zona de conforto.

Nossa jovem visitante demonstrou também através da sua fala ansiosa o quanto que está doente do olhar, uma vez que possui olhos de ver, mas que não conseguem ver além da superficialidade dos fatos. Com certeza voltará para casa enfrentando além do trânsito externo, um verdadeiro congestionamento mental.

A idéia de transformação está sempre no tempo psicológico, no vir-a-ser, na não aceitação do que é em suas respectivas fugas. Metas de mudança e critérios de sobriedade fisíca e emocional, não tem o poder de produzir a verdadeira transformação. A idéia de superação gradual das próprias debilidades é um dos maiores fatores estagnantes que impede a percepção da natureza exata de todo comportamento gerador de conflitos.

O compartilhar das experiências de alguns membros mais antigos do grupo, quase sempre se mantém preso nas maçantes e repetitivas histórias do passado, o que representa uma notória fuga da própria realidade do agora. Esse constante repetir do passado nega a essência do "só por hoje" e sem a consciente observação do hoje, torna-se impossível uma real transformação... A máscara da espiritualidade impede a capacidade de contato consciente com a própria realidade do agora e gera um visível estado de hipocrisia.

12 julho 2007

A cegueira do automatismo

Bem em frente da nossa casa, há um pequeno coqueiro e ao seu lado uma enorme mangueira, onde todas as manhãs, várias maritacas nos brindam com suas algazarras.

Meu vizinho estacionou seu carro do outro lado da rua, bem em frente às referidas árvores. Deteve-se ali por vários minutos, analisando vários papéis que retirava de uma pasta plástica. A seguir, desceu do carro, fechou-lhe a porta e atravessou a avenida às pressas. Quando já ia abrindo o portão de sua casa, sem ao menos me brindar com um bom dia, detive-o por um breve instante. Segurei-o pelo braço direito e pedi para que ficasse de costas para a avenida e que me respondesse quais as duas árvores que se encontram do outro lado, bem em frente a sua casa. Ele timidamente me respondeu:

- Sinceramente? Não sei!

- Há quantos anos você mora nesta casa?

- Desde que nasci: 36 anos... Sei o que você deve estar pensando, mas sabe como é a correria da gente... Não dá para observar nada.

- Sei sim... Tenha um bom dia por dentro e por fora! – Respondi-lhe dando um breve sorriso e um leve tapa nas costas.

Quem sabe observar a essência dos fatos do cotidiano acaba vendo mais longe. É preciso não se conformar com a normalidade do ver, mas sim, buscar pela excelência do olhar. Ver e olhar são práticas totalmente distintas. Percebo que de certo modo, todos estão doentes do olhar. Nossa superficialidade faz com que olhemos a vida somente superficialmente e é justamente isso que nos impede de saborear o âmago de tudo e sem esse saborear, o tudo, perde o seu sentido. Sem a cura do nosso olhar, torna-se impossível descobrir o motivo pelo qual sentimos ter nascido. É preciso rasgar o véu que encobre os olhos do Ser que nos faz ser. Descondicionados nascemos e, pela cura do olhar, descondicionados nos tornamos.


 

O jogo da vida

Estamos começando mais um dia. Meu corpo está bastante dolorido devido o esforço físico feito no jogo de ontem à noite. Há um mês voltei a praticar futebol, depois de quase seis anos distante das quadras e sem praticar qualquer outro tipo de esporte. Meu esporte predileto sempre foi o futebol, talvez pelo fato de, através dele, ter vivenciado minha primeira experiência de aceitação, graças a minha habilidade com a bola. No entanto, decidi parar com a sua prática devido o clima agressivo durante as partidas e também pela ausência de boas conversas ao término do jogo.

Na maioria dos "times" pelos quais passei, não encontrava um grupo de pessoas com o objetivo primordial de se divertir com a prática esportiva, mas sim, dispostas a um clima quase que de guerra, sempre com muitas jogadas violentas, discussões e agressões verbais, sempre embasadas no estúpido ditado popular: "futebol é para homem". Como esse tipo de homem não tem nada de inteligente, inteligentemente decidi abandonar as quadras.

Há um mês, enquanto tomava um café na padaria para aliviar meu tédio, fui convidado por um dos balconistas para fazer parte do time dos comerciantes do bairro. A idéia de voltar a praticar, ainda mais com os conhecidos locais, em muito me agradou. Aceitei o convite prontamente. Completamente diferente das minhas experiências passadas, encontrei um grupo bem descontraído, onde, o que mais importa é suar a camisa e se divertir com os amigos. Estou lá há um mês e até agora, não presenciei sequer um bate boca ou uma jogada mais agressiva. Há um verdadeiro espírito esportivo e de descontração amigável.

Tenho jogado sempre contra dois fortíssimos adversários: a pouca idade da maioria dos participantes e o meu péssimo condicionamento físico. Passo a maior parte do tempo, literalmente correndo atrás de ambos. Modéstia a parte, sempre joguei muito bem e tinha um excelente preparo físico. Seis anos foram o suficiente para que eu perdesse a forma, o pique, a noção de espaço e tempo, a flexibilidade, a elasticidade e a capacidade de acompanhar fisicamente os insights das boas jogadas. A visão intuitiva se manifesta, mas o corpo não acompanha. Quando isto ocorre, sinto na pele a impotência física por perceber que os músculos não acompanham a jogada mental.

Outro grande adversário que tenho é a imagem que carrego do meu desempenho passado, que inevitavelmente traz consigo outro fortíssimo adversário: a comparação. Esta quando se apresenta com suas entradas violentas sempre acarreta dores e frustração.

Cada jogo tem sido um trabalho árduo de aceitar a minha atual limitação, mas sempre acompanhada da boa vontade de melhorar meu preparo físico. Quando o time em que estou é eliminado, sento-me na estreita arquibancada e, atento, observo o movimento de cada jogador em quadra. Isso tem sido uma ótima terapia, uma verdadeira escola para quem era viciado em "ter que ganhar a qualquer custo". A cada jogo sinto uma pequena melhora em todos os sentidos e isso é a minha grande vitória. Os resultados mais importantes já não se encontram fora, no limitado espaço entre as redes, mas sim, dentro do infinito e desconhecido espaço que sou eu.

Isso me levou a meditar sobre o atual momento psíquico que atravesso. Durante anos e anos da minha existência, a verdadeira inteligência se manteve em profundo estado sedentário. Nunca houve um treinamento, um preparo ou uma concentração voltada para ela. Fui sempre condicionado pelo pensamento coletivo condicionado. O pensamento condicionado, sempre foi o meu técnico, o meu preparador; foi sempre ele quem preparou a dor que literalmente me deixou no banco, com reservas, impedindo-me o desfrute com totalidade.

Depois de muitos anos despertei para a necessidade de sair do sedentarismo mental e iniciar a prática de um esporte que realmente é saúde, que é vida. Como no futebol, inicialmente, a prática da observação dos meus condicionamentos mentais e físicos, também causou um "desconforto físico", o qual nomeei de "síndrome de abstinência do pensamento compulsivo condicionado". O corpo todo doía, o suor era intenso, oleoso e fétido. Ocorriam distúrbios de sono, dificuldades na noção de tempo e, por vezes, uma profunda letargia.

Como no futebol, também tenho enfrentado fortíssimos adversários: meus velhos condicionamentos mentais e a doentia e, por vezes, agressiva e violenta tentativa de influência de terceiros.

Como esta prática é muito recente, às vezes me pego "marcando falta" numa dessas áreas e eu mesmo aplico o cartão amarelo para continuar no jogo com mais atenção, lembrando-me de não entrar em bola dividida. Por vezes, isso também me causa um sentimento de impotência diante do despreparo psíquico, do condicionamento mental e das forças dos pensamentos acelerados.

Não é nada fácil perceber a distância entre o conhecimento intelectual e a realidade das reações condicionadas. Os músculos psíquicos, por ainda estarem desatrofiando, muitas vezes não respondem com a mesma rapidez com que se manifesta a "visão intuitiva". A mente atrapalha em muito. Quando isso ocorre, sento-me na arquibancada da vida e observo cada movimento, aprendo com meu "técnico interior", que a tudo observa pacientemente; este "técnico" de forma alguma me quer ver isolado e com reservas num banco qualquer da vida: ele quer me ver em constate e autêntica relação.

Ao contrário da minha prática esportiva de todas as quartas-feiras, este jogo não é limitado pelo tempo cronológico do relógio da quadra. Este jogo sempre ocorre no presente ativo, neste eterno agora. A cada segundo do jogo há o trabalho amoroso de aceitar as minhas atuais limitações, sempre acompanhado da boa vontade de melhorar meu preparo psíquico para poder observar com mais clareza, as jogadas do meu adversário, que é o meu próprio pensamento. Isto tem sido uma grande terapia, uma grande escola sobre o "mim mesmo".

A cada observação, percebo uma pequena melhora na amplitude dos meus sentidos e isso em muito me gratifica. Isso tem me dado forças para continuar no disputado jogo da vida, disputa essa que já teve seu inicio com o grupo dos espermatozóides do senhor meu pai. Neste jogo da vida, vou jogando até ouvir o apito final, se é que exista o tal apito final, pois já começo a desconfiar que o mesmo não passe de outro condicionamento, apenas mais uma ilusão.


11 julho 2007

Este Blog é “deprê”?

Acabo de ter uma conversa interessante aqui na loja. Um amigo meu passou por aqui para saber como é que eu estava, uma vez que havia tomado conhecimento de que eu acabará de perder uma grande amiga evolutiva.

- Olá Everaldo!

- Fala JR! Como é que você está? Melhor?

- Estou bem! Só com o corpo um pouco cansado; só preciso me refazer fisicamente. Foi muita tensão e uma madrugada inteira sem dormir. Mas, emocionalmente, estou bem! Aprendi muito com esta situação. Minha amiga realmente foi uma grande mestra.

- Acredito que deva ter sido muito desgastante mesmo.

- Sem a menor sombra de dúvida.

- Tenho lido os textos do seu blog...

- O que tem achado?

- Achei um verdadeiro absurdo o tipo de conversa que você retratou naquele texto sobre "conversas nutritivas". Ando tão intolerante ultimamente que não tenho tido o menor saco para esse tipo de papo furado.

- Sei. Perguntei-lhe o que você tem achado dos textos, porque na semana passada, um amigo meu indicou o blog para uma conhecida sua, a qual, comentou com ele que achou meu blog muito "deprê". Você concorda com ela?

- Bem... Cômico que não é! Mas, o que você demonstra através deles é ser uma pessoa extremamente inconformada...

- E o que pode ter de saudável nesse conformismo social mórbido? É possível se conformar com isso tudo?

- Não, não vejo. Mas, o que acontece é que na realidade, quase ninguém esta a fim de ver a vida por esse prisma. Você realmente é um inconformado, vive sempre questionando as tradições, as convenções sociais, a família, a sociedade, o sistema. Tenho certeza de que passou o final de semana no velório questionando a morte e todo ritual dela proveniente.

- Não tenha dúvida!

- Você tem que concordar comigo que não é nada agradável viver com alguém que vive questionando tudo. Não fomos incentivados a isso. Aceitação passiva foi sempre a tônica da educação tradicional.

- E o pior de tudo é que ainda é! Acho que boa parte sofre com a "conformose", a patologia do conformismo. Conformar-se pura e simplesmente com o modo de vida operante, para mim, é como assinar o atestado pessoal de estupidez e mente fechada. O que se apresenta aí fora é um modo de vida pautado em média de dez horas de trabalho enfadonho e estafante, seguindo de breves momentos de distração, divertimento, prazer e descanso. Apenas as pessoas estúpidas e obtusas se conformam pacificamente com o modo de vida socialmente tido como "normal" e, atualmente, me parece que o número dessas pessoas aumentou imensuravelmente. Acho uma grande tolice não questionar tudo e ficar vivendo num mundo de faz de contas. A confusão toda que se apresenta tem sua raiz na conformose, com o tempo começa a agravar para normose, neurose, esclerose, egoesclerose e outras "oses" mais.

- Mas nem todos querem levar a vida a ferro e fogo; eles têm todo o direito de não levar a vida tão a sério. Você não acha?

- Não querer levar a vida tão a sério... Creio que é justamente isso que faz com que as pessoas vivam pela metade, com seus relacionamentos "mal amados e mal trepados", como diz um amigo meu. E para escaparem disso, se entregam a vários mecanismos de fuga, entre eles, a busca do que chamam de "espiritualidade". Se refugiam numa igreja, num culto ou numa terapia qualquer, desde que a mesma não faça com que eles olhem para a própria vida. Enquanto estiverem olhando a vida daquele que "foi", não precisam olhar para a vida que "são", não precisam olhar para o fato de que muitos vivem em relacionamentos com o prazo de validade vencido, num modo de vida repleto de conflitos, ansiedades e frustrações. Será que você não vê isso?... Desculpe-me pela minha franqueza, mas, se tiver dificuldades de ver isso lá fora, então, olhe para o seu próprio relacionamento; ele é um exemplo clássico da espécie de conformismo do qual estou me referindo...

- Como você pode afirmar isso se não está vivendo dentro da minha relação?

- Desculpe-me, mas não fui eu quem disse isso: foi você mesmo em várias das nossas conversas anteriores. Você não consegue ver através da sua resposta, o quanto que negligenciamos a seriedade que a nossa vida com seus relacionamentos merecem?... É por isso que a maioria sofre: por não querer questionar a vida e seus relacionamentos com seriedade. É muito mais fácil rotular alguém de "deprê", por ousar olhar para a própria vida e para a vida que se apresenta diante de si.

- Que horas são?

- 13:10min.

- Gostaria de poder conversar mais um pouco, mas já estou atrasado. Ainda tenho que passar em dois bancos e depois buscar meu neto na casa de meu filho mais velho.

- Ok. Vai na boa! Vai com o Deus que você acredita!

- Até mais! Dê um abraço na senhora sua mãe!

Depois que ele saiu, comecei a meditar sobre o ocorrido. É incrível, mas as pessoas preferem a melhor mentira a pior verdade. Elas são adictas da ilusão e da fantasia. Vivem num verdadeiro teatro. Preferem o mundo do faz de conta, do pó de pirlim-pim-pim, das crenças e das frases de auto-ajuda que em nada ajudam. Elas não querem olhar para a realidade dos fatos, por que a realidade nunca oferece o consolo que vêm com a ilusão. Elas preferem romances, contos, crônicas bem-humoradas, ou então, textos sobre a vida de um Deus que possa lhes salvar das encrencas geradas pela própria ignorância. Oras bolas! Um Deus desse tipo não é ajuda nenhuma, mas sim, um grande empecilho para a descoberta de um modo de vida inteligente. Mas quem quer ser inteligente? Que nada! Isso dá muito trabalho... Mais fácil é ser conduzido como boi de boiada... E assim caminha a humanidade!

Nervosura matinal

Eram 08h50min quando despertei com as lambidas do meu pequeno cão. Bastaram alguns poucos minutos para que o movimento dos desconexos pensamentos entrasse em ação. Durante o banho, percebi que os pensamentos passam semelhantes a quantidade e rapidez das gotas d'água que caem pelo chuveiro. O dia está nublado e a temperatura requer uma leve blusa de linho.

Aquela tão conhecida sensação de vacuidade manifestou-se logo cedo. Pode-se estar sentado, com o corpo totalmente imóvel, mas, internamente, a sensação é a de que todos os nervos do corpo estão estralando. É como nas palavras infantis do pequeno filho de um amigo meu: "uma nervosura".

Nesses momentos, olho para os lados e parece que nada satisfaz, e essa percepção, dá mais vida ao movimento conflituoso da mente. A mente não para! Os pensamentos jorram por todos os lados, pulam de situação para situação, todas, egocentradas. Pensamentos de doença, perda, dor, morte, busca de poder, prestigio e prazer. São julgamentos, criticas, avaliações e comparações (esse é dos piores). Eles não dão trégua nem um segundo sequer. Pensamentos inúteis, sem conteúdo nutritivo, pura perda de energia. São repletos de cenas de situações passadas, conflitos vividos, ensaios de palavras e ações que não foram expressas em seu devido tempo, projeções de diálogos e ações futuras sem o menor embasamento racional. Sinto que o pensamento tem vida própria e ressinto-me pela impotência diante do surgimento dos mesmos.

A mente pede constantemente por alguma atividade externa como forma de distração. Para ela, estar parado significa "perca de tempo". Alguns chamam isso de "manter a mente ocupada". Eu já chamo isso de "fuga de si mesmo". Em situações de outrora, muito antes de estar consciente do governo do pensamento sobre a minha vida, o que é que eu fazia? Tratava de arrumar uma justificativa para mudar de lugar os móveis de casa ou do escritório, uma reviravolta total que demandava tempo, energia e concentração em atividades totalmente desnecessárias. Puro desperdício de energia...

Hoje, sento, observo e escrevo o que vi através da observação. Procuro manter um contato consciente com a qualidade da minha natureza interna. Isso não é nada fácil, pois a inquietude e a insatisfação costumam a atrapalhar. Elas pedem por distração, mesmo que seja somente sentando-me diante da loja para observar o movimento dos automóveis e dos pedestres... Mas ela não se contenta com isso: pede pelos cafés na padaria, o sorvete de palito (desses vendidos em carrinho), ou então, fica na expectativa de alguém que chegue para uma boa prosa (de preferência, isenta de superficialidade, pois assim, o tédio é menos estressante). Afinal de contas, de conversas superficiais e não nutritivas, já bastam os monólogos e diálogos da minha própria mente.

10 julho 2007

A Mente Tagarela

Manhã de inverno. Apesar do sol e o imenso céu azul, a brisa gélida não permite a totalidade do calor solar. Boa parte dos comerciantes locais, assim como eu, estão na porta de seus comércios "jacareando" e observando o movimento.

Os dois garis, apesar de suas roupas de tom alaranjado, são imperceptíveis para a grande maioria. Apressadamente limpam as guias das calçadas.

O fluxo dos ruidosos automóveis e coletivos, hoje, está bastante intenso, tal e qual o fluir dos meus pensamentos. Há raros momentos, quando ocorre a ausência de automóveis, em que um silêncio fecundo se instala. Nesse silêncio, a observação do ambiente é quase que holística. Digo quase, porque o trafego ininterrupto dos meus pensamentos impede a ação do desfrute em sua totalidade. Momento sagrado deve ser esse em que ocorre a plenitude do silêncio...

As pessoas parecem que não suportam o silencio, a solidão e a vacuidade.

Uma pomba cinza, em vôo rasante, rasga o céu em alta velocidade. Um pequeno vira-lata, de cor parda, com uma desgastada coleira de couro preta, vasculha as calçadas em busca de restos de alimentos. O gemido gritante da serra da fábrica de portões ecoa pelo ar. O vizinho, cabeleireiro, em pé diante da porta do salão lê o jornal "primeira mão". Sem tirar o seu olhar do jornal, exclamou em voz alta, atrapalhando minha meditação:

- Eu não paguei por este sol, mas com certeza, Aquele que é muito maior do que eu pagou por mim!

Uma pequena raia plástica branca, com uma estrela azul em seu centro e uma curta rabiola, baila no céu azul sem nuvens. Um outro pipa, bem maior, vermelho e de rabiola preta, avança rapidamente sobre a pequena raia. O céu está tão límpido que se pode ver facilmente o entrelaçar das linhas brancas. Há um enorme espaço azul para ambos, mas até nisso, o prazer não parece estar nos desfrute, mas sim, na competição pelo poder aéreo. A pequena raia é recolhida as pressas, tal e qual os passos do funcionário da leitura da água.

Um senhor com um uniforme de frentista de posto, desacelera seus passos largos para colher algumas pitangas ainda não amadurecidas. Ele, sem dúvida alguma, é um caso raro de sensibilidade.

Alguns dizem que a pressa é a inimiga da perfeição. Eu acrescento que a pressa é também inimiga da observação. As pessoas estão tão aceleradas que não observam quase nada do que ocorre em sua volta. Não reparam no céu, nas árvores, nos passos, nas pessoas (nem mesmo dentro de elevador do prédio onde moram). Eles estão ligadas no automático, num estado robótico. São presas do automatismo acelerado. Creio que é por isso que a mente é tão tagarela. Todos estão correndo com os problemas criados pelos próprios pensamentos, ou então, inconscientemente correndo dos próprios pensamentos.

Eu mesmo, enquanto medito nestas linhas, sou atacado por um caminhão de pensamentos desta mente tagarela que tenta impedir a ligação com a realidade. Ela me diz que eu "deveria" estar fazendo algo de útil, menos estar observando o fluxo dos acontecimentos... "Você deveria estar pensando em algo que pudesse lhe render mais dinheiro"... "Esse negócio de beleza interior é bom para decorador"... "Até quando você vai ficar nessa de se sentar embaixo dessa árvore e ficar filosofando sobre a vida? O que você precisa é de dinheiro, posição e prestigio!"...

A mente não para de tagarelar as mensagens provenientes do passado, da tradição que insiste num modo de vida pautado na sobrevivência e exploração conformista: "Comerás através do suor de teu rosto"... A vida tem que ser levada com a barriga e não um desfrute... "Esse papo de buscar pela excelência do ser é balela, você precisa é ser uma pessoa bem sucedida financeiramente, isso sim é o que importa!"... Observar o sol, o céu, o clima, as pessoas, os pássaros, as plantas, as pipas, o cão, os garis, em plena manhã de terça-feira... Isso é luxo de aposentado! Um jovem como você deve trabalhar duro para garantir sua aposentadoria... A vida é dureza!

Se isso é um luxo para aposentados, então, me pergunto: por que as pessoas dizem que quem se aposenta morre cedo? Talvez, porque durante a ativa do seu modo de vida autômato e acelerado, nunca se deram a oportunidade de aprender a arte da observação e do desfrute. E mesmo agora, em meio do luxo e do lixo conquistado, não sabem como desfrutar. Vivem inquietas!...

Vou continuar na minha: não quero luxo, nem lixo; meu sonho é desfrutar do total.

Procura-se: Conversas Nutritivas

Sexta-feira. Manhã nublada e temperatura fresca. Talvez sejam indícios de que o Inverno esteja realmente chegando, apesar de que, cronologicamente, há dias já estamos nele.

Após tomar meu banho matinal, afagar o cachorro e colocar o lixo para fora, dirigi-me para a padaria a fim de tomar meu café. Parecia que todos ali haviam perdido o horário, tal era a quantidade de pessoas que aguardavam pela vez de serem atendidas. Como de praxe, todos estavam encolhidos e com a fronte bastante tensa. Pela manhã, o sorriso e a descontração parecem produtos em extinção.

- Fala JR! Perdeu o horário também?

- Pois é!

- Eu perdi a minha, mas não estou nem um pouquinho com vontade de encontrá-la!

- Sei!

- Acordei com uma vontade enorme de trabalhar, por isso, vim para cá para ver se a vontade passa!... E aí? Deu para dormir ou dormiu sem dar?...

Depois de fazer esta piada, a qual já fez várias vezes durante o ano, saltou uma longa e solitária gargalhada, deixando transparecer seu sorriso amarelado e as falhas em sua arcada dentária. Em seguida, voltou-se para um dos balconistas e exclamou:

- Fala Paraíba! Onde é que você estava ontem à tardinha? Estou com uma baita dor de cabeça de tanto ficar batendo minha cabeça atrás de você!...

Novamente, solitariamente, soltou sua gargalhada amarelada. Virou-se para mim e disse:

- Eu adoro encher o saco desse Paraíba! Toda manhã venho com uma pegadinha só para poder irritá-lo. O pior de tudo é que o cabra safado não está nem aí!

Apoiando-se com o braço direito sobre meu ombro e com a mão esquerda coçando o saco, novamente soltou uma longa gargalhada em alto som. Um senhor que estava ao meu lado, silenciosamente observava com seu olhar de reprovação.

- Passe bastante manteiga para descer mais fácil!

- Você vai querer alguma coisa? Perguntou-me o balconista, bastante encabulado.

- Por favor, para mim, um pingado e um pão de cenoura sem manteiga. Obrigado!

Enquanto aguardávamos o nosso pedido, ele correu o olhar pelo balcão, talvez em busca de outros conhecidos. No canto esquerdo da padaria, um rapaz, homossexual declarado, tomava seu café com sua amiga; ambos trabalham num salão de estética bem próximo daqui. De cabelos com luzes, espetados pela ação de um creme qualquer, brinco na orelha esquerda e piercing na sobrancelha direita, falava alto com sua dança de trejeitos.

- Oh Paraíba? Por que você não faz um corte de cabelo como o do seu alegre amiguinho ali? Vai lá e passa mais manteiga no dele! – Projetando seu corpo sobre o balcão, com a mão direita encobrindo o canto da boca, sussurrou para o balconista, que bastante sem graça respondeu:

- Para com isso! Fala sério! Meu pai só fez cabra macho nesse mundo! Nem de estética eu gosto. Estou fora!

E assim comecei mais um dia, somente observando afim de não me intoxicar com o conteúdo desta conversa nutritiva.

07 julho 2007

Como morrer para o velho condicionamento da morte?

Domingo: eram por volta das 20:00 horas quando tocou o celular. Estávamos proseando com alguns amigos, reunidos numa padaria da zona norte. A conversa versava sobre as nossas experiências relativas a observação do pensamento e seu processo divisor. Do outro lado da linha, um tanto ansioso, nosso amigo Roberto, cuja esposa encontra-se na UTI do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer. Pediu-me para que se possível fosse, o recebe-se em nossa casa, pois estava muito necessitado para desabafar seus sentimentos. Prontamente, nos despedimos de nossos amigos e partimos em direção à sua casa, um tanto apreensivos. Sua esposa, uma pessoa extremamente especial, estava com seu quadro clinico muito critico e no fundo temíamos pelo conteúdo do que ele tinha para nos falar.

Ao chegarmos a sua casa, encontramos Julia, outra amiga nossa, bastante abatida. Roberto, naquele momento, conversava por telefone com seu filho residente na Austrália. Com o telefone sem fio, movia-se de um canto para o outro da pequena sala, deixando transparecer o grau de sua ansiedade. Pela sua fala, tornou-se claro que o quadro de nossa amiga havia se agravado profundamente. Meu sentimento foi de total impotência.

Estávamos agora sentados na sala, onde durante um ano e meio, todas às segundas-feiras mantivemos um grupo de estudos, primeiramente do livro "O Sermão da Montanha", seguido do livro "O Poder do Agora". A persiana branca que escondia sua pequena, mas aconchegante sala de massagem, agora estava aberta deixando transparecer a cama e o material por ela usado. Sobre a tampa das teclas do piano, os dois livros de auto-ajuda que eu havia visto com ela em seu quarto durante a minha visita. No tampo superior do piano, vários porta retratos das pessoas que lhe eram queridas, entre elas, um com a foto do nosso grupo de estudos.

Assim que terminou a ligação, Roberto solicitou para que fossemos para a nossa casa, pois como seu filho caçula encontrava-se no piso superior da casa, tinha receio de que ele escutasse o teor da conversa. Prontamente nos levantamos e seguimos na frente para a nossa casa. Quando lá chegamos, minha esposa tratou de acender logo um delicioso incenso de macela, mirra e mel para sobrepor o cheiro deixado pelo montinho de fezes do nosso pequeno cão. Deixamos a porta de vidro da sala bem aberta para que a sala fosse arejada mais depressa. Dez minutos depois eles chegaram. Sua presença causou uma grande ansiedade em nosso cão e para que ele não atrapalhasse nossa conversa, tratamos de trancá-lo nos fundos de nossa casa. Uma vez devidamente acomodados, perguntei-lhe:

- Muito bem, meu amigo, o que você tem para nos falar?

- O que tenho para lhe falar não é nada bom. O estado dela agravou muito. O médico, depois de uma hora e meia de exames, veio ter comigo em particular e disse-me que sentia muito, mas que havia sido feito tudo aquilo que estava ao alcance da medicina atual. Ele disse que o problema esta no fato de que o organismo dela não está respondendo. Ela já está com água no pulmão, somente 20% do seu fígado está funcionando e o seu sangue está tendo dificuldade de coagulação. A situação é critica.

- Ele disse quais são as chances?

- Só há chances se o fígado reanimar. Temos que torcer para que não atinja os rins.

- Bem, agora que você já nos falou a respeito da situação dela, por favor, fale-nos de você. Compartilhe seus pensamentos e sentimentos, sejam lá quais forem. Sinta-se a vontade, você sabe, está entre amigos.

- Meus sentimentos?...

- Sim, seus sentimentos! Você é humano, precisa compartilhar!

- Medo!... Tenho muito medo de perdê-la. Tenho muito medo da vida sem ela. Tenho medo de ficar só... Sinto-me perdido! Não sei por que isso tinha que ocorrer agora... Nossos primeiros 20 anos de casamento foram muito tumultuados e só agora nestes últimos 15 anos é que começamos a nos relacionar de verdade. E agora, no auge do bem-estar de nossa relação, apresenta-se essa maldita doença... Sinto raiva! Sinto muita raiva da minha impotência diante dos acontecimentos. Sabe, apesar de não ser católico, hoje pela manhã permaneci por uns trinta minutos orando na capela do hospital. Pedi muito para que Deus não a levasse, que nos desse mais uma chance... Tenho medo de perdê-la. Não quero ficar só. Ela sempre me disse que se eu morresse primeiro ela iria junto comigo. Você quer saber meus sentimentos?... Estou com muita raiva e com muito medo!

- Ela está sabendo da realidade do quadro dela?

- Não, não sabe! Se souber, tanto eu como o médico acreditamos que ela entregaria os pontos de uma vez. Sabe, ela vem reclamando há dias de que se encontra muito cansada disso tudo. Decidimos não falar.

- E seus filhos? Estão a par dos acontecimentos?

- Só o mais velho. O caçula é muito apegado a ela; tenho medo de que ele não tenha estruturas para lidar com a realidade dos fatos. Ainda me resta uma esperança, essa, como dizem, é a última que morre.

- Pois então, aguardemos juntos! Você não está só! Estamos juntos meu amigo! Vamos torcer pelo melhor e que seja o melhor para ela e não o que achamos que seja o melhor. Que seja o melhor para ela!

- Sim, sem dúvida, o melhor para ela!

- No entanto, precisamos estar cientes das duas possibilidades. Esperamos por aquilo que achamos ser o melhor, no entanto, se a possibilidade que não queremos vier a se apresentar, que estejamos prontos para sermos amorosos "parteiros". Todos, um dia, precisamos de uma "parteira" para ingressarmos neste espaço tempo e todos também vamos precisar de "parteiros amorosos" que nos incentivem a ir com tranqüilidade para o Ser que nos faz ser e ser um com ele.

- Eu só não quero perdê-la, não agora! Se isso ocorrer, não sei se vou saber me adaptar à vida sem ela. Tudo nesta casa tem o toque dela.

- Meu amigo, no momento, o que posso lhe dizer é que você não está só, estamos todos juntos com você! É preciso muita coragem para ficar com o que é. O que é não é democrático, muito menos oferece consolo. É preciso força, serenidade, coragem e sabedoria.

Ele curvou sua cabeça, respirou fundo e a balançou em sinal de concordância. Depois da conversa, fiquei meditando na insanidade da nossa cultura secular. Nunca tivemos uma pedagogia para a morte. Nunca aprendemos a conviver com ela, a ver a beleza em sua manifestação. Sempre nos mantiveram, desde a mais tenra idade, distanciados desse grande fato da existência. Carregaram-nos de medo, assombro e desespero. Nunca nos ensinaram a ver a morte em cada acontecimento diário. Literalmente, sempre a encobertaram de nós. Por isso não sabemos como lidar com esse acontecimento quando inesperadamente se apresenta. Não fomos ensinados a ser "parteiros". Não aprendemos a ver a morte como um fator de transcendência. E por isso, acrescentamos sofrimento aos já instalados.

Como morrer para o velho condicionamento da morte?

Como manter a mente aberta para compreender a mensagem contida em si mesma?

Como aceitar a impermanência de tudo, não pelo conformismo doentio, mas sim, pela compreensão inteligente?

São perguntas que não cabem a ninguém responder por nós e precisamos respondê-la logo, pois a morte, nunca nos avisa do dia de sua chegada e como diz um grande amigo nosso:

"Se você não morrer antes de morrer, você morre quando morrer".

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Escolho meus amigos pela pupila

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco! Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois ao vê-los loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU! JUNTE-SE À NÓS!